“O crack veio pra acabar com tudo”: o noia como um “zé ninguém”



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(Ilustração: Juliana Lima)

Outra representação coletiva tão recorrente quanto a de “pirangueiro” é a de “noia”. Noia é o adicto que é julgado como se não conseguisse ter controle psicoemocional sobre o uso de drogas – quase sempre o crack – e que é acusado como se não considerasse mais as relações familiares e de amizade como parâmetros de respeito e empatia.

Numa leitura freudiana, é como se as repressões do Supereu, que impõem sentimentos de culpa ou reprimendas da “consciência”, parecessem dissipar-se quase inteiramente em seu psiquismo. Em casos extremos, quase não há mais mediação filosófica e existencial entre o uso abusivo e as expectativas futuras; a obsessão pelo uso constante de crack supera qualquer outra perspectiva relacionada ao viver. Nestes casos extremos, a vida praticamente se resume ao consumo da “pedra”. Em termos psicanalíticos, quase todas as pulsões libidinais se direcionam à obtenção de maneiras e recursos para fumar a “maldita”. Muitos falam que salivam “só de pensar”, que “dá água na boca” momentos antes de dar uma “pancada na pedra”, uma “latifada”. Até mesmo as necessidades fisiológicas tornam-se acessórias diante da “fissura” centralizada pelo crack. 

Eles estabelecem com os varejistas do comércio de drogas uma relação com muitas marcas de ambiguidade: de um lado, são rejeitados e desprezados como “corpos abjetos”, como falou Taniele Rui, em sua tese Corpos abjetos: etnografia em cenários de uso e comércio de crack, dotados uma estética zumbi (dentes carcomidos, olhos fixos e inanimados, roupas esfarrapadas, cabelos desgrenhados, magreza notória, falta de asseio, etc.) e, portanto, se exerce sobre eles uma “gestão da circulação” no território, como diz a autora, pois na maioria dos casos de roubo no local eles são os primeiros e, às vezes, os únicos suspeitos; por outro, são muitas vezes incorporados ao tráfico varejista de drogas como intermediadores entre os “playboys” e as “bocadas”. Em troca, ganham pequenas porções de crack, migalhas chamadas “caquinhos”. Ainda que se tente promover uma “circulação administrada” sobre os noias, eles muitas vezes escapam a este controle e vivenciam a prática rotineira como nômades urbanos, perambulando pelos territórios à procura de meios e situações que lhes possibilitem fumar mais. 

Vale salientar, por oportuno, que isto não é o mesmo que dizer que há pessoas “irrecuperáveis”, “sem jeito”, etc. O trabalho etnográfico de Taniele Rui – mencionado acima -, realizado principalmente na “cracolândia”, região do centro de São Paulo, discute de maneira aprofundada a categoria “noia”, humanizando-a. Camaleão pondera que “as drogas que transformam as pessoas, [mas] os noias são pirangueiro não”.

Por mais que sejam vistos como escória social, pondero que, inclusive nos casos de extrema degradação subjetiva e corpórea, as pessoas, ainda que de forma caótica e desorganizada mentalmente, tecem avaliações psicológicas concernentes às possibilidades de um dia escaparem da condição de indignidade à qual se encontram. Fazendo uso do léxico da psicanálise, diria que o instinto de vida (Eros) nunca é completamente eliminado da psique humana por Tânatos, o instinto de morte.

Quero contar brevemente a história de uma mulher tachada de noia. Maria é uma baiana de trinta anos, que trabalha em um prostíbulo no Grande Tancredo Neves (GTN) e também na rua. Ela me contou que fugiu de casa, na Bahia, aos 11 anos, porque o padrasto tentou estuprá-la. Veio para o Ceará pegando caronas com caminhoneiros. Morou no Pirambu, bairro da periferia oeste do litoral de Fortaleza, e depois veio para o GTN. Não sabe se a mãe ainda está viva, porque não tem mais contato com sua família em sua terra natal. Maria é uma das trabalhadoras que põem à venda seu corpo na BR-116 para conseguir um “qualquer” e fumar “pedra”. Já foi presa sete vezes, por homicídio, tráfico de drogas, furto qualificado e assalto a mão armada. Se envolve em qualquer “parada” em busca de dinheiro para dar uma “pancada”. 

Conheci Maria quando fui fazer campo em um posto de saúde improvisado no prédio de uma igreja neopentecostal do GTN. Ela estava lá para receber o exame de detecção de HIV. Ao abrir, ela comemora quando descobre que não está infectada pelo vírus. A moça está muito debilitada, o corpo cheio de marcas, os dentes carcomidos, o olhar é vago, opaco, distante; a fala parece não querer obedecer às palavras. Uma alma em sofrimento emocional e psíquico. No tempo em que conversamos, percebo parte da dor existencial que afeta Maria. Nos seus olhos, que faço questão de mirar com atenção, vejo sua aflição. Ela está inquieta, agoniada. Não me olha nos olhos. Desvia o olhar.  A “pedra”, penso eu, deve deixar toda essa dor em suspensão. Pergunto-lhe se um dia pensa em deixar de praticar crimes. “Penso, porque não compensa matar e roubar pra fumar pedra, se fosse pelo menos pra ficar rica”, diz com franqueza. O instinto de vida de Maria ainda pulsa. 

Numa conversa que tive com José Antônio, 28 anos, desempregado e assaltante ocasional, ele me contava, muito timidamente, com voz baixa e olhar que não me fitava, sobre o vício que o fez ir morar na rua com a companheira, também adicta em crack, e fez seu filho ser tirado de seu convívio pelo Conselho Tutelar. Muitos “noias” investem nas práticas criminais de forma contingencial apenas para conseguir dinheiro para seu consumo. Neste sentido, ele não é sequer considerado “bandido” pelos participantes do jogo; nas relações criminais, prevalece seu papel social de “noia”. Pergunto a José Antônio o que ele sente na hora que dá uma “pancada” no crack: “No momento é bom. Mas depois dá uma depressão cruel. [O que é que tu sente na hora da depressão?] Sei lá, uma agonia… uma coisa chata. A pessoa sabe que vai sentir a mesma coisa e ainda fuma. É uma desgraça. O crack veio pra acabar com tudo. [Tu sonha com alguma coisa, tem sonhos?] Tenho, mah. [O que é que tu sonha?] Eu sonho em deixar de usar, né, a porra dessa pedra aí. Recuperar meu fi, viver numa casa mais aquela sem vergonha da mulher”. 

Praticamente todo “noia” é também tachado como “pirangueiro”. Mas há muitos “pirangueiros” que não são “noias”. Saci afirma que “todo noia é pirangueiro”. [Por quê?, pergunto-lhe] Porque não considera ninguém. Não tem noia nenhum que considera o cara. Ele só quer ver a pedra dele. É, mah, tô interado do movimento”.

Prensado já experimentou uma época em que era um dos principais varejistas de drogas da Vila Cazumba. Hoje, sem comandar nenhuma bocada, peleja para resistir à “tentação” do crack. Questiono-o se a família não interfere para apoiá-lo (ele mora com a tia e uma avó):

“Já chegaram várias vêiz [pedindo-lhe para parar], mas num escutava não, entrava num ouvido e saía no outro. Ei mah, quando o cara tá nessa vida aí [de “noia”], o cara num quer nem saber não, o cara escuta só por escutar mesmo, porque é família, o cara num vai ignorar, né? [E hoje em dia tu tá usando o quê?] Cheiro de menina! [cocaína] [E a pedrita?] [crack] Só mesclado [mistura de maconha com crack, ou tabaco com crack], e só de vez em quando, e só se tiver bagüi [maconha], porque se eu for fumar, se num tiver bagüi, é o cão parceiro. [E comé que tu conseguiu sair da lata? [no Ceará, diferentemente de outros estados em que se improvisam cachimbos artesanais, é muito comum fumar crack em um artefato que os usuários fazem a partir de latinhas de alumínio] O cara num sai não, o cara dá um tempo. Num tem esse que saiu, ele pode dar um tempo, se segurar parceiro, se segura, tenta esquecer, mas ele num sai não. Se ele disser que sai é mentira, ele pode passar um ano, dois anos, até dez anos, mas no dia que ele cai é cruel a rebordosa viu, parceiro. Eu já vi cara passar cinco anos sem fumar porra nenhuma, quando caiu nela, foi pior do que era, ficou muito mais pior. O crack é ruim parceiro, é vida ruim, o crack veio pra destruir família, casal. Ei mah, quando eu num tinha crack pra usar, eu ficava doido, com paranoia, pensando onde conseguia arranjar dinheiro… Mas eu pensava assim: eu num vou deixar ele me destruir não, porque é o que ele quer, o cão quer que o cara perca as amizade, parceiro. Eu num desejo nem pro meu pior inimigo uma vida dessa, num é vida pra gente não, é vida pra cachorro, mah! [Comé que tu faz pra se segurar?] Maconha! Maconha direto! Os doido num toma calmante pra dormir, né? Eu fumo a erva! Mas o cara num deixa de usar [o crack], o cara dá um tempo. 

Em conversa com Fabrício, 37 anos, professor de geografia da rede pública, um dos únicos dois entre mais de uma centena de interlocutores no GTN que haviam ingressado na universidade, ele expõe seus argumentos, demonstrando conhecimento de jargões acadêmicos:

“Um noia, cara, é o ramo mais baixo da sociedade do Tancredo Neves, é a ralé, é o lupemproletariado do tráfico, tá entendendo? É aquele cara que muitas vezes foi um cara de respeito…”

E continua Fabrício sua descrição: “Eu vou te dar o nome de um que é bem famoso aqui no bairro. Um mais antigo, que é o [Pank], já ouviu falar dele? [Pank] é o noia mais antigo que tem aqui no conjunto, ele já deve ter passado dos 50 [anos], ou tá perto. Tá vivo e forte. O pessoal diz que o cara, usuário de droga, ia morrer cedo. É um cara que já foi respeitado, já teve mulheres bonitas, mas que hoje em dia vende qualquer objeto pra ganhar, pra interar uns 5 reais pra fumar uma pedra”.

“É um cara que perdeu totalmente o seu valor perante as pessoas que moram aqui, a comunidade, né? É um zé ninguém, virou um zé ninguém, que as pessoas não respeitam, brincam com a cara dele, usam ele pra fazer determinado tipo de chacota”. 

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A série Antropologia do crime no Ceará é publicada semanalmente no #siteberro. Veja abaixo os textos anteriores. 

artur@revistaberro.com / revistaberro@revistaberro.com

i. A dimensão ética na pesquisa de campo

ii. Pesquisando o “mundo do crime” e inserindo-se no “campo”

iii. Grande Tancredo Neves: formação dos territórios

iv. As relações sociais das camadas populares

v. A feira como arte da oralidade popular

vi. O favelês cearense

vii. Estabelecidos e outsiders: a favela dentro da favela

viii“Trabalhadores” e “bandidos”: entre separações e aproximações

ix. Sistema de relações sociais do crime: uma rede de ações criminais hierárquicas

x. “O dinheiro fala mais alto, [com ele] se torna mais fácil de fazer justiça”: A violência do aparelho judiciário

xi. “Não confio na polícia”: A relação de descrença entre a classe trabalhadora e os policiais

xii. A economia da corrupção que move a relação entre polícia e “bandidos”

xiii. “O crime nunca vai acabar por causa da polícia”: a participação policial decisiva nas relações criminais

xiv. Tecnopolítica da punição: A função econômica do encarceramento

xv. Estado punitivo-penal e a produção social da delinquência

xvi“Cadeia é uma máquina de fazer bandido”

xvii. A “escolha” é uma escolha? Compreendendo o ingresso nas relações criminais

xviii. Consumo, dinheiro e sexo: a tríade hedonista da carreira criminal

xix. Traumas, complexos e a luta por reconhecimento (parte I)

xx. Traumas, complexos e a luta por reconhecimento (parte II)

xxi. “Fura até o colete dos homi”: As armas como símbolo dominante

xxii. Os códigos morais da criminalidade favelada (parte I)

xxiii. Os códigos morais da criminalidade favelada (parte II) 

xxiv. “Mãezinha”: uma categoria local que põe em suspensão o ethos violento

xxv. “Pirangueiro”, “cabueta”, “boca de prata”, “corre de ganso”, “atrasa lado”: compreendendo algumas categorias negativadas da moralidade criminal 


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