A relevância estratégica do Ceará para o tráfico internacional de drogas



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(Ilustração: Uli Batista)

Como tratei anteriormente, as facções CV e PCC não chegaram ao Ceará nos últimos seis ou sete anos. O estabelecimento de firmas e franquias desses grupos no Estado vem se desenvolvendo processualmente nas últimas três décadas, aproximadamente. Ainda em meados dos anos de 1990, Fernandinho Beira-Mar, líder icônico do CV, esteve no Ceará para organizar o ponto final de uma rota de cocaína vinda de outros países sulamericanos. Ele passou uma temporada na capital cearense, no bairro Jardim das Oliveiras (onde está inserido o Grande Tancredo Neves), organizando as rotas que trariam as drogas da Colômbia, da Bolívia e do Paraguai, tanto para o Sudeste brasileiro quanto para o Nordeste; por fim, desta região para o mercado europeu. 

Neste esquema, Beira-Mar foi vanguardista. Se antes a cocaína que saía do Brasil para a Europa (e uma menor parte para a África) tinha os aeroportos e portos sudestinos como único canal de escoamento, principalmente o porto de Santos, é o ex-líder do Comando Vermelho quem primeiro organiza a possibilidade de utilizar os portos e aeroportos nordestinos para transacionar essas mercadorias. Nesse contexto, o porto do Pecém, na região metropolitana da capital cearense, e o aeroporto internacional de Fortaleza se salientaram pela estrutura em comparação com outros equipamentos no Nordeste e, principalmente, pelo fator logístico e operacional, uma vez que devido à proximidade geográfica com a Europa e a América do Norte os navios que cruzam os oceanos gastam menos tempo saindo do Ceará em comparação com outros portos brasileiros, e um voo de Fortaleza para a Europa é em média de duas a três horas mais curto do que saindo do Rio de Janeiro ou de São Paulo. 

No início do século, o PCC também desenvolveu no Ceará suas rotas de escoamento do tráfico internacional de drogas. O irmão mais novo de Marcola, Alejandro Juvenal Herbas Camacho Júnior, veio morar no Ceará em meados dos anos de 2000. Quando foi preso, em 2006 em São Paulo, Alejandro Camacho estava com um carro com placas de Fortaleza e disse aos policiais que morava na capital cearense e trabalhava revendendo veículos. Segundo investigações do governo paulista à época, Camacho mantinha relações com as mesmas quadrilhas colombianas e bolivianas que comercializavam cocaína com Fernandinho Beira-Mar. Após esse evento, Júnior conseguiria mais uma vez fugir da prisão e voltaria a morar em Fortaleza, estabelecendo-se como empresário do ramo de veículos e morando em uma mansão no bairro Sapiranga, zona sudeste da cidade. 

O irmão de Marcola tinha adquirido imóveis luxuosos nas praias do Porto das Dunas, Cumbuco e Lagoinha, três cartões-postais do Estado. Segundo informações da PF, cerca de quarenta policiais militares mantinham sua segurança pessoal. Ele foi o principal articulador do PCC durante os “acordos de paz” entre as facções em 2015 no Ceará. Em março de 2016, foi novamente preso, em sua residência na capital cearense, pela Polícia Federal. Segundo a polícia, o irmão de Marcola estava comandando um esquema que adquiria grandes montantes de cocaína e maconha da Bolívia e do Paraguai, respectivamente, que entravam no Brasil pelas cidades sul-mato-grossenses de Corumbá e Ponta Porã, e de lá as drogas eram distribuídas em caminhões principalmente para as cidades de São Paulo e Fortaleza. Dos aeroportos dessas duas metrópoles e de portos próximos, como Santos (SP) e Pecém (CE), as mercadorias eram escoadas para a Europa (Túlio; Sena, 2016). 

Quando Alejandro Camacho Júnior foi preso, outro integrante da cúpula do PCC, Rogério Jeremias de Simone, o “Gegê do Mangue”, que estava foragido da Justiça desde o início de 2017, assumiu a vanguarda das rotas internacionais e também se estabeleceu no Ceará, com o capital simbólico de ser a maior liderança do PCC fora dos presídios. Ele tinha uma casa em nome de “laranja” num condomínio residencial em Aquiraz, região metropolitana de Fortaleza, avaliada em dois milhões de reais, carros importados, e levava uma vida nababesca no Estado, se apresentando socialmente como empresário do ramo da construção civil. No entanto, após suspeitas de que ele e seu comparsa, Fabiano Alves de Souza, o “Paca”, estivessem desviando recursos da facção para fins particulares e também em retaliação à morte de Edilson Borges Nogueira, o “Birosca” – amigo de Marcola –, em dezembro de 2017, ambos foram assassinados em feveireiro de 2018 pelo PCC em um episódio que lembra um filme hollywoodiano de ação

Em 15 de fevereiro de 2018, os dois foram resgatados em um helicóptero na cidade de Aquiraz para uma “missão” rumo à Bolívia, mas com apenas alguns minutos de voo, piloto e copiloto pousaram em uma clareira na mata de uma reserva indígena, ainda no município cearense da Grande Fortaleza. Ao descerem da aeronave, piloto e copiloto anunciaram o motivo da parada repentina e mataram Gegê e Paca com pistolas nove milímetros. Os corpos foram parcialmente queimados e escondidos na vegetação. O evento foi amplamente noticiado pela mídia brasileira e internacional. 

Poucos dias depois, Claudiney Rodrigues de Souza, o “Cláudio Boy”, foragido e procurado pela Interpol, considerado também um dos integrantes da cúpula do PCC, foi preso pela Polícia Federal em Guarulhos (SP), após desembarcar num voo que saíra de Fortaleza. Ele estava morando na capital cearense há seis anos e tinha se estabelecido como empresário do setor de serviços, transitando muitas vezes em eventos da high society fortalezense. Já em julho de 2018, outro membro graúdo do PCC, foragido da Justiça, Adriano Moreira da Silva, o “Adriano Mombaça”, de 36 anos, que agenciava a rota do comércio internacional de cocaína na fronteira da Bolívia com o Mato Grosso do Sul, foi preso no município do Crato, região sul do Ceará

Em maio de 2017, na operação “Fênix”, da Polícia Federal, realizada em cinco estados brasileiros (Ceará, Rondônia, Mato Grosso do Sul, Paraíba e Rio de Janeiro) e no Distrito Federal, o “braço-direito” de Fernandinho Beira-Mar, Marcos Marinho dos Santos, o “Chapolin”, foi preso em Fortaleza. Ele estava morando em um apartamento de luxo na Beira-Mar da capital cearense e daqui planejava e controlava a distribuição de armas e drogas em todo o Nordeste e o envio de cocaína para a Europa. Chapolin lavava o dinheiro ilícito através da compra de imóveis no Estado e também possuía duas lojas no centro da cidade

Um pouco antes desses episódios, em novembro de 2015, na operação da Polícia Federal “La Muralla”, com apoio da Interpol, sete integrantes da Família do Norte (FDN), facção de origem manauara que controla rotas fluviais amazônicas do comércio de drogas, foram presos no Ceará, incluindo Joleardes Celestino Lopes, de 28 anos, o “Giba”, apontado como um dos líderes da facção no Nordeste. Ele foi preso em um flat, na avenida Beira-Mar, o metro quadrado mais caro de Fortaleza. Ele se apresentava no Estado como empresário do setor da construção civil. Giba foi o principal intermediador na FDN nas negociações que levaram aos “acordos de paz” entre as facções no Ceará no segundo semestre de 2015. Em abril de 2017, Vainer de Matos Magalhães, 34 anos, o “Vainer Pepê”, um dos “cabeças” da FDN, foi executado a tiros de fuzil, na Praia do Futuro, zona leste de Fortaleza, quando saía de um condomínio no bairro.

A FDN então transferiu de Belém para Fortaleza outro de seus líderes, para comandar os negócios da facção no Estado: Petrus William Brandão Freire, de 29 anos, o “Playboy”, que tinha essa alcunha por ostentar riqueza nas redes sociais e ser oriundo de uma família de classe média alta de Belém. Petrus estudava Direito em uma das universidades mais caras de Fortaleza e era dono de uma empresa de aluguel de carros. Foi assassinado em janeiro de 2018 com mais de quarenta tiros quando saía de uma festa na Praia do Futuro

Em junho de 2017, na BR-116, na altura da cidade cearense de Russas, foi preso um dos líderes do Sindicato do Crime ou Sindicato RN, facção do Rio Grande do Norte, que promoveu em 2016 uma série de ataques públicos nas ruas de Natal e rebeliões nos presídios. Gilson Miranda da Silva, considerado o “braço financeiro” da organização potiguar, era foragido desde 2015 da Justiça do Rio Grande do Norte. Ele fazia uma viagem vindo da fronteira do Paraguai com Foz do Iguaçu, no Paraná, e dirigia em direção à capital cearense, quando foi abordado por agentes da Polícia Rodoviária Federal. Em julho do mesmo ano, na praia do Icaraí, em Caucaia, cidade da região metropolitana de Fortaleza, foi preso Francisco Magno da Silva, 32 anos, considerado o líder de um dos setores do Sindicato RN. Ele, que tinha vindo ao Ceará com a “missão” de estabelecer a facção no Estado, estava articulando, em diálogo com o CV e a GDE, a entrada da facção potiguar no comércio de armas e drogas no Ceará. O Sindicato do Crime, assim como a GDE, se caracteriza pelo apelo regional de seus membros, e surgiu de uma dissidência do PCC no Rio Grande do Norte

Todos estes extensos casos de prisões e assassinatos envolvem “peixes graúdos” dessas organizações, que estavam vivendo no Ceará e daqui comandavam os negócios e a operacionalidade de seus grupos criminais. Reportagem de julho de 2016 da revista Isto É sublinhava que “o Ceará virou a offshore da principal organização criminosa em atividade no Brasil, o PCC”.

Para justificar o envio de tropas federais ao Estado, o então ministro da Justiça Torquato Jardim salientou, em fevereiro de 2018, que “o Ceará é, para o crime organizado, o centro geográfico. Quem conquistar o Ceará conquista o Nordeste”. No mês seguinte, o então ministro da Segurança Pública, Raul Jungman, anunciou que o Ceará seria a sede do Centro Integrado de Inteligência do Nordeste, que pretende reunir todos os órgãos de segurança federais e estaduais, e cujas ações se voltarão para o “combate ao crime organizado”. A fala de Torquato Jardim e o anúncio de Jungman ilustram didaticamente esta nova configuração das relações criminais no Estado.

Outro fator que deve ser considerado para entender a capilarização desde a última década das facções no Ceará pode ter associação com a saturação ostensiva das forças policiais no sudeste, principalmente no Rio de Janeiro nos anos iniciais da política pública das UPPs. A cena, amplamente explorada pelas agências midiáticas, da fuga em massa de agentes criminais da Vila Cruzeiro, na zona norte do Rio, em direção ao complexo do Alemão, em 2010, após uma ocupação da polícia e das Forças Armadas naquela comunidade, pode funcionar como uma pista.

Eu não fazia qualquer aproximação entre esse processo e o fortalecimento das facções no Ceará. Mas, em conversa com Camaleão, varejista das drogas no Grande Tancredo Neves, não esqueço o que ele me falou: “Depois daquela guerra [no Rio], muitos vieram pro norte, pra cá”. Matutando sobre a fala de Camaleão, penso que esta é uma hipótese do trabalho empírico que não pode ser desconsiderada.  

Em resumo, são muitos os eventos que retratam a atual importância do Ceará para as relações criminais no Brasil, principalmente como ponto geográfico privilegiado para o escoamento de drogas para o mercados estadunidense e europeu. Neste sentido, as facções encontraram no Estado as condições objetivas favoráveis para se firmar localmente e conseguir cada vez mais novos adeptos, num processo de aperfeiçoamento e acomodação às particularidades dos fenômenos e dinâmicas culturais locais.  

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A série Antropologia do crime no Ceará é publicada semanalmente no #siteberro. Clique nos links abaixo para acessar os textos anteriores. 

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i. A dimensão ética na pesquisa de campo

ii. Pesquisando o “mundo do crime” e inserindo-se no “campo”

iii. Grande Tancredo Neves: formação dos territórios

iv. As relações sociais das camadas populares

v. A feira como arte da oralidade popular

vi. O favelês cearense

vii. Estabelecidos e outsiders: a favela dentro da favela

viii“Trabalhadores” e “bandidos”: entre separações e aproximações

ix. Sistema de relações sociais do crime: uma rede de ações criminais hierárquicas

x. “O dinheiro fala mais alto, [com ele] se torna mais fácil de fazer justiça”: A violência do aparelho judiciário

xi. “Não confio na polícia”: A relação de descrença entre a classe trabalhadora e os policiais

xii. A economia da corrupção que move a relação entre polícia e “bandidos”

xiii. “O crime nunca vai acabar por causa da polícia”: a participação policial decisiva nas relações criminais

xiv. Tecnopolítica da punição: A função econômica do encarceramento

xv. Estado punitivo-penal e a produção social da delinquência

xvi“Cadeia é uma máquina de fazer bandido”

xvii. A “escolha” é uma escolha? Compreendendo o ingresso nas relações criminais

xviii. Consumo, dinheiro e sexo: a tríade hedonista da carreira criminal

xix. Traumas, complexos e a luta por reconhecimento (parte I)

xx. Traumas, complexos e a luta por reconhecimento (parte II)

xxi. “Fura até o colete dos homi”: As armas como símbolo dominante

xxii. Os códigos morais da criminalidade favelada (parte I)

xxiii. Os códigos morais da criminalidade favelada (parte II) 

xxiv. “Mãezinha”: uma categoria local que põe em suspensão o ethos violento

xxv. “Pirangueiro”, “cabueta”, “boca de prata”, “corre de ganso”, “atrasa lado”: compreendendo algumas categorias negativadas da moralidade criminal 

xxvi. “O crack veio pra acabar com tudo”: o noia como um “zé ninguém”

xxvii. “Você conquista o respeito, você num impõe”: A liderança nas relações criminais 

xxviii. As “brigas de trono”: as disputas pelo comando territorial

xxix. Socialidade juvenil periférica em Fortaleza dos anos 1990/2000: Dos bailes funks às quadrilhas do tráfico

xxx. Crônica de uma guerra entre quadrilhas de “traficantes”

xxxi. O costume guerreiro da criminalidade pobre

xxxii. Traficante é aquele que nem pega na droga

xxxiii. O assaltante como um nômade das práticas criminais

xxxiv. “O cara num nasceu pra viver no crime o resto da vida não”

xxxv. Uma tentativa de diálogo entre a “vida nua” e a crueldade

xxxvi. A eficácia simbólica das facções

xxxvii. O contexto sócio-histórico e operacional das facções no Ceará

xxxviii. Guardiões do Estado: uma facção cearense com pretensões nacionais

xxxix. Esse negócio de gangue acabou-se: considerações sobre a paz

xl. Batismos de morte e o ethos do trabalho nas relações criminais (parte I)

xli. Batismos de morte e o ethos do trabalho nas relações criminais (parte II)

xlii. “A guerra voltou”: A Era das chacinas no Ceará

xliii. Pesquisando na “guerra”: a relação entre a coragem e o medo


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