“Fura até o colete dos homi”: As armas como símbolo dominante



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(Montagem: Juliana Lima)

Quanto ao uso indiscriminado de armas de fogo para a realização de atividades criminais por sujeitos pobres, vale a reflexão: seriam as armas o “símbolo dominante” desse tipo específico de criminalidade? De acordo com o antropólogo Victor Turner, em Floresta de símbolos: aspectos do ritual Ndembu, os símbolos dominantes tendem a serem fins em si mesmos, são dotados de uma eficácia simbólica tão forte que prescindem de intenções e semânticas acessórias.

É de certa forma até um lugar-comum dizer que a arma, para os indivíduos com quem pesquiso, é um fetiche que envolve desejos libidinais e representações coletivas que remontam a recursos materiais e simbólicos de poder e domínio sobre outros, não apenas facções rivais, mas segmentos de “trabalhadores” e “cumades” da própria comunidade. 

Se a arma estabelece de alguma maneira uma relação com a libido, é exatamente no seu valor erótico como extensão de seus corpos, na sua função fálica (quase) infalível, potente em si mesma. O tiro é o gozo sinestésico desta semiótica. (Estas considerações que pensam a arma como símbolo fálico foram pioneiramente tratadas pela antropóloga Alba Zaluar, nos anos de 1980, no seu icônico trabalho etnográfico na Cidade de Deus, no Rio de Janeiro, chamado A máquina e a revolta: as organizações populares e o significado da pobreza).  

Eles têm com os “ferros” uma relação quase devota e um orgulho indisfarçável ao falarem ou exibirem suas “máquinas”. Lembro quando João interrompeu nossa conversa para ir ao quarto pegar sua pistola para me mostrar. Ele “lambia sua cria”.

A forma como ele atribuía valor àquele objeto transcendia a dimensão material. Havia uma projeção idealizada de si naquele gesto. A máquina era ele também, parte relevante do que ele era.

Ele e a pistola estavam integrados numa espécie de mutualismo simbiótico, relação em que ambos os envolvidos (homem e arma) obtêm vantagens. Não é mais apenas o agente que produz ação social, mas também a coisa

Bruno Latour pensou sobre a imaterialidade das coisas materiais, sobre a ação social dos objetos, de como estes produzem efeitos em uma rede de ações. No esquema “teoria-ator-rede”, o sociólogo defende que a análise da ação social precisa ser também estendida aos objetos, ou seja, há um compósito na prática, na arte de fazer; esta não deve ser mais pensada tão-somente como restrita aos seres humanos, mas também vinculada às coisas não humanas, como as máquinas, os artefatos, os micróbios etc. De acordo com Latour, “não são nem as pessoas nem as armas que matam. A responsabilidade pela ação deve ser dividida entre os vários atuantes”.

Possuir e saber manusear uma arma são, possivelmente, as maiores coações às quais estão submetidos os jovens envolvidos em atividades delitivas nas periferias dos médios e grandes centros urbanos do século XXI. Um “bandido” sem arma pode até estar no jogo, mas se situa na categoria “café-com-leite”, em outras palavras, ele não é considerado como um legítimo partícipe das relações criminais.

O “bandido” sem arma é uma subcategoria marginalizada dentro das relações criminais.

Calcado em observações empíricas, arrisco dizer que a arma, para os agentes criminais pobres, tem o mesmo simbolismo que a “árvore leiteira” para o povo Ndembu pesquisado por Victor Turner, configurando-se, portanto, como símbolo dominante em universos criminais pauperizados.

Dentre as “árvores leiteiras”, há uma cuja eficácia material se impõe como objeto de maior desejo entre os agentes da criminalidade favelada: a pistola nove milímetros, de uso teoricamente restrito às forças armadas. “Tu é doido, a nove é cruel mah. Melhor que tem, onde pega fura, fura até os colete dos homi [policiais]. Num tem pra ninguém não, quando uma nove tá no meio, acabou-se, até a polícia sai do mêi mah”, me relata Pango. Raposão complementa-o: “A nove milímetros é a que perfura o colete, entendeu? É específica pra matar policial”. Embebecido com a sua atual habilidade em manipular o objeto e com todos os lucros simbólicos que essa perícia manual evoca, Raposão assevera que nem sempre foi assim.

Ele me narrou a seguinte história: “Uma certa vez eu fui tomar uma pistola de um cara, eu tava com a pistola, ele reagiu e eu atirei, aí a pistola só saiu um tiro e engasgou. A sorte que eu tinha acertado num canto fatal e o cara morreu, mas se fosse precisar pra trocar [tiros] eu tinha morrido. Aí desde esse dia eu cheguei, fui pro Youtube e comecei a estudar, estudar, estudar, me aprofundei. Aprendi a montar e desmontar qualquer pistola de qualquer marca, egípcia, russa, japonesa, australiana, brasileira… todas. Pra aprender a trocar [tiros] mesmo, furar de bala prum lado e pro outro. Engraçado que teve um tempo que eu pensei assim “Pô, mah, nunca sabia que eu era tão bom nisso”… É, ó, mah. Não sabia que eu era tão bom, tinha habilidade pra trabalhar com arma, atirar bem, pular duma moto em movimento, sair correndo e papapapapá, e pulava na garupa de novo. Entendeu? É tipo, sei lá, eu vou dizer: um dom, né?”. 

No GTN, o “aluguel” de uma arma custa de 50 a 100 reais, dependendo das relações de confiança e reciprocidade entre o dono do “maquinário” e o usuário ocasional. Geralmente, o “empréstimo” é feito por algumas horas para uma específica “missão”, muitas vezes os “locatários” são jovens assaltantes incipientes.

No tráfico de armas, os preços variam de acordo com circunstâncias como: a quantidade de “maquinário” a ser adquirido; o lugar simbólico do comprador em relação ao fornecedor nas relações criminais – quanto mais “patrão”, melhores os contatos e os preços junto aos fornecedores –; bem como de acordo com questões geográficas – uma arma nas fronteiras com o Paraguai ou a Bolívia é bem mais barata do que uma já circulante pelo território brasileiro.

Meus interlocutores falaram preços variados de acordo com suas posições nas relações do crime. Papagaio consegue uma pistola ponto 40 por sete mil reais, um “oitão” por três mil reais, uma pistola 380 por três mil e quinhentos: “mas a 380 depende do reforço dela. Se for um cano reforçado, se for um TA, um 357 ventilado, aí tá de cinco mil pra cima. Uma nove milímetro eu consigo pra tu, dependendo da capacidade de tiro dela, 16 mais 1, 20 mais 1, ela pode chegar até nove mil [reais]”.

Por sua vez, João conseguia comprar um “oitão” mais barato, por dois mil e quinhentos, mas a 380 saía por seis mil reais e a ponto 40 também por sete mil. Raposão me contou que uma Glock G25 calibre nove milímetros, por ser mais difícil de conseguir, podia chegar até doze mil reais, “porque ela tem uma precisão muito boa, um alcance muito bom e atira até debaixo d’água”.

Pango, “patrão” de um território no Grande Tancredo Neves,  foi quem me apresentou os melhores “canais” para adquirir armas ilegalmente. Ele envia seus subordinados para comprá-las na região fronteiriça entre Brasil e Paraguai, e consegue preços bem melhores do que os demais. Da última vez, conta Pango, “gastei de trinta e cinco mil a quarenta pra mandar os menino lá. [Por que tudo isso?] Gasolina, pousada, trinta mil era do maquinário, era umas dez pistola, com uns oitão que vinha… aqui já é mais caro, né? Pistola custa uma faixa de seis mil… lá é três mil, quatro conto, depende”.

De certa forma, é um clichê inescapável atribuir um fetiche às armas de fogo. Entretanto, esta fetichização não é própria dos agentes pobres. O cidadão de bem “sempre teve uma arma ilegal em sua mesa de cabeceira”, pontua Michel Misse. A arma, ao representar esta dimensão fálica, está inserida no contexto de um ethos machista da sociedade patriarcal brasileira.

As armas sempre estiveram presentes em toda a história nacional como objeto de poder e subjugação extralegal: nas cinturas dos donatários de terras da Coroa Portuguesa, dos bandeirantes, dos senhores de engenho, dos capatazes, dos capitães do mato, dos “coronéis” nordestinos, dos atuais latifundiários e seus capangas etc.

Em suma, sabe-se que o aumento exponencial na circulação de armas nas últimas duas a três décadas no Brasil, principalmente sem registro ou adulteradas, tem relação causal com as altas taxas de homicídios, principalmente de jovens das camadas populares. Essa é uma obviedade lugar-comum. Contudo, analisando a presença maciça destes “maquinários” nas favelas dos grandes centros urbanos, é importante não perder de vista que o acesso a estes objetos é facilitado ilegalmente pelas agências militares (polícias estaduais e Forças Armadas), como já foi abordado em outros textos da série.

O percurso de uma arma importada como um fuzil até uma favela é longo e atravessado por “mercadorias políticas”. Quero dizer que para que uma arma – como um fuzil AK-47, sequer produzida no Brasil, ou uma pistola 9mm, de uso restrito às forças de segurança – chegue a uma comunidade pauperizada, não há outro caminho senão escoar obrigatoriamente pelas muitas facilitações do sistema de relações sociais do crime, desde suas instâncias no estatismo, bem como no empresariado. É relevante lembrar que o mercado de armas convencionais (excluindo as militares) é uma atividade que envolve bilhões de dólares anualmente. Por fim, na ponta mais vulnerável do processo, as maiores vítimas deste ciclo de corrupção são os “compradores” do mercado clandestino, quero dizer, os praticantes da criminalidade favelada, os mais atingidos pelos crimes intencionais letais praticados com armas de fogo.

Dessa forma, penso que a leitura a ser feita nesse contexto deve caminhar pelas trilhas de uma crítica radical às maneiras de operação das empresas armamentistas e do estatismo; este desconversa sobre o desarmamento, mas manobra para auferir lucros monetários e de representação com a cadeia armamentista. Diante dessa configuração, é preciso perceber que, para além da reificação da criminalidade favelada – com estereótipos de jovens empunhando fuzis – “por trás de uma arma, tem um coração batendo”, como afirma Celso Athayde em Cabeça de porco

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A série “Antropologia do crime no Ceará é publicada semanalmente no #siteberro. Veja abaixo os textos anteriores. 

artur@revistaberro.com / revistaberro@revistaberro.com

i. A dimensão ética na pesquisa de campo

ii. Pesquisando o “mundo do crime” e inserindo-se no “campo”

iii. Grande Tancredo Neves: formação dos territórios

iv. As relações sociais das camadas populares

v. A feira como arte da oralidade popular

vi. O favelês cearense

vii. Estabelecidos e outsiders: a favela dentro da favela

viii“Trabalhadores” e “bandidos”: entre separações e aproximações

ix. Sistema de relações sociais do crime: uma rede de ações criminais hierárquicas

x. “O dinheiro fala mais alto, [com ele] se torna mais fácil de fazer justiça”: A violência do aparelho judiciário

xi. “Não confio na polícia”: A relação de descrença entre a classe trabalhadora e os policiais

xii. A economia da corrupção que move a relação entre polícia e “bandidos”

xiii. “O crime nunca vai acabar por causa da polícia”: a participação policial decisiva nas relações criminais

xiv. Tecnopolítica da punição: A função econômica do encarceramento

xv. Estado punitivo-penal e a produção social da delinquência

xvi“Cadeia é uma máquina de fazer bandido”

xvii. A “escolha” é uma escolha? Compreendendo o ingresso nas relações criminais

xviii. Consumo, dinheiro e sexo: a tríade hedonista da carreira criminal

xix. Traumas, complexos e a luta por reconhecimento (parte I)

xx. Traumas, complexos e a luta por reconhecimento (parte II)


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