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No seu livro sobre a máfia siciliana, o sociólogo italiano Diego Gambetta descreve o ritual para o ingresso na organização mafiosa do sul da Itália. Com algumas variações, o rito é mais ou menos o seguinte: em um ambiente solene e austero, com diversos integrantes da máfia, o noviço tem seu dedo furado com uma agulha por seu “padrinho”, e seu sangue é passado em uma imagem sacra, geralmente de algum santo popular italiano. Depois, guiado pelos mafiosos em relação às palavras que deve proferir – sempre na língua italiana –, o iniciante então presta um juramento sobre a imagem sagrada ensanguentada, enquanto ela é queimada com a chama de uma vela. O juramento gira em torno de fidelidade à organização e aos companheiros: “[La cosa nostra] está antes que nada: nuestra familia de sangre, nuestra religión, nuestro país”. Pronto, agora o novato está batizado e é então aclamado compare.
As facções brasileiras, mesmo as mais antigas e de atuação nacional como o Comando Vermelho (CV) e o Primeiro Comando da Capital (PCC), ainda não têm a estrutura imperial das máfias napolitanas e sicilianas enquanto organizações incrustadas de maneira umbilical com as instâncias do estatismo, tampouco contam com a expertise da “indústria de proteção privada” que estas máfias acionam. Até mesmo o batismo ocorre de maneira informal e não ritualizada, é feito muitas vezes pelas redes sociais da internet. Pango me conta como foi sua entrada na FDN:
Foi um chapa meu aí, que me indicou pra eu ir lá fechar com os cara, falar com os cara. Os cara lá são barra pesada mesmo. Por exemplo, a droga num dá nem pra quem quer, eles sempre quer “não, vamo tomar aquela favela acolá”… é assim que eles visa mah… começa por um, eles sempre pega o cabeça, que comanda, aí o cabeça já distribui, aí passa pra outro, e assim vai adiante… [E como é o batismo?] Tem o estatuto, os 10 mandamento, manda só uma foto, os artigo [penais], pronto! Aí essas fotos vai pros pilares, que a gente num sabe nem quem é, aí vai puxar a caminhada, se tem alguma procedência errada, se tiver procedência errada, tu num entra. Se tua caminhada for certa, aí tu já entra e eles fornece. O que tu apura tu manda, até tu chegar no patamar deles.
Há uma diferença na maneira como se ingressa entre uma organização da máfia italiana e uma facção brasileira. Parece-me que os grupos italianos prezam por manter uma aparência que conserva sua áurea de sociedade secreta. Às falanges brasileiras, interessa mesmo é ampliar seu quadro de soldados, capilarizar sua presença nos centros urbanos.
Das facções que estão hoje no Ceará, de acordo com dados do meu trabalho de campo, infiro que quem mais mantém uma perspectiva conservadora em relação ao ingresso aleatório de novos membros é o PCC. Não à toa, o CV e a Guardiões do Estado (GDE) sejam atualmente os grupos que mais batizem partícipes no Estado. Para fazer o “batismo”, “o avião tem que ter um padrinho (que já pertença à falange), que bota a droga e o dinheiro na mão dele e diga: ‘esse aqui é meu’”.
Raposão, que está há cinco anos na organização carioca, afirma que “quem é do CV tem que ser exemplo para a massa carcerária”, diz, numa visão encantada a partir de sua experiência. Ao longo desse tempo no grupo, já tem nove “afilhados”:
“É uma relação de pai e filho, você tem que ver se o cara é responsável, se vai cumprir com tudo direitim, porque, se não, tudo o que ele fizer de errado, eu vou ser punido por isso, entendeu?”.
O “padrinho” geralmente disponibiliza armas, drogas e veículos para seus afilhados realizarem atividades criminosas, como tráfico e assaltos. A partilha é meio a meio, ou, na oralidade de Raposão, “machado de assis” [ele diz junto com o gesto de um machado cortando algo pela metade]. Raposão dá mais detalhes da forma como vê a organização do CV:
“Cara, o Comando Vermelho é uma família, entendeu? É uma só, lógico que tem os peixe grande, os peixe pequeno, os corre de ganso, tem os atrasa lado… [Vocês têm relação com os cara lá do Rio?] Tem, no Whatsapp, só não os outros dois finais [os últimos na hierarquia], que tão no [presídio] federal. Os que tão no federal têm os porta voz, que é a mulher dele e o advogado, entendeu? Que passa toda a informação pra eles, e aí eles dão a resposta. Funciona do mesmo jeito, só que é um pouco mais lento, né? Mas aqui o final do Ceará é o [X] e o [Y], esses são os finais do Ceará. São humilde, a gente troca ideia assim como eu tô trocando com você, se eu for pras área deles, [ligo pra eles:]“Mermão tô aqui e tal”, vai me buscar, manda um táxi me buscar, é uma família, os que são criminoso de verdade são uma família, daí a facilidade de eu chegar, tá passando por um determinada situação: “Tô precisando de três bico, umas quatro PT, e duns carro clonado”. Aí os cara só arquiteta como é que a gente vai fazer pra ir buscar, a gente vai buscar, e traz e já era. Agora, coisa séria, né? Daí a inteligência de criar a organização que tem conselheiro, tesoureiro, plano de saúde pra mim e pro meus filho… [Quanto é que tu paga?] Eu pago 100 reais por mês. [Ei, [Raposão], e paga a quem?] Tem uns tesoureiros. [Aí eles recolhem aonde?] Aí eles repassam uma conta de um laranja, aí você vai numa lotérica, em qualquer lugar, deposita naquela conta. [Mas] todo mês muda [a conta]”.
Percebi, no dia em que conversei com Raposão, uma encantada idealização do CV. É como se, de repente, ao adentrarem as favelas cearenses, as facções passassem a construir uma narrativa especial em torno de seu modo de operação. Como eram maneiras inéditas de operacionalizar as relações criminais nas comunidades cearenses, o revestimento de novidade tem uma força simbólica que gruda nas paredes da subjetividade dos seus novos integrantes. Houve uma explosão de “batismos” nos últimos seis, sete anos no Ceará. O contato com “bandidos” de outros estados e, em alguns casos, o fluxo de movimentação a estes lugares para buscar armas e drogas é também um fator motivador a estas adesões.
Um caso de ascensão meteórica nas práticas criminais
Raposão é um deles, de quem tenho falado tanto nesse trabalho. Vou contar um brevíssimo relato sobre ele. Raposão e eu somos amigos há aproximadamente quinze anos. Temos idades próximas, na casa dos trinta e pouco. Nessa trajetória, compartilhamos muitos momentos de interação desde a adolescência, seja consumindo drogas lícitas e ilícitas, frequentando casas de show de reggae e de “forró da favela”, jogando futebol na praça do bairro, batendo papo nas calçadas, etc. Desde essa época, ele sempre fez pequenas incursões criminosas: um descuidista nato, de “mão leve”, em determinadas épocas era “avião” de outros traficantes, e algumas vezes roubava só na “sugesta” (sem arma) alguns playboys no bairro e também na saída de festas das camadas altas e médias da cidade. Entrecortava essas atividades criminais com o trabalho assalariado: foi servente de pedreiro, ferreiro armador, escalou degraus no ramo da construção civil e tornou-se mestre de obras, trabalhou como cozinheiro num clube social da classe média fortalezense, fez curso de técnico de manutenção em máquina pesada e controle de contaminação de máquinas e equipamentos: “Sempre fui assim, muito inteligente, tudo o que eu ia fazer, eu procurava o melhor aproveitamento possível, pra ser o melhor no que eu tava fazendo, entendeu? [Mas] saí desses empregos por conta de vício, o vício me fazia ser irresponsável”.
Em agosto de 2013, o momento de ruptura com a vida de viciado, de “noia”, e o ponto de mutação para a ascensão meteórica nas relações criminais. Numa das muitas depressões que o consumo de crack lhe gerou, ele conta que orou e pediu a deus forças para nunca mais usar nenhum tipo de entorpecente. Desde esse dia, não usou mais drogas, inclusive abstinência de álcool, com exceção de uma “recaída” no carnaval de 2016 quando cheirou “loló”. Começou a levar drogas, principalmente cocaína, para vender em festas de reggae na cidade. A atividade começou a gerar lucros. Bons lucros. Passou a trabalhar para Pango e Boina. Era o principal revendedor de drogas deles, uma vez que levava as substâncias até as camadas médias da cidade. Mas foi na “época da guerra” que Raposão tornou-se “considerado”. A “guerra” em questão foi uma disputa entre criminosos da Vila Cazumba e do Tancredo Neves, que começou com a morte do irmão de Pango e Boina por um “traficante” do Tancredo. Raposão alçou fama nesse momento.
Foi justamente no momento da ascensão das facções nas favelas cearenses, entre 2014 e 2015, que a biografia de Raposão se cruza com esta reconfiguração no modo de operação das relações criminais no Estado. Em efeito “bola de neve”, de acordo com suas palavras, Raposão abraçou definitivamente a crença na atividade criminal como meio de vida: assaltos a mansões, a casas lotéricas e lojas, latrocínios, tráfico de armas e narcotráfico interestadual. Em pouco mais de dois anos, galgou posições na hierarquia das relações criminais, e passou de “ladrão de galinha” para “patrão” de um território no GTN. Carros clonados, armas possantes, grande quantidade de drogas, casas alugadas em nome de “laranjas”. Bens conseguidos com as práticas ilegais e à disposição para mais atividades criminosas. Como efeito da eficácia simbólica das fofocas nas relações criminais, não custou muito para ser convidado a integrar o Comando Vermelho em sua antepenúltima passagem pelo sistema prisional, com a promessa de que um advogado da organização conseguiria em pouco tempo tirá-lo dali, desde que pagasse a contribuição mensal de cem reais.
Após ser novamente preso no primeiro semestre de 2017, após um assalto a uma casa lotérica em Acarape, região metropolitana de Fortaleza, e novamente libertado, Raposão me contou que à época dez “ladrões” trabalhavam para ele, bem como comandava sete “bocadas”, duas em Acarape, cidade da Região Metropolitana de Fortaleza (RMF), e cinco no Grande Tancredo Neves GTN). Das sete, apenas duas estavam em pleno funcionamento, porque Raposão, que no período da nossa conversa tinha saído pouco tempo antes do presídio, temia ainda estar sendo investigado pela Coordenadoria de Inteligência (Coin) e pela Delegacia de Narcóticos (Denarc).
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Continuamos na próxima semana.
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A série Antropologia do crime no Ceará é publicada semanalmente no #siteberro. Clique nos links abaixo para acessar os textos anteriores.
artur@revistaberro.com / revistaberro@revistaberro.com
i. A dimensão ética na pesquisa de campo
ii. Pesquisando o “mundo do crime” e inserindo-se no “campo”
iii. Grande Tancredo Neves: formação dos territórios
iv. As relações sociais das camadas populares
v. A feira como arte da oralidade popular
vii. Estabelecidos e outsiders: a favela dentro da favela
viii. “Trabalhadores” e “bandidos”: entre separações e aproximações
ix. Sistema de relações sociais do crime: uma rede de ações criminais hierárquicas
xi. “Não confio na polícia”: A relação de descrença entre a classe trabalhadora e os policiais
xii. A economia da corrupção que move a relação entre polícia e “bandidos”
xiv. Tecnopolítica da punição: A função econômica do encarceramento
xv. Estado punitivo-penal e a produção social da delinquência
xvi. “Cadeia é uma máquina de fazer bandido”
xvii. A “escolha” é uma escolha? Compreendendo o ingresso nas relações criminais
xviii. Consumo, dinheiro e sexo: a tríade hedonista da carreira criminal
xix. Traumas, complexos e a luta por reconhecimento (parte I)
xx. Traumas, complexos e a luta por reconhecimento (parte II)
xxi. “Fura até o colete dos homi”: As armas como símbolo dominante
xxii. Os códigos morais da criminalidade favelada (parte I)
xxiii. Os códigos morais da criminalidade favelada (parte II)
xxiv. “Mãezinha”: uma categoria local que põe em suspensão o ethos violento
xxvi. “O crack veio pra acabar com tudo”: o noia como um “zé ninguém”
xxvii. “Você conquista o respeito, você num impõe”: A liderança nas relações criminais
xxviii. As “brigas de trono”: as disputas pelo comando territorial
xxx. Crônica de uma guerra entre quadrilhas de “traficantes”
xxxi. O costume guerreiro da criminalidade pobre
xxxii. Traficante é aquele que nem pega na droga
xxxiii. O assaltante como um nômade das práticas criminais
xxxiv. “O cara num nasceu pra viver no crime o resto da vida não”
xxxv. Uma tentativa de diálogo entre a “vida nua” e a crueldade
xxxvi. A eficácia simbólica das facções
xxxvii. O contexto sócio-histórico e operacional das facções no Ceará
xxxviii. Guardiões do Estado: uma facção cearense com pretensões nacionais
xxxix. Esse negócio de gangue acabou-se: considerações sobre a paz