Consumo, dinheiro e sexo: a tríade hedonista da carreira criminal



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(Ilustração: Juliana Lima)

Dando continuidade à análise dos contextos que influenciam nas tomadas decisão para ingressar na carreira criminal nas favelas, outra configuração que se apresenta como mola propulsora para a “escolha” pela ação delitiva são as muitas coações que imperam na contemporânea sociedade do consumo, na qual consumir é sinônimo de felicidade e vida plena. Henri Lefebvre, em O direito à cidade, denunciou que as cidades da modernidade tardia sobrevivem desse duplo-movimento: lugar de consumo e consumo de lugar. Félix Guattari, em Espaço e poder: a criação de territórios na cidade, é enfático ao afirmar que o mecanismo do consumo funciona como um método de suplemento psíquico.

É bem verdade que somente se chegou a esse estado de consumo desenfreado a partir das técnicas cada vez mais psicológicas da publicidade. A Black Friday disseminada em todo o mundo é um exemplo emblemático de ondas de excitação fervorosas e entusiásticas formadas a partir de dispositivos publicitários. São momentos aterradores de transes coletivos, nos quais o fetichismo consumista se traveste ao modo de uma louvação religiosa: aqui, deus é a própria mercadoria. Um dos métodos estratégicos do marketing publicitário, talvez o de maior eficácia, seja a obsolescência programada: a profusão espetaculosa de “objetos de desejo” e “sonhos de consumo” propagados nos meios de comunicação de massa, nos outdoors, no cinema, na internet, etc. que, vítimas da sua inerente inutilidade, entram em desuso cada vez mais rápido. De modo ágil, são freneticamente substituídos por outros produtos tão inúteis quanto os anteriores, embora estes tragam em seu bojo o atestado de novidade: “Cada nova mentira da publicidade é também a confissão da mentira anterior” disse Guy Debord, em A sociedade do espetáculo.

Nesse sentido, é fundamental ao capitalismo financeiro do século XXI que as massas pobres também adiram cumplicemente, através do consumo, à realidade que as fez pobres. A pobreza foi empurrada às compras: vejam o pipocar de shoppings centers em bairros periféricos Brasil afora: “A palavra exclusão conta apenas metade do processo, mas não conta a consequência mais problemática da economia atual, que é a inclusão degradada do ser humano no processo de reprodução ampliada do capital”, argumenta o sociólogo José de Souza Martins, em A sociedade vista do abismo: novos estudos sobre exclusão, pobreza e classes sociais. As massas populares descobriram que consumir, no espetáculo capitalista, é também um passaporte para a construção de uma aparente dignidade – mas esta é tão fugaz como uma estrela cadente.

Dessa forma, na contemporaneidade, o consumo alienado se converteu para os segmentos populares como uma obrigação adicional ao trabalho alienado.

No Brasil, neste século, tanto os governos de centro-esquerda (Lula e Dilma) quanto os de direita (FHC e Temer) e de extrema-direita (Bolsonaro) estimularam esse processo e então se produziu uma inclusão esquizofrênica: “pessoas que teoricamente não têm o que comer têm telefone celular, ou que não têm propriamente onde morar têm carro”, atesta Martins.

Guy Debord sustenta que na primeira etapa da dominação do monopólio econômico sobre a vida social presenciou-se um deslizamento nas relações humanas do ser para o ter. No espetáculo atual, em que toda a vida está completamente dominada pelas dinâmicas exclusivistas da economia financeira, há um agravamento ainda mais desumanizador: passa-se do ter para o parecer. Portanto, aparentar – apenas aparentar – um padrão burguês de consumo é o novo way of life da pós-modernidade.

Entretanto, o jogo das possibilidades de consumo é demarcado pelo deus-dinheiro. Há um óbvio limite monetário que as populações pobres não alcançam, nem mesmo na tentativa da imitação superficial. Se a essência do problema reside justamente no fato de que ricos e pobres desejam os mesmos objetos de consumo, a ilusão publicitária é uma craque nessa mediação: ao tempo em que aparece quase onipresente – aos gritos histéricos – nas tevês, rádios, jornais, outdoors e demais meios de propaganda convidando às compras e dizendo “todos podem”; na pragmática real, ela cochicha bem baixinho, num quase mutismo, para que ninguém ouça: “poucos podem”. 

Todavia, existe uma ilha rebelde de irresignação nesse oceano de conformidade. Nesta ilha, os coqueiros são pistolas e fuzis apontados na direção de todos aqueles que lhes negam as oportunidades de possuir os recursos materiais e simbólicos que desejam. Se o apelo à imagem é a galinha dos ovos de ouro da pós-modernidade, os objetos de consumo tornam-se extensões estético-visuais de seus donos: os carros, celulares, aparelhos de tevê, roupas de grife, relógios, óculos escuros, joias etc. não são mais coisas em si mesmas, mas projeções idealizadas de seus possuidores. É como diz Pango: “Troco o visual, pinto o cabelo, boto óculos, me visto todo na grife”.  Papagaio também ajuda a contar essa história: “Eu ganhava aqui mil real por semana, só pra mim, eu pintava e bordava. Tu é doido mah, era cruel, todo final de semana eu tava no shopping comprando roupa de marca, essas roupa aqui ó… era Maresia, era Smolder, era Cyclone, era chinelo, era meio mundo de roupa mah.” [Além de roupa, o que mais tu chegou a comprar?] Televisão, joia, bujão[botijão de gás], fogão, uma cinquentinha [motocicleta 50cc]… perdi foi tudo. Eu tinha três cordão de prata, três pulseira, uma aliança de ouro, uma tevê destamanho aqui ó… tinha moto…”. 

Assim, se a privação monetária se impõe como maldição insuperável para a obtenção destes meios projecionais, eis que os “bandidos” das favelas deslocam as regras do jogo à força violenta, subvertendo-as às suas necessidades libidinais, aos seus desejos de consumo.

Em outras palavras, eles não querem acabar com o jogo, mas jogá-lo da melhor maneira que lhes convier, para isso alterando e descumprindo suas normas. 

Entretanto, para além do consumismo, há um fetiche que se sobrepõe a todos os demais: “a fome canina do dinheiro”, como disse Marx, n’O capital. O dinheiro se apresenta como fim em si mesmo, ele não necessita do consumo para fazer valer sua potência simbólica: “O espetáculo estende a toda a vida o princípio que Hegel concebe como o do dinheiro: ‘é a vida do que está morto se movendo em si mesma’”, diz Debord. A única necessidade do dinheiro, que se opõe à vida, é a necessidade de reproduzir-se feito metástase, não mais apenas em modo físico, mas também virtual, invisível, criptografado. Nas relações sociais da modernidade tardia do século XXI, o dinheiro tem valor de transcendência tal qual um deus onipotente. Não é que ele possibilita consumir, é que ele possibilita ser. Carlos, trabalhador desempregado de um dos territórios do Grande Tancredo Neves, exemplifica esta análise: “Hoje em dia, tudo gira em torno de quem tem dinheiro, quem tem mais dinheiro, tem mais, é como se, assim, tem mais direitos, tem mais liberdade, tem mais praticamente tudo né”.

De acordo com o antropólogo Leonardo Sá, em Guerra, mundão e consideração: uma etnografia das relações sociais dos jovens no Serviluz, “a ideologia hegemônica do make money tem uma versão favelada na boca dos traficantes”. Na nossa conversa realizado na seu barraco, João, assaltante e traficante varejista, me falou estas palavras cortantes:

“O dinheiro é cruel, pivete. O cara rouba, mata e destrói por causa dele. O que manda na mente do ser humano é o real, é a céda [cédula]”.

Fica cristalino que o tráfico varejista de drogas ou as modalidades de assalto são sedutoras aos praticantes criminais pobres porque elas têm como objetivo primordial a capitalização, e estes rendimentos, mesmo entre os “bandidos” incipientes, são na grande maioria dos casos bem superiores aos obtidos em empregos nas subcategorias do mercado de trabalho capitalista.

É recorrente em suas narrativas a louvação a uma forma perdulária de gastar o dinheiro obtido no tráfico e nos assaltos. Quase regra geral, esgota-se apressadamente o que se ganha, pouco ou nada é economizado, “já que a ética que informa a opção por esse tipo de vida não é econômica, mas hedonista e voraz”, avalia o sociólogo Michel  Misse, em Crime e violência no Brasil contemporâneo: Estudos de sociologia do crime e da violência urbana.

Geralmente, se gasta em farras regadas a álcool, cocaína, maconha e sexo. Pergunto a Prensado, 31 anos, ex-assaltante e ex-traficante varejista de drogas, o que ele fazia com o dinheiro do “crime”. Ele primeiramente solta uma gargalhada, respira e depois prossegue: “Parece que tá falando é minha língua. Ia raparigar! É bom demais! Ei, o cara que vive numa vida dessa é estressante, parceiro. É estressante porque sempre tem um que estressa o cara, aí o cara pra deixar o estresse pra lá vai raparigar. É igual terapia, o cara num faz terapia pra tirar o estresse, eu vou tirar o estresse com rapariga, sair com as cumade, tomar umas cervejas, tá entendendo? Ir prum forró, levar a cumade prum cabaré, uma casa pra passar a noite, só pra trocar o óleo, né? Muié é bom demais (risos).

Prensado me contou que no auge da sua carreira criminal chegou a ganhar cerca de quinze mil reais por mês somente com o tráfico. Mas o ritmo de gastança não lhe permitiu juntar economias nem transformar economicamente sua vida.

“Com 14 anos entrei nessa vida, comecei a vender [maconha e crack]. Dinheiro fácil, aí gostei, né, parceiro? Eu era pra ser o homem mais rico dessa Vila Cazumba, era pra ter uma casa, um carro bom, mas rapariguei demais. Dinheiro fácil vai fácil, parceiro”. 

No entanto, contrariando o quadro geral, há exceções que conseguem escapar, em parte, à dinâmica de gastança e empreendem estrategicamente métodos capitalistas de rentismo como a compra de bens imóveis e a posterior monetarização destes através de locação ou arrendamento. Estas exceções estão quase sempre situadas no campo gravitacional dos “patrões” dos territórios, mas, às vezes, elas surgem entre seus subordinados, como é o caso de Samurai, que nas relações sociais do crime no GTN está submetido a uma relação fiduciária com Pango; quero dizer que parte considerável das drogas vendidas por Samurai é fornecida por aquele. Depois de negociá-las, portanto, Samurai deve prestar contas com seu “patrão”. Ainda assim, Samurai, em épocas que o consumo de cocaína aumenta, geralmente no final do ano, no momento das férias escolares e universitárias e período de festas, consegue arrecadar líquidos dois mil e quinhentos reais por semana, o que lhe garante dez mil reais por mês. Os valores brutos chegam a seis mil reais por semana, porém mais da metade fica com o seu fornecedor, no caso, Pango. Samurai conta que gastou vinte e cinco mil reais na reforma da casa da mãe, e que também comprou “duas casinha”, para arrecadar “um aluguel aqui e outro acolá”.         

Por outro lado, no que diz respeito às dinâmicas da liderança, vale destacar que um dos mecanismos que mais conferem eficácia simbólica à autoridade dos “patrões” nas relações criminais é o poder de esbanjar dinheiro e “bancar” a festa de seus subordinados, provendo-lhes bebidas, drogas e mulheres. De maneira óbvia, estas “generosidades” criam, eficientemente, obrigações de respeito e consideração por parte daqueles que delas se beneficiam. Em outras palavras, isso quer dizer que o alicerce do sistema de relações sociais do crime está consolidado de uma maneira que o líder de qualquer grupo criminal está interpelado pela estrutura a cumprir com certos padrões comportamentais – como o de provedor material de seus subordinados –  que mantêm-na em estável funcionamento. Dito ainda de outra forma, é quase impossível que um “patrão” seja respeitado e mantenha seu status sem gastar com seus trabalhadores, para além dos “salários”.

Em relação a outra motivação para o ingresso nas atividades delitivas, a conquista sexual é um objeto de sedução valorizado e faz parte do investimento nas relações criminais. Tornar-se “bandido” no Grande Tancredo Neves, e por extensão nas favelas brasileiras, é um chamariz magnético para o sexo feminino. Há toda uma estética da bandidagem favelada que atrai feito ímã parte considerável das garotas. O simbolismo de manejar poder, dinheiro, objetos de consumo e armas em condições de subalternidade talvez seja a principal associação que explique esse magnetismo. Tanto é assim que “pau de revólver” é “como os jovens classificam em claro recorte de gênero os envolvidos que são admirados e queridos pelas mulheres justamente por serem valentes, temidos, perigosos e bandidos”, disse Leonardo Sá, a partir de sua pesquisa no Serviluz, bairro periférico da zona leste de Fortaleza. 

Pergunto a Papagaio o que ele conseguiu com o dinheiro do tráfico, além de roupas, motos e acessórios: “Várias mulheres ó, mah. Várias mulheres [riso orgulhoso]. No forró, eu ia, aí chamava minha namorada, tinha que andar no forró assim [abraçado com ela], num podia olhar pra ninguém, porque várias olhavam”.

De forma geral, o hedonismo da sociedade do consumo contemporânea transfere a perspectiva de longo prazo dos praticantes da criminalidade favelada para o campo do irreal. Por mais que alguns deles pensem em termos de futuro, na maioria das vezes são apenas expectativas descompromissadas, não são desejos que parecem ter força e vontade de realização. Vivem fugacidades regadas a dinheiro, sexo e consumo de supérfluos. Até o dia em que sejam presos ou mortos precocemente: “Celebra-se um pacto fáustico: o jovem troca seu futuro, sua alma, seu destino, por um momento de glória, um momento fugaz de glória vã”, finaliza Celso Athayde, em Cabeça de porco.    

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A série “Antropologia do crime no Ceará” é publicada semanalmente no #siteberro. Veja abaixo os textos anteriores. 

artur@revistaberro.com

i. A dimensão ética na pesquisa de campo

ii. Pesquisando o “mundo do crime” e inserindo-se no “campo”

iii. Grande Tancredo Neves: formação dos territórios

iv. As relações sociais das camadas populares

v. A feira como arte da oralidade popular

vi. O favelês cearense

vii. Estabelecidos e outsiders: a favela dentro da favela

viii“Trabalhadores” e “bandidos”: entre separações e aproximações

ix. Sistema de relações sociais do crime: uma rede de ações criminais hierárquicas

x. “O dinheiro fala mais alto, [com ele] se torna mais fácil de fazer justiça”: A violência do aparelho judiciário

xi. “Não confio na polícia”: A relação de descrença entre a classe trabalhadora e os policiais

xii. A economia da corrupção que move a relação entre polícia e “bandidos”

xiii. “O crime nunca vai acabar por causa da polícia”: a participação policial decisiva nas relações criminais

xiv. Tecnopolítica da punição: A função econômica do encarceramento

xv. Estado punitivo-penal e a produção social da delinquência

xvi“Cadeia é uma máquina de fazer bandido”