“Todo mundo sabe”: As afinidades eletivas entre as facções criminais e a política tradicional



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(Ilustração: Uli Batista)

O conceito de “afinidade eletiva” no sociólogo alemão Max Weber, emprestado de uma obra homônima de Goethe, embora seja aparentemente autossugestivo, não foi aprofundado de maneira suficiente pelo autor. Ele utilizou o termo n’A ética protestante e o “espírito” do capitalismo para explicar a atração recíproca entre elementos superficialmente incongruentes – as propriedades religiosas, de um lado, e as econômico-culturais, de outro –, mas que se mostram na configuração real como convergentes e análogos, e que por isso estabelecem uma conexão durável no tempo e no espaço. 

Nessa correspondência, explica o pensador Michael Lowy em Sobre o conceito de “afinidade eletiva” em Max Weber, não há uma associação diretamente causal, nem a imposição de um lado sobre o outro, seja de forma e conteúdo tampouco de uma parte em relação ao todo. O que ocorre é uma adequação estável, adaptativa e de assimilação mútua. De acordo com Lowy, afinidade eletiva “é o processo pelo qual duas formas culturais entram, a partir de determinadas analogias significativas, parentescos íntimos ou afinidades de sentidos, em uma relação de atração e influência recíprocas, escolha mútua, convergência ativa e reforço mútuo”. 

A partir deste preâmbulo, quero propor que entre as estruturas criminais das facções e as formas políticas tradicionais há também afinidades eletivas essenciais. Embora à primeira vista possam parecer antagônicas e combatentes, essas redes – criminais e políticas – estão profundamente enredadas. O sistema de relações sociais do crime no Brasil tem hoje na reciprocidade sigilosa e secreta entre as facções criminais nacionalizadas e a realpolitik (entenda-se o sistema político tradicional, com todo o seu fisiologismo partidário e suas concessões ideológicas) seu exemplo mais bem lapidado de ligação hierárquica e processualidade funcional entre a pobreza das favelas e os privilégios dos altos escalões do estatismo. 

Na eleição de 2016, investigações policiais apontavam que o PCC articulava à época eleger dez prefeitos e cinquenta vereadores no Ceará. Uma das prefeituras em disputa era a de Caucaia, segunda cidade mais populosa do Estado, na região metropolitana de Fortaleza. Em 2018, moradores de comunidades dominadas pelo Comando Vermelho, em Fortaleza, foram informados, por meio de circulares impressas e manuscritas distribuídas nas localidades, que não poderiam veicular propagandas partidárias de determinados candidatos tampouco trabalhar em suas campanhas eleitorais. Nas eleições de 2020, novos casos de interferência. A Procuradoria Regional Eleitoral do Ceará (PRE/CE) e o Ministério Público do Estado (MP/CE) solicitaram apoio de tropas federais do Exército em cinco cidades cearenses para os dias da eleição (Fortaleza, Caucaia e Maracanaú, na região metropolitana da capital; Juazeiro do Norte, na região metropolitana do Cariri, no sul do Estado; e Sobral, na região metropolitana da cidade homônima, no noroeste do Ceará). 

Mas as facções já foram mais longe. Se aliaram a agentes da alta política estatal-empresarial. Ainda que esta presença dentro do estatismo não ocorra na mesma dimensão das máfias do sul da Itália, o PCC, me parece, caminha mais rapidamente nesse sentido. Contudo, é fundamental inverter a lupa analítica para sublinhar que as facções somente conseguiram imiscuir-se no âmago da política tradicional porque as pontas mais graúdas dessa relação, ou seja, os agentes das altas instâncias políticas constituíram as possibilidades objetivas para esse ingresso. A imersão e a atuação das facções criminais em processos eleitorais e em mandatos legislativos e executivos só é possível com a anuência de políticos profissionais

Quero dizer que, mais relevante do que pensar como as facções estão inserindo-se na política partidária, considero imprescindível compreender as estratégias do jogo político tradicional para permitir a entrada dos faccionados nesse oligopólio de representatividade. Quais os investimentos estratégicos operados pelo estatismo-empresarial para consentir a inserção na representação eleitoral de agentes faccionados da criminalidade pobre? 

Penso que a riqueza do trabalho de campo se dá principalmente quando, na correlação com nossos interlocutores, eles nos possibilitam dialogar e refletir sobre coisas que estão muito longe dali, do campo. Eu me inclinei a pensar estas afinidades eletivas entre as facções e o sistema político influenciado por uma fala de Pango, um líder do tráfico local em um dos territórios do Grande Tancredo Neves (GTN). Ele me narrava sobre a estrutura das facções e sublinhava, com expressões faciais, o poder simbólico do qual estava revestida a categoria “pilares” dentro da estrutura hierárquica desses grupos criminais. Percebi a ênfase nos seus olhos e pedi para ele me explicar o que eram os “pilares”. 

Os pilares é cruel mah. Tu num sabe nem quem é. Tá no meio de ministro, já tão nos plenários eles, tão no meio lá, já chegaram lá. Daqui uns dias chega na presidência [da República]. Por exemplo, um governador, um prefeito, tem muito conhecimento, aí eles num querem deixar [ele dedurar], aí vão lá e matam mah. Por isso que tá morrendo muito político, porque é gente lá de dentro mesmo mandando. Dinheiro, é muito dinheiro rodando. A gente vê na televisão, eles falam umas conversa tão bonita mah, é só islogui [slogan] mesmo. Aí o cidadão “Ééé…” [no sentido de aquiescência e crença nas “conversa tão bonita” dos políticos]. Mas nós que já somos vivido… [entendo as reticências finais de Pango no sentido de que ele não acredita no marketing político, pois sabe que nos altos escalões do estatismo estão os “pilares”]. 

 Caminhando na mesma trilha, Prensado, pequeno varejista de drogas no GTN, me disse que “o PCC tem até promotor, juiz, todo mundo sabe”. Quando ele diz “todo mundo sabe”, penso que ele se propõe a argumentar que aquele que é um pouco mais astuto dentro das relações criminais fareja as afinidades eletivas entre as facções e o sistema político. Noutra interpretação da fala de Prensado, pode-se inferir que a atração entre esses dois polos é tão cristalina, apesar das tentativas dos meios de produção simbólica da realidade de escondê-la, que qualquer um, até aqueles não envolvidos com as práticas delitivas, como os “trabalhadores” e “cidadãos”, percebem estas conexões subterrâneas

Estas afinidades eletivas não se dão apenas sob a forma da inserção de faccionados dentro das instâncias legislativas, judiciárias e executivas dos aparelhos do Estado e vice-versa. Muitas vezes, as duas tendências – criminal e política – também se conectam atraídas pela necessidade de circulação de “mercadorias políticas”, para usar a expressão do sociólogo Michel Misse (colocar texto sobre polícia). 

Por sua vez, Gabriel Feltran, em Governo que produz crime, crime que produz governo: o dispositivo de gestão do homicídio em São Paulo (1992 – 2011), analisou as relações tácitas e os rearranjos entre governo e “crime” em São Paulo, que produziram como efeito, funcional para os dois lados pretensamente autônomos, uma redução dos homicídios: “Deste conflito entre políticas do crime e políticas estatais produz-se uma espécie de ‘terceirização’ da segurança pública, na qual o governo segue sendo o ator central da tomada de decisões e o crime aquele que ordena territórios e grupos específicos nas periferias da cidade”. 

As afinidades eletivas entre as facções criminais e a política tradicional demandariam uma análise mais aprofundada e criteriosa. Não é minha pretensão neste artigo. O que desenvolvi aqui foi uma leitura ainda muito incipiente do que essa correlação pode produzir como investigação socioantropológica. O que tentei neste momento, de forma bastante introdutória, foi pensar como as facções construíram e aplicaram sua eficácia simbólica de maneira estratégica a serem na contemporaneidade da sociedade brasileira imprescindíveis para o funcionamento geral e irrestrito do sistema de relações sociais do crime, percorrendo um circuito a partir das favelas e cavando espaços simbólicos e de representação nas mais altas instâncias do estatismo e do meio empresarial.   

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A série Antropologia do crime no Ceará é publicada semanalmente no #siteberro. Clique nos links abaixo para acessar os textos anteriores. 

artur@revistaberro.com / revistaberro@revistaberro.com

i. A dimensão ética na pesquisa de campo

ii. Pesquisando o “mundo do crime” e inserindo-se no “campo”

iii. Grande Tancredo Neves: formação dos territórios

iv. As relações sociais das camadas populares

v. A feira como arte da oralidade popular

vi. O favelês cearense

vii. Estabelecidos e outsiders: a favela dentro da favela

viii“Trabalhadores” e “bandidos”: entre separações e aproximações

ix. Sistema de relações sociais do crime: uma rede de ações criminais hierárquicas

x. “O dinheiro fala mais alto, [com ele] se torna mais fácil de fazer justiça”: A violência do aparelho judiciário

xi. “Não confio na polícia”: A relação de descrença entre a classe trabalhadora e os policiais

xii. A economia da corrupção que move a relação entre polícia e “bandidos”

xiii. “O crime nunca vai acabar por causa da polícia”: a participação policial decisiva nas relações criminais

xiv. Tecnopolítica da punição: A função econômica do encarceramento

xv. Estado punitivo-penal e a produção social da delinquência

xvi“Cadeia é uma máquina de fazer bandido”

xvii. A “escolha” é uma escolha? Compreendendo o ingresso nas relações criminais

xviii. Consumo, dinheiro e sexo: a tríade hedonista da carreira criminal

xix. Traumas, complexos e a luta por reconhecimento (parte I)

xx. Traumas, complexos e a luta por reconhecimento (parte II)

xxi. “Fura até o colete dos homi”: As armas como símbolo dominante

xxii. Os códigos morais da criminalidade favelada (parte I)

xxiii. Os códigos morais da criminalidade favelada (parte II) 

xxiv. “Mãezinha”: uma categoria local que põe em suspensão o ethos violento

xxv. “Pirangueiro”, “cabueta”, “boca de prata”, “corre de ganso”, “atrasa lado”: compreendendo algumas categorias negativadas da moralidade criminal 

xxvi. “O crack veio pra acabar com tudo”: o noia como um “zé ninguém”

xxvii. “Você conquista o respeito, você num impõe”: A liderança nas relações criminais 

xxviii. As “brigas de trono”: as disputas pelo comando territorial

xxix. Socialidade juvenil periférica em Fortaleza dos anos 1990/2000: Dos bailes funks às quadrilhas do tráfico

xxx. Crônica de uma guerra entre quadrilhas de “traficantes”

xxxi. O costume guerreiro da criminalidade pobre

xxxii. Traficante é aquele que nem pega na droga

xxxiii. O assaltante como um nômade das práticas criminais

xxxiv. “O cara num nasceu pra viver no crime o resto da vida não”

xxxv. Uma tentativa de diálogo entre a “vida nua” e a crueldade

xxxvi. A eficácia simbólica das facções

xxxvii. O contexto sócio-histórico e operacional das facções no Ceará

xxxviii. Guardiões do Estado: uma facção cearense com pretensões nacionais

xxxix. Esse negócio de gangue acabou-se: considerações sobre a paz

xl. Batismos de morte e o ethos do trabalho nas relações criminais (parte I)

xli. Batismos de morte e o ethos do trabalho nas relações criminais (parte II)

xlii. “A guerra voltou”: A Era das chacinas no Ceará

xliii. Pesquisando na “guerra”: a relação entre a coragem e o medo

xliv. A relevância estratégica do Ceará para o tráfico internacional de drogas


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