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Esta série está chegando ao final. Foram 45 artigos que analisaram as relações criminais no Brasil, com foco maior para o Ceará, a partir de uma abordagem pautada nas ciências sociais, com destaque para a antropologia e a sociologia. Estes artigos são oriundos de um rigoroso trabalho de campo (pesquisa etnográfica) desenvolvido por quase dois anos com mais de uma centena de entrevistas.
Não me resta nenhuma dúvida de que muita coisa importante ficou de fora da minha análise. Tenho consciência das muitas lacunas deixadas. Isso é parte insolúvel das minhas próprias limitações interpretativas. O trabalho aqui exposto não tem a pretensão de esgotar as inúmeras possibilidades de abordagem no campo das ciências sociais com relação às múltiplas e polissêmicas facetas da violência. O que aqui foi produzido é somente uma seleção pessoal de um imenso mosaico teórico-empírico, enfim, apenas um esboço impressionista diante da inesgotável realidade material e fenomenológica pesquisada.
Pensar a sociologia como disciplina que se propõe a desnaturalizar analiticamente as representações estruturadas e estruturantes do mundo social é uma tarefa de largo fôlego. Considero que a inquietação hobbesiana “como a sociedade é possível?” ainda é um necessário ponto de partida. As sociedades contemporâneas e os fenômenos sociais são cada vez mais fluidos, porosos, diversos e dinâmicos, exigindo de nós, cientistas sociais, um jogo de cintura dialético-interpretativo que possibilite apreender – ainda que sempre de modo parcial e limitado – a complexidade dos contextos e das configurações situacionais.
Embora tenha tentado fugir delas, posso ter incorrido em idealizações empíricas. É muito difícil analisar a sua própria análise. Também não acredito que seja possível uma neutralidade na produção textual. Nem foi minha pretensão. Possivelmente a maior meta que busquei nesta série de artigos foi, sobretudo, humanizar os “bandidos” com quem conversei. Dar-lhes um caráter de gente, de pessoas que mereciam ser ouvidas compreensivelmente. Penso que eles tinham muito a dizer. E procurei ouvi-los com atenção.
Algumas destas pessoas são amigos ou conhecidos de bairro, com quem já compartilhei momentos em que o que estava em ação não eram as práticas delitivas, mas toda a outra parte de suas vidas que escapa às configurações criminais. Ser “bandido” é apenas mais uma função que eles exercem entre tantas outras no dia a dia.
No entanto, em relação às suas práticas criminais, sustento que são ambíguas, ancoradas em um duplo vínculo, para usar uma expressão do antropólogo Gregory Bateson, porque expostas a injunções contraditórias: por um lado, em contraponto à semiótica da dominação, lançam mão cotidianamente de ações táticas que, mesmo inseridas em um campo onde se exerce uma coerção quase determinista, conseguem escapar-lhe, driblá-la, enveredam-se pelas rotas de fuga, e dessa maneira abrem possibilidades de criar uma práxis nova, ao romper com o mimetismo homogêneo e pasteurizado dos poderios constituídos. Todavia, na outra ponta, não se pode esquecer que, mesmo criando redes de socialidades antidisciplinadas e contra-hegemônicas, as práticas da criminalidade favelada ao mesmo tempo reproduzem e mantêm estratégias políticas de poder autoritárias, violentas e hierárquicas próprias do status quo.
Quero dizer que, ao tempo em que criam formas de ação anti-Estado, eles não vindicam nenhuma revolução social ou algo parecido tampouco defendem politicamente uma transformação das desigualdades e assimetrias sociais. Nesse sentido, as relações criminais dos agentes pobres expressam uma cadeia complexa de significantes e significados e também de materialidades e representações simbólicas que somente podem ser compreendidas à luz das suas próprias contradições, conflitos, astúcias e resistências.
Todavia, admito que essa conclusão é uma leitura lugar-comum do ponto de vista acadêmico. Fundamentalmente, não traz novidade para a literatura socioantropológica brasileira dos últimos trinta anos. Muitos autores e autoras já concluíram sobre essa ambiguidade da agência criminal pobre. Hobsbawm, em Bandidos, trouxe essa leitura ainda no final dos anos de 1960.
O que eu tento apresentar como original nesse trabalho não é essa constatação clichê, mas as possibilidades sempre novas que cada campo tem a dizer. Assim, os dados empíricos são a grande riqueza e singularidade desta série de artigos-reportagens. As falas cruas das pessoas com quem conversei, reproduzidas fielmente, são mais importantes do que as análises que faço de seus discursos e de suas práticas, porque naquelas falas repousa uma sociologia espontânea das gentes simples, que joga com as adversidades das contingências do cotidiano.
Porém, voltando à conclusão lugar-comum – na qual a minha se inclui, a de que a criminalidade dos agentes pobres está ancorada em ações de duplo vínculo – que tem sido compartilhada nos estudos sobre violência, crime, etc. nas últimas décadas no Brasil, será que de alguma maneira eu, você, nós não estamos colaborando para os efeitos perversos da criminalidade pobre? Enquanto se lê estas linhas mais uma pessoa pobre é assassinada em alguma favela brasileira.
O que temos feito micropoliticamente para ajudar a transformar essa realidade? A sociologia e a antropologia por si mesmas não bastam. Seja a sociologia da violência ou a antropologia do crime, ambas têm produzido uma vasta literatura sobre as práticas criminais, porém em que medida estas produções têm possibilitado ações coletivas e concretas que ousem transformar o mundo social? Quem são as pessoas que estão lendo essa literatura e o que elas têm feito com essa leitura? Será que estes trabalhos têm se restringido somente aos círculos acadêmicos? Precisamos pensar mais e mais sobre estas questões.
Parece-me óbvio que as realidades sobre as quais a sociologia da violência ou a antropologia do crime se debruçam analiticamente não vão mudar a partir de riscos de caneta ou dedilhados no teclado. Diante dessa obviedade, pode-se então argumentar que não se faz ciência social para transformar o mundo, mas apenas para desvelar seu funcionamento, para desnaturalizar as representações que fazemos sobre ele. Considero esse argumento um subterfúgio.
Em resumo, quero enfatizar que as análises socioantropológicas são relevantes para tentar compreender a sociedade, mas insuficientes para transformá-la. O ambiente docente universitário e o editorial, muitas vezes, são ilusórios. Muitas vezes, são egos-intelectos (prof.drs. e editores) disputando quem faz a melhor análise “científica” ou “jornalística” enquanto a vida real, aquela em que dezenas de milhares de pessoas estão sendo assassinadas anualmente passa longe, alheia às teorias e empirias que tudo dizem, mas nada podem fazer de concreto. Páginas e páginas de densidade teórico-empírica que não têm poder de ação sobre o mundo. De fato, para o que tem servido esses trabalhos? – incluo aqui o meu. Tenho pensado sobre isso. Chego à conclusão que ele me atravessou, me fez conhecer gentes diversas, ouvir e compartilhar histórias doloridas. Humanizou-me mais. Talvez seja para isso que servem estes trabalhos: nos autotransformam.
Diante do exposto nestas linhas finais, penso que a crítica política não empobrece a análise socioantropológica. Mas a crítica política tampouco é suficiente. Considero que precisamos ter a esperança como dever e a prática micropolítica como imperativo ético cotidiano, um devir-mudança. Como nos ensinou Paulo Freire, conjugar o verbo esperançar porque nesse verbo tem ação.
Nós, jornalistas e cientistas sociais, talvez estejamos precisando aprender que simultaneamente às redações produtoras de notícias e às redomas universitárias – aulas, debates, simpósios, colóquios, seminários, congressos, etc. – devemos viver, ontologicamente, as riquezas e as misérias das ruas, bem como as situações de opressão histórica que quase nunca atingem corpos privilegiados. Aprender com nossas próprias contradições, beber nelas a força do devir-mundo novo, mundo em que o Raposão, o Papagaio, o Pango, o Samurai, entre outros “bandidos” com que conversei, tenham as mesmas oportunidades civis e socioeconômicas que as minhas, por exemplo.
Por fim, de volta ao tema principal desta série, as relações criminais, quero dizer que a criminalidade favelada gera um conflito permanente na estrutura social. Há momentos em que se imagina que será cooptada totalmente pela ordem hegemônica, mas seus personagens sempre criam linhas de fuga por onde parte das suas ações escapam em direção a uma forma antiestatismo.
Nesse sentido, a violência e o conflito nunca terão fim, porque são constituintes intrínsecos de todo sistema social. São eles – violência e conflito – que acionam os dispositivos históricos, psicológicos e sociais necessários à mudança. Se a conservação de uma semiologia dominante tem sido a regra; por outro lado, o potencial de mudança e de transformação nunca deixou de ser possível.
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#facções #sociologia #antropologia #etnografia #universidade
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A série Antropologia do crime no Ceará chega ao seu final. Foi publicada semanalmente no #siteberro por meses. Clique nos links abaixo para acessar os textos anteriores.
artur@revistaberro.com / revistaberro@revistaberro.com
i. A dimensão ética na pesquisa de campo
ii. Pesquisando o “mundo do crime” e inserindo-se no “campo”
iii. Grande Tancredo Neves: formação dos territórios
iv. As relações sociais das camadas populares
v. A feira como arte da oralidade popular
vii. Estabelecidos e outsiders: a favela dentro da favela
viii. “Trabalhadores” e “bandidos”: entre separações e aproximações
ix. Sistema de relações sociais do crime: uma rede de ações criminais hierárquicas
xi. “Não confio na polícia”: A relação de descrença entre a classe trabalhadora e os policiais
xii. A economia da corrupção que move a relação entre polícia e “bandidos”
xiv. Tecnopolítica da punição: A função econômica do encarceramento
xv. Estado punitivo-penal e a produção social da delinquência
xvi. “Cadeia é uma máquina de fazer bandido”
xvii. A “escolha” é uma escolha? Compreendendo o ingresso nas relações criminais
xviii. Consumo, dinheiro e sexo: a tríade hedonista da carreira criminal
xix. Traumas, complexos e a luta por reconhecimento (parte I)
xx. Traumas, complexos e a luta por reconhecimento (parte II)
xxi. “Fura até o colete dos homi”: As armas como símbolo dominante
xxii. Os códigos morais da criminalidade favelada (parte I)
xxiii. Os códigos morais da criminalidade favelada (parte II)
xxiv. “Mãezinha”: uma categoria local que põe em suspensão o ethos violento
xxvi. “O crack veio pra acabar com tudo”: o noia como um “zé ninguém”
xxvii. “Você conquista o respeito, você num impõe”: A liderança nas relações criminais
xxviii. As “brigas de trono”: as disputas pelo comando territorial
xxx. Crônica de uma guerra entre quadrilhas de “traficantes”
xxxi. O costume guerreiro da criminalidade pobre
xxxii. Traficante é aquele que nem pega na droga
xxxiii. O assaltante como um nômade das práticas criminais
xxxiv. “O cara num nasceu pra viver no crime o resto da vida não”
xxxv. Uma tentativa de diálogo entre a “vida nua” e a crueldade
xxxvi. A eficácia simbólica das facções
xxxvii. O contexto sócio-histórico e operacional das facções no Ceará
xxxviii. Guardiões do Estado: uma facção cearense com pretensões nacionais
xxxix. Esse negócio de gangue acabou-se: considerações sobre a paz
xl. Batismos de morte e o ethos do trabalho nas relações criminais (parte I)
xli. Batismos de morte e o ethos do trabalho nas relações criminais (parte II)
xlii. “A guerra voltou”: A Era das chacinas no Ceará
xliii. Pesquisando na “guerra”: a relação entre a coragem e o medo
xliv. A relevância estratégica do Ceará para o tráfico internacional de drogas
xlv. “Todo mundo sabe”: As afinidades eletivas entre as facções criminais e a política tradicional
xlvi. Alguns conceitos