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A série Antropologia do crime no Ceará está chegando aos seus capítulos finais. O ponto alto da série foi a imersão no campo, a profundidade de dados empíricos coletados a partir de métodos da etnografia: entrevistas semiestruturadas com pessoas praticantes de atividades criminais e observação participante.
Do ponto de vista teórico, me aventurei no desenvolvimento de alguns conceitos que me ajudaram a entender a complexidade e as particularidades do meu campo empírico, o Grande Tancredo Neves. Vou retomá-los brevemente.
A violência territorializada
Trabalhei com a ideia de violência territorializada para propor não necessariamente um contraponto, mas sobretudo um complemento à conceituação de violência difusa. Considero que para analisar as especificidades dos fenômenos relativos às muitas violências brasileiras – físicas e simbólicas –, é fundamental verificar que não obstante os efeitos da violência serem difusos e atingirem todos os segmentos sociais, os reflexos mais nocivos e letais das práticas violentas ainda decantam especificamente em áreas pobres dos médios e grandes centros urbanos e recaem sobre tipos estereotipados: pessoas moradoras de favelas, cortiços, assentamentos precários, conjuntos habitacionais etc.
Se, para efeito da análise, considerarmos apenas o caráter difuso da violência, penso que podemos incorrer numa negligência não apenas socioantropológica, mas político-teórica. Antes de qualquer processo de difusão das práticas polissêmicas das violências brasileiras, há um seletivo e estratégico manejo de territorialização, encampado pelo binômio estatal-empresarial.
Territorialidades
Trouxe também o conceito de territorialidades, ao pensar as múltiplas maneiras de lutas (territorialização, desterritorialização, reterritorialização) e produção sobre os territórios da cidade. As territorialidades não pertencem material ou representativamente a nenhum ator social ou entidade coletiva, surgem nas práticas, mas não são inerentes às pessoas, estão desatreladas de uma origem ou de uma posse. Elas jogam em consonância com as oportunidades que emergem das situações contextuais, sempre escapando às tentativas inférteis de apreendê-las.
As territorialidades são incapturáveis à lógica funcional urbanista. As territorialidades dialogam com a tática certeauniana, porque esta é uma das maneiras possíveis de objetivação daquelas. Elas não se valem de binarismos, mas de infinitismos. Em resumo, são ações práticas de subjetivação-objetivação sobre o mundo social, lampejos de liberdade existencial, produções criativas sobre o espaço. Retomo o que sublinhei anteriormente: as territorialidades sentem terreno fértil nas muitas “gambiarras” realizadas pelos segmentos marginalizados para jogar com as opressões e beber no cotidiano as oportunidades possíveis para obter alguma dignidade e um pedacinho de sobrevivência material face a uma estrutura hegemônica que os escanteou para a margem dos direitos civis e socioeconômicos.
Socialidade favelada
Nesta série de artigos-reportagens, trago o conceito de socialidade favelada para entender as dinâmicas de sociação do meu campo de estudo, o Grande Tancredo Neves. Todavia, penso que com as necessárias adaptações esta ideia pode ser trabalhada nas análises mais gerais sobre a sociabilidade das camadas populares. A socialidade favelada carrega uma relação desencantada com a sociabilidade violenta, este um conceito do sociólogo Machado da Silva. Defendo que a sociabilidade violenta é experimentada totalmente em suas causalidades somente pelas pessoas praticantes de atividades criminais, ao passo que a resistência tática às contingências locais violentas é a socialidade favelada: uma memória social histórica e compartilhada de resiliência ativa diante da violência do tráfico, dos tiroteios, dos assassinatos à porta de casa, e também uma resistência ativa face às violências físicas e simbólicas das agências do estatismo e dos segmentos empresariais hegemônicos. As duas formas de sociação nos bairros populares são possíveis (socialidade favelada e sociabilidade violenta), mas enquanto a sociabilidade violenta funciona como estrutura objetiva de coerção – na análise machadiana, quase teleológica –, a socialidade favelada escapa à sociabilidade violenta como um drible estético-social.
Favelês cearense
Dentro da socialidade das camadas populares, surge o favelês cearense, uma economia linguística que subverte criativamente a ortodoxia gramatical; é a criatividade da palavra burlando o sistema normativo da língua. É um socioleto cultural que dialoga com a memória social das classes pauperizadas, que historicamente tiveram no seu falar oculto parte de sua força de resistência. É uma linguagem oral que surge não apenas como uma pretensa “representação” de uma realidade espoliadora, mas como práxis constituinte e ativa dessa realidade de opressão. Sustento como hipótese que o favelês cearense é um resquício originário do nheengatu, que já foi a principal língua falada em boa parte do Brasil por índios tupis, mamelucos, caboclos e portugueses subalternos. O favelês é um modo de agir, uma arte de fazer, a partir da perspectiva austiniana. A fala não somente relata, mas atua e produz efeitos sobre o mundo social.
Sistema de relações sociais do crime
Trabalhei também o conceito de sistema de relações sociais do crime. Penso que algumas categorias nativas ou sociológicas como “mundo do crime” e “violência urbana” têm mais contribuído para objetificar as práticas e os efeitos criminais em tipos sociais e regiões específicas das cidades. Ao pensar em um sistema de relações sociais do crime quero desnaturalizar a reificação do fenômeno “crime” em apenas um lugar moral da sociedade, dando-lhe um caráter processual e de continuidade em rede, que busca estabelecer um enredamento entre a criminalidade pobre, a de colarinho-branco e o modo de operação das agências estatais e dos segmentos empresariais.
As ações criminais, portanto, não são inerentes a nenhum segmento, mas se constituem enquanto um complexo em rede prenhe de ramificações e capilaridades que nascem nas ações e situações encampadas em infindáveis contextos, atravessando todos os segmentos socioeconômicos, dos mais vulneráveis aos muito privilegiados. O sistema de relações sociais do crime transita por um circuito de trocas desiguais e coerções que tanto pode iniciar nas favelas e alcançar as mais elevadas instâncias estatais e empresariais, mas majoritariamente a trajetória é invertida: é um caminho hierárquico e de dominação operado de cima para baixo. Esse “sistema relacional” opera homologamente à estrutura hegemônica; na verdade, ele é a própria operação geral da ordem dominante: os agentes com maiores recursos de poder de representação social estão no topo dessa hierarquia ao passo que aqueles com menores recursos materiais e fontes de poder são acionados como bodes-expiatórios nessas relações criminais. Este sistema não funcionaria sem o esquema direito-polícia-prisão-mídia-delinquência.
…
Em síntese, os conceitos trazidos nesta série são tentativas teóricas de analisar as questões socioantropológicas relacionadas à criminalidade brasileira. São conceituações que podem e devem servir como problematizações para tentarmos compreender as múltiplas faces dos fenômenos violência e criminalidade. Mas vai um recado importante: a realidade empírica é sempre, sempre maior do que qualquer teoria.
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i. A dimensão ética na pesquisa de campo
ii. Pesquisando o “mundo do crime” e inserindo-se no “campo”
iii. Grande Tancredo Neves: formação dos territórios
iv. As relações sociais das camadas populares
v. A feira como arte da oralidade popular
vii. Estabelecidos e outsiders: a favela dentro da favela
viii. “Trabalhadores” e “bandidos”: entre separações e aproximações
ix. Sistema de relações sociais do crime: uma rede de ações criminais hierárquicas
xi. “Não confio na polícia”: A relação de descrença entre a classe trabalhadora e os policiais
xii. A economia da corrupção que move a relação entre polícia e “bandidos”
xiv. Tecnopolítica da punição: A função econômica do encarceramento
xv. Estado punitivo-penal e a produção social da delinquência
xvi. “Cadeia é uma máquina de fazer bandido”
xvii. A “escolha” é uma escolha? Compreendendo o ingresso nas relações criminais
xviii. Consumo, dinheiro e sexo: a tríade hedonista da carreira criminal
xix. Traumas, complexos e a luta por reconhecimento (parte I)
xx. Traumas, complexos e a luta por reconhecimento (parte II)
xxi. “Fura até o colete dos homi”: As armas como símbolo dominante
xxii. Os códigos morais da criminalidade favelada (parte I)
xxiii. Os códigos morais da criminalidade favelada (parte II)
xxiv. “Mãezinha”: uma categoria local que põe em suspensão o ethos violento
xxvi. “O crack veio pra acabar com tudo”: o noia como um “zé ninguém”
xxvii. “Você conquista o respeito, você num impõe”: A liderança nas relações criminais
xxviii. As “brigas de trono”: as disputas pelo comando territorial
xxx. Crônica de uma guerra entre quadrilhas de “traficantes”
xxxi. O costume guerreiro da criminalidade pobre
xxxii. Traficante é aquele que nem pega na droga
xxxiii. O assaltante como um nômade das práticas criminais
xxxiv. “O cara num nasceu pra viver no crime o resto da vida não”
xxxv. Uma tentativa de diálogo entre a “vida nua” e a crueldade
xxxvi. A eficácia simbólica das facções
xxxvii. O contexto sócio-histórico e operacional das facções no Ceará
xxxviii. Guardiões do Estado: uma facção cearense com pretensões nacionais
xxxix. Esse negócio de gangue acabou-se: considerações sobre a paz
xl. Batismos de morte e o ethos do trabalho nas relações criminais (parte I)
xli. Batismos de morte e o ethos do trabalho nas relações criminais (parte II)
xlii. “A guerra voltou”: A Era das chacinas no Ceará
xliii. Pesquisando na “guerra”: a relação entre a coragem e o medo
xliv. A relevância estratégica do Ceará para o tráfico internacional de drogas
xlv. “Todo mundo sabe”: As afinidades eletivas entre as facções criminais e a política tradicional