Sistema de relações sociais do crime: uma rede de ações criminais hierárquicas 



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(Ilustração: Lara Albuquerque)

Quando se pensa em “mundo do crime” ou apenas “o crime”, ou ainda “violência urbana” e “crime organizado”, o que mecanicamente vem à cabeça? Quase sem exceção, surgem imagens mentais de jovens da criminalidade favelada empunhando fuzis; posicionando-se estrategicamente em morros e vielas labirínticas de alguma periferia brasileira para defender seus territórios e bocadas; disparando tiros contra a polícia e grupos rivais; transacionando armas e drogas; assaltando transeuntes, veículos, estabelecimentos comerciais, residências particulares… Toda uma estética cinematográfica da criminalidade pobre à la Cidade de Deus ou Tropa de Elite entra em cena e produz símbolos contra as classes populares – que passam a ser vistas como “classes perigosas” – a partir de expressões aparentemente neutras: “mundo do crime”, “violência urbana”, “crime organizado”. 

E se abandonássemos a expressão “mundo do crime” ao pensar sobre as relações criminais no Brasil? E se pontuássemos que essa expressão e suas correlatas têm mais colaborado para objetificar a criminalidade em tipos sociais pobres do que qualquer outro efeito? Não há um “mundo do crime” ou um “crime organizado” que resida em um local geográfico da cidade. Na verdade, o que existe na organização social do Brasil é um sistema de relações sociais do crime: um complexo em rede cheio de capilaridades que surge como erva daninha em infindáveis contextos, atravessando todos os segmentos socioeconômicos, dos mais vulneráveis aos muito privilegiados.

Ao trazer para o debate esse conceito de sistema de relações sociais do crime pretendo desnaturalizar o fenômeno “crime” em apenas um lugar moral da sociedade, dando-lhe um caráter processual e de continuidade hierárquica. Esta proposição busca demonstrar a implicação contundente que ocorre entre a criminalidade pobre, a de colarinho branco e a ação política do Estado. “Nem são apenas os jovens pobres que transgridem as leis. Seus crimes dificilmente existiriam, na escala que os caracteriza, não fosse a ação dos criminosos de colarinho branco”, revela Celso Athayde, em Cabeça de porco, livro produzido em parceria com Luiz Eduardo Soares e o rapper MV Bill, a partir de pesquisas, entrevistas e filmagens feitas em diversos estados brasileiros com jovens que aderiram à criminalidade pobre.  

Considero que há uma rede de relações sociais na qual as pessoas que praticam a criminalidade na favela e os “empresários” e “políticos” envolvidos em crimes de “colarinho branco” estão juntamente enredados, mas em condições bastante desiguais no que diz respeito aos métodos, instrumentos e tecnologias para desenvolver suas práticas criminais. O sistema de relações sociais do crime percorre um circuito de trocas desiguais que, via de regra, é um caminho piramidal pensado em termos dominantes de cima para baixo.

Concordando com William Foote Whyte, em Sociedade de esquina: a estrutura social de uma área urbana pobre e degradada, diria que “‘peixes graúdos’, os intermediários e os ‘peixes miúdos’ constituem uma hierarquia de relações pessoais baseadas num sistema de obrigações recíprocas”.

Esse “sistema de relações” é o próprio funcionamento geral da ordem: as pessoas com maiores recursos de poder simbólico – que dominam com exclusividade uma criminalidade de fraudes milionárias – estão no topo da pirâmide, enquanto aquelas com menores recursos materiais e fontes de poder são acionadas como “linhas de frente” e bodes-expiatórios nessas relações desiguais. Logo, o esquema direito-polícia-prisão-mídia-delinquência é a razão de existir do sistema de relações sociais do crime.

Vou traçar um exemplo básico: ao se analisar o tráfico varejista que ocorre nas favelas brasileiras, o sistema de relações sociais do crime incita a se pensar na mesma medida nas políticas estatais proibicionistas, sendo a mais conhecida delas a chamada “guerra às drogas”, política pública que tem como efeito mais devastador o aprisionamento massivo de centenas de milhares de jovens das classes populares. Como já verificou Foucault, em Vigiar e punir,  há uma função nesse encarceramento, e esta funcionalidade não se apresenta sob uma perspectiva humanitária, mas principalmente econômica e de controle. Quero dizer, portanto, que há uma anuência cínica do estatismo com o tráfico varejista porque o Estado precisa desta modalidade varejista ilegal para operar seus jogos econômicos e sua semiótica do poder, embora na oratória das autoridades públicas haja uma verborragia que fala em “guerra às drogas”. Analisando esta política pública, não há uma guerra às drogas, há uma guerra classista e racista contra as populações pobres. Sabe-se que grande parte do poder dos grupos dominantes reside justamente na capacidade de imposição de um discurso público que muitas vezes oculta e dissimula acerca dos seus reais interesses. A narrativa dominante faz calar tudo o que não lhe é conveniente. Como bem pontuou Guy Debord, em Sociedade do espetáculo, “o segredo domina este mundo, antes de tudo como segredo da dominação”. 

Noutra leitura desse sistema de relações, ao se observar o tráfico varejista das favelas, também implica analisar os grandes “barões das drogas”, estes pertencentes às elites socioeconômicas que lavam anualmente centenas de bilhões de dólares desse comércio ilícito no sistema financeiro de paraísos fiscais e também de megalópoles mundiais como Nova Iorque e Londres. Quero pontuar que há um fio em rede que liga: (i). a comemoração com fogos de artifício, churrasco, cerveja e futebol quando da chegada de drogas e armas na favela; (ii). aos jantares em mansões luxuosas regados a Veuve Clicquot, caviar, foie gras e charutos cubanos, onde se comemora o sucesso nos “negócios” ilícitos do mercado mundial de drogas. De acordo com Orlando Zaccone, delegado de polícia civil do Rio de Janeiro e pesquisador na área da sociologia da violência, em Acionistas do nada: quem são os traficantes de drogas?, “a atual política criminal de ‘combate’ às drogas, longe de eliminar o comércio de substâncias consideradas entorpecentes, acaba por reforçar e concentrar o grande negócio do tráfico nas mãos dos grandes grupos econômicos e financeiros”.

Em conversa com Camaleão, 31 anos, que trabalha com o comércio de drogas no Grande Tancredo Neves (GTN), ele ajuda a ilustrar com precisão a análise: “Eu sou avião. Bote aí que eu sou avião [diz ele, apontando para o diário de campo]. Sou traficante não. Traficante é aquele que nem pega na droga”. É justamente nesse contexto que Antonio Rafael Barbosa, em Les études sur la violence et la criminalité au Brésil et les processus de “pacification” dans deux métropoles brésiliennes (não traduzido em português, mas em tradução livre: Estudos sobre a violência e a criminalidade no Brasil e os processos de pacificação em duas metrópoles brasileiras), publicado no dossiê Brésil(s): sciences humaines et sociales – Dossier: ce que l’anthropologie doit au Brésil: terrains et théories, afirma que não existe um “tráfico de drogas” operado unicamente pelos varejistas das camadas populares, marginalizados sob a pecha de “crime organizado”. Segundo este autor, esses muitos tráficos são redes segmentárias que se conectam. 

O tráfico de drogas internacional, escoado pelos grandes portos e aeroportos em todo o planeta, é provavelmente a atividade mais lucrativa do mundo. No livro Zero, Zero, Zero, referência à farinha de trigo mais pura da Itália e uma alusão óbvia ao pó da cocaína, o escritor Roberto Saviano – mesmo autor do best-seller Gomorra, no qual detalha o modo de operação da máfia napolitana, que o faz viver há quase uma década sob forte vigilância em endereço desconhecido – diz que um quilo de coca pura sai por 1,5 mil dólares da Colômbia, país que produz a droga, e chega a custar até 77 mil dólares no Reino Unido, uma valorização de mais de cinquenta vezes. Segundo Saviano, Nova Iorque e Londres são hoje as duas maiores lavanderias do mundo, atuando com complexos sistemas de lavagem de dinheiro, que envolvem compra de ações, empréstimos interbancários, emissão de títulos eletrônicos, entre outras modalidades virtuais do sistema financeiro. Ou seja, é uma evidência que os lucros mais vultosos do tráfico de drogas não estão nas favelas, mas nas veias irrigadas a dinheiro ilícito do sistema financeiro internacional, por onde transita uma desenvolvida e diversificada economia da corrupção. 

Em janeiro de 1988, no auge de seu poderio, mas também de sua demonização pela mídia, pela opinião pública e pelas agências do Estado, os cartéis de drogas colombianos, num rompante de extrema sinceridade, publicaram um comunicado no qual sublinhavam que não eram a única organização criminosa do país: “‘Nós não pertencemos à máfia burocrática e política, nem à dos banqueiros e financistas, nem à dos milionários, nem à dos altíssimos contratos fraudulentos, nem à dos monopólios ou à do petróleo, nem à dos grandes meios de comunicação’”. 

Considero que a maior pretensão monopólica do Estado não é a da violência em si mesma, mas a da atividade mafiosa. A máfia estatal está incrustada em todas as áreas, instâncias e departamentos do Estado-nação contemporâneo. Este somente funciona porque é alimentado por sua máfia interna que estabelece relações com as atividades mafiosas empresariais, perfazendo um circuito estatal-empresarial. 

Analisando a esfera criminal em seu estudo sobre a pistolagem nos sertões nordestinos, César Barreira, em Crimes por encomenda: violência e pistolagem no cenário brasileiro, verificou que há criminosos implacáveis, mandantes de assassinatos de desafetos, entre latifundiários, empresários, industriosos e políticos cearenses. Nesses tipos de ações criminosas, há uma notável desigualdade de capitais simbólicos entre quem encomenda o crime e quem o executa. Estas pessoas estão conectadas pelo sistema de relações sociais do crime, mas aos primeiros cabe a discrição, o anonimato e a insuspeição, ao passo que a força punitiva das leis seleciona apenas os “pistoleiros” para sofrerem as consequências penais. 

Está evidenciado, em diversos exemplos,  que a atividade criminal não é exclusiva a nenhum setor social, ela se esparrama indistintamente entre diversos grupos, territórios e regiões morais, mas que, atuando como racionalidade objetiva e instrumental, há um “sistema” que opera lutas sociais por poder e privilégios, conservando assim as desigualdades econômicas e de representação entre a criminalidade pobre e a de colarinho branco. 

Vou contar um caso emblemático que exemplifica as assimetrias do sistema de relações sociais do crime. Pango, traficante de armas e drogas e “patrão” de um território do GTN, foi “convidado” para realizar um roubo de cargas, avaliadas entre 500 mil e um milhão de reais. Sua missão era montar uma equipe de ladrões e financiar os carros e as armas para o evento. Um caminhão já “copiado” seria interceptado em um local estrategicamente favorável à ação e toda sua carga roubada. Os “ladrões” que trabalhariam nessa empreitada para Pango são seus “funcionários”, subordinados econômica e simbolicamente à sua liderança. Mas a escala hierárquica desse roubo não finda em Pango. Na verdade, ele está na base desse jogo de troca de favores recíprocos e interpessoais. O convite para Pango veio de empresários sócios de um lava-jato na Cidade dos Funcionários, bairro classe-mediano de Fortaleza, vizinho ao GTN.

Descrevo agora parte da minha conversa com Pango. Pergunto-lhe sobre essa modalidade de roubo. “Dá dinheiro… e tem uns cara que já é vivido nisso, e já é de muito tempo… conheço os cara! Tu é doido, os cara empresário, bichão mesmo, que tem [faz o gesto clássico do dinheiro: dedo médio esfregando no polegar]. Ninguém nem imagina. Bichão mesmo! Eu quero que tu veja os cara mah! [E como é que tu teve contato com eles?] Eles viram o pivete aqui, que é correria meu, aí ele citou meu nome.. aí eles disseram “macho, eu conheço esse cara, já ouvi falar muito dele, traz esse cara aí, ele comanda lá, né… pra ver se ele tem uma equipe boa”. Aí eu fui lá né… Fui lá e conversemo lá no escritório dele. Tu é doido, mah, eles quebraram foi as Casas Bahia… de roubo de muito mah… [Então tem um informante dentro das Casas Bahia, né?] Tem… e tem carga de fora também. E eles já têm comprador, pra outros mais bichão do que eles. Eu já roubo pra eles, e eles já têm um comprador mais alto do que eles, aí eles manda minha comissão. Eu também num pergunto quem é, mas o negócio deles lá é de ganhar muito dinheiro”. 

Nesse episódio, exemplificado sinteticamente nas falas “eu já roubo pra eles, e eles já têm um comprador mais alto do que eles”, que é “mais bichão do que eles”, podemos perceber como um evento aparentemente realizado de maneira exclusiva por pessoas de um setor socioecônômico envolve cinco patamares distintos na escala do sistema de relações sociais do crime:

i. Os “ladrões” de Pango estão na base do sistema, são os “linhas de frente”, os bodes-expiatórios, aqueles que, pelos contextos situacionais, precisam recorrer aos métodos mais violentos e por isso estão expostos aos maiores perigos de um possível enfrentamento com os aparatos policiais, bem como, inversamente proporcional aos riscos de sua atividade, são os que recebem as menores quantias do lucro do roubo;

ii. Pango vem logo em seguida nessa cadeia hierárquica, já que financiaria os carros e as armas para a empreitada e simbolicamente carrega a áurea de “patrão” da localidade, mas está submetido aos demais planejadores do assalto;

iii. acima de Pango nesse gradiente escalonado está a “fonte” de dentro da empresa que será roubada, que forneceu aos empresários os detalhes do volume das cargas, horários e datas em que elas estariam em trânsito;

iv. na sequência dessa escada criminal, estão os empresários donos do lava-jato, que convidaram Pango para uma conversa em seu escritório já com as informações repassadas por seu “informante”;

v. o “comprador mais alto do que eles”, nesse contexto, é supostamente o topo dessa pirâmide criminal. A ele, que sequer aparece anteriormente em toda a transação, são destinadas as mais vultosas montas do lucro obtido.

É provável – infiro como hipótese – que esse comprador “mais bichão do que eles” estabeleça negócios com os altos setores do Estado nas formas “legais” de parcerias público-privadas, bem como na ilegalidade da economia da corrupção (contratos fraudulentos, obras superfaturadas, sonegação de impostos, evasões fiscais etc.). O evento que me foi narrado por Pango somente ocorre porque funciona como pano de fundo a engrenagem do sistema de relações sociais do crime, esse complexo de ações criminais que conecta uma rede de pessoas que, não fosse pelas atividades delitivas, não estabeleceriam inter-relações pessoais.

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A série “Antropologia do crime no Ceará” é publicada semanalmente no #siteberro. Veja abaixo os textos anteriores. 

i. A dimensão ética na pesquisa de campo

ii. Pesquisando o “mundo do crime” e inserindo-se no “campo”

iii. Grande Tancredo Neves: formação dos territórios

iv. As relações sociais das camadas populares

v. A feira como arte da oralidade popular

v. O favelês cearense

vi. Estabelecidos e outsiders: a favela dentro da favela

vii. “Trabalhadores” e “bandidos”: entre separações e aproximações