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O fim da “paz” entre as facções no Ceará provocou também uma alteração significativa na dinâmica do nosso trabalho de campo no Grande Tancredo Neves. Se no começo da atividade etnográfica imperou um sentimento de tranquilidade nas andanças pelo campo, após o rompimento entre os grupos criminais tive que rever certas precauções que envolviam minha segurança pessoal.
Não foram poucas as vezes em que conversando com meus interlocutores, eles me contavam de tiroteios e assassinatos pelo complexo de favelas no qual realizava pesquisa. Em algumas das entrevistas, que se realizavam dentro de suas casas ou nas calçadas de suas residências, lembro que pensava com frequência na possibilidade de que a qualquer momento poderíamos ser ali alvejados por facções inimigas. Eu morreria junto com meu interlocutor por contaminação simbólica, para usar a expressão do sociólogo Leonardo Sá.
Experimentei sensações confusas e aflitivas, como a de estar conversando com um “bandido” e sentir medo, não dele, mas de seus “inimigos” que nem sequer estavam ali. Temia que eles pudessem aparecer abruptamente, arrombar a porta e nos pegar desprevenidos, como muitos casos que eu ouvi em campo. Quando conversávamos nas calçadas em frente às suas casas, se eu visse a aproximação de pessoas em motos ou em carros com vidros fumês, instantaneamente um sinal de alerta disparava dentro de mim, a tensão redobrava, e eu só conseguia relaxar depois que os veículos passassem.
Soma-se a esse contexto o fato de que, em um dos territórios do GTN, estabeleci relações com duas quadrilhas locais rivais, que estavam em armistício momentâneo porque uma delas, a de Raposão, era CV; e a outra, de Pango, FDN – facções à época aliadas. No entanto, sempre foi claro para mim que essas tréguas são circunstanciais e a “guerra” entre quadrilhas locais poderia ressurgir a qualquer momento, pois a argamassa que sustenta as alianças é muito frágil, envolve mediações atravessadas por poder e dinheiro, dimensões extremamente voláteis e suscetíveis a “traições” dentro das relações criminais.
Vou retomar as falas de Pango e Raposão para ilustrar a situação em que estava enredado. Começo com a queixa de Pango contra Raposão:
“Aí fui tentar resolver, mas como tinha já rolado um tal de salve aí, da paz, que num podia ter derramamento de sangue, ele se aproveitou desse histórico aí. Mas agora numa época dessa aí, que tá em todo canto gerando [guerra], ele tá preso, época dessa era época boa deu pegar ele”.
Agora, a réplica de Raposão:
“Eles já pagaram pra ir me matar. Entraram na FDN (Família do Norte) e tentaram formar pra me matar, inventaram umas histórias… Eles tão lá, um tá preso [no caso, Boina, irmão de Pango] e o outro acochando, procurando toda e qualquer pessoa que tenha alguma coisa contra mim pra tentar me matar. [E tu num fica naquela não?] Fico, mas como agora eu sou do CV e ele é da FDN, aí eu num vou querer tirar a vida dele sem ver nem pra quê! Mas, se ele imaginar, eu tenho o dossiê completo de tudo o que ele fez de errado, eu tô esperando só mesmo uma gota pra eu botar no comando e tirar a camisa dele, porque o errado tem que sair, entendeu? E ele é muito errado, mata por dinheiro, olho grande, cresce os zói nas coisas dos outros e apoia o errado”.
A entrevista com Raposão foi feita quando ele estava em liberdade, e não na prisão. Um mês após conversarmos, ele foi preso. Conversei com Pango já nesse contexto de Raposão encarcerado. No entanto, quando estabelecia contato com Papagaio, da quadrilha de Raposão, ou Samurai, do grupo de Pango, temia que descobrissem que eu estava simultaneamente entabulando conversa com as duas quadrilhas. Caso percebessem minha dinâmica dual, eu poderia ser considerado um “X-9”, um “leva-e-traz”, e as consequências, no limite, resultariam no meu assassinato.
Por diversas vezes, eu lembrava o caso icônico do jornalista Tim Lopes, morto em 2002 no complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, durante uma reportagem investigativa. Foram muitos os “jogos de cintura” e as táticas que tive que desenvolver em campo para lidar com a “guerra”, bem como admito que por algumas vezes fui imprudente na vontade por obter dados empíricos que eu julgava absolutamente relevantes para a pesquisa. Contudo, lembro de momentos em que os próprios interlocutores me orientavam a “dar um tempo” de andar por aquelas ruas, pois o “a guerra voltou”.
O medo, algumas vezes, saltava pela minha garganta e minha vontade era sair dali o mais rápido possível. Mas nessas horas eu também lembrava que andava pelo complexo de favelas desde adolescente e que, de certa forma, aquela dinâmica da violência não era totalmente nova para mim, e que por isso precisava manter a calma. O desespero não me ajudaria em nada. Estas divagações passeavam pela minha cabeça em diversos momentos: enquanto caminhava por aquelas ruas e também nos quando conversava com os “bandidos”.
De certa maneira, pesquisar na “guerra” é conviver com o perigo, mas também com uma sensação incrível de coragem, um fervor existencial por estar conseguindo fazer este trabalho. Seguindo as orientações do jagunço Riobaldo, sujeito pra lá de corajoso, em Grande Sertão: Veredas: “A vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem”.
Na minha cabeça, aqueles acontecimentos violentos eram importantes demais para que eu desistisse da possibilidade de tentar compreendê-los ali, bem de perto.
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i. A dimensão ética na pesquisa de campo
ii. Pesquisando o “mundo do crime” e inserindo-se no “campo”
iii. Grande Tancredo Neves: formação dos territórios
iv. As relações sociais das camadas populares
v. A feira como arte da oralidade popular
vii. Estabelecidos e outsiders: a favela dentro da favela
viii. “Trabalhadores” e “bandidos”: entre separações e aproximações
ix. Sistema de relações sociais do crime: uma rede de ações criminais hierárquicas
xi. “Não confio na polícia”: A relação de descrença entre a classe trabalhadora e os policiais
xii. A economia da corrupção que move a relação entre polícia e “bandidos”
xiv. Tecnopolítica da punição: A função econômica do encarceramento
xv. Estado punitivo-penal e a produção social da delinquência
xvi. “Cadeia é uma máquina de fazer bandido”
xvii. A “escolha” é uma escolha? Compreendendo o ingresso nas relações criminais
xviii. Consumo, dinheiro e sexo: a tríade hedonista da carreira criminal
xix. Traumas, complexos e a luta por reconhecimento (parte I)
xx. Traumas, complexos e a luta por reconhecimento (parte II)
xxi. “Fura até o colete dos homi”: As armas como símbolo dominante
xxii. Os códigos morais da criminalidade favelada (parte I)
xxiii. Os códigos morais da criminalidade favelada (parte II)
xxiv. “Mãezinha”: uma categoria local que põe em suspensão o ethos violento
xxvi. “O crack veio pra acabar com tudo”: o noia como um “zé ninguém”
xxvii. “Você conquista o respeito, você num impõe”: A liderança nas relações criminais
xxviii. As “brigas de trono”: as disputas pelo comando territorial
xxx. Crônica de uma guerra entre quadrilhas de “traficantes”
xxxi. O costume guerreiro da criminalidade pobre
xxxii. Traficante é aquele que nem pega na droga
xxxiii. O assaltante como um nômade das práticas criminais
xxxiv. “O cara num nasceu pra viver no crime o resto da vida não”
xxxv. Uma tentativa de diálogo entre a “vida nua” e a crueldade
xxxvi. A eficácia simbólica das facções
xxxvii. O contexto sócio-histórico e operacional das facções no Ceará
xxxviii. Guardiões do Estado: uma facção cearense com pretensões nacionais
xxxix. Esse negócio de gangue acabou-se: considerações sobre a paz
xl. Batismos de morte e o ethos do trabalho nas relações criminais (parte I)
xli. Batismos de morte e o ethos do trabalho nas relações criminais (parte II)
xlii. “A guerra voltou”: A Era das chacinas no Ceará
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