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Em outro artigo desta série, falávamos sobre o acordo de “paz” entre as facções que atuam no território cearense, fenômeno que ocorreu em 2015. No entanto, como muitos desses acordos realizados dentro das relações criminais, foi uma “paz” bastante fugaz, que esvaiu-se aos primeiros sinais de divergência.
Em junho de 2016, o traficante brasileiro Jorge Rafaat Toumani, de 56 anos, foi morto em seu carro blindado, na cidade de Juan Pedro Caballero, no Paraguai, onde morava, a tiros de metralhadora antiaérea. As investigações apontam que o assassinato foi realizado pelo PCC, numa guerra com o CV pela disputa da “rota Caipira”, na fronteira entre Juan Pedro Caballero e Ponta Porã (MS). Os desdobramentos dessa disputa tiveram consequências em todo o Brasil, gerando um caos no sistema penitenciário brasileiro, com rebeliões e mortes em presídios de Roraima, Rondônia, Amazonas, Ceará, Maranhão, Rio Grande do Norte, entre outros. No Ceará, em outubro de 2016, dois áudios vazados em um aplicativo de mensagens indicavam que a “guerra” havia recomeçado também nas ruas:
Galera, começou, viu? Quem tinha medo de rodar aí, agora o medo tem que triplicar, porque começou a matança, viu menino! PCC e Comando Vermelho. Já teve um tiroteio aqui na Serrinha [bairro da zona central de Fortaleza] entre as duas facções, viu? Já balearam bem seis [pessoas]. Cuidado na vida, galera, quem vier pra Serrinha”.
Ói, meus irmão do grupo, meus irmão do grupo, atenção aí na Sapiranga [bairro da zona sudeste de Fortaleza], atenção na Sapiranga… quem puder descer com arma aí pra Sapiranga pra poder dar um apoio lá.. tá rolando mó troca de bala lá, tão entendendo meus irmão? Os pilantra lá do CV e da FDN tão tudo de cima lá, tão entendendo meus irmão? Dá uma reforçada na Sapiranga lá, meus irmão. Quem tiver, é pra descer arma lá. Eles tão de ‘bico’ [arma] lá, tá faltando só ‘bico’ pra nós aí… pode mandar descer aí pra Sapiranga, de trás do [shopping] Via Sul, tá entendendo meus irmão?
A “guerra”, no lugar da “paz”, rapidamente reinstalou-se como signo de sociabilidade na vida das pessoas moradoras de áreas pauperizadas. A dinâmica novamente transfigurou-se e os moradores não envolvidos com as práticas criminais experimentaram ainda com mais intensidade os “ecos da violência”, para usar uma categoria de análise do sociólogo Geovani Jacó Freitas, uma vez que a violência não se encerra nos atos ditos violentos, mas reverbera em emoções, sentimentos e práticas que interferem decisivamente no cotidiano das pessoas a ela submetidas.
Neste sentido, famílias passaram a ser expulsas de suas casas por qualquer ligação de parentesco ou amizade com membros de facções rivais, numa espécie de “contaminação simbólica de um para o outro”, como diz o sociólogo Leonardo Sá. Estes confiscos de bens imóveis ocorreram em diversos territórios de Fortaleza, como a comunidade Babilônia, no bairro Barroso; o território Cidade de Deus, no Lagamar; houve casos também nos bairros Barra do Ceará, Pirambu, Conjunto Palmeiras, Jangurussu, José Walter… Ameaças verbais e pichações como “tem que sair fora das travessa, si não vai morrer, e as casas vai pegar fogo”; “tem que sair fora vcs pq si não nois vai toca fogo em tudo” puseram em pânico famílias inteiras. Estas expulsões foram amplamente noticiadas pela imprensa cearense, o que torna ainda mais lamentável a omissão generalizada dos órgãos públicos responsáveis.
À época, na dinâmica das facções, com o fim da “paz”, o PCC se alia à GDE para contrabalançar em capital humano, ou seja, em “exército” nas ruas, a aliança entre CV e FDN. Durante o armistício, o PCC se alojara em dois microterritórios do Conjunto Tancredo Neves: o Coloral e o Polo, mas tempos depois os repassou à GDE sob a condição de que esta comprasse armas e drogas da facção paulista. O CV e a FDN comandavam todo o restante do Grande Tancredo Neves. A GDE, então, ficou encurralada em dois microterritórios dentro do complexo. Conseguiu defender-se por muitos meses contra as várias tentativas de invasão dos rivais. Tiroteios, principalmente às madrugadas, eram frequentes. A GDE chegou a “perder” o Coloral numa batalha, mas o recuperou numa reviravolta dias depois. No entanto, no segundo semestre de 2017, a facção cearense, mesmo com o apoio bélico do PCC, foi “espirrada” definitivamente dos dois territórios que comandava no GTN. O CV é hegemônico hoje em dia no Grande Tancredo Neves.
Pango, ex-filiado à FDN e hoje membro do CV (esta facção cooptou quase todos os integrantes da FDN quando a facção amazonense perdeu parte significativa de sua influência no Ceará), me contava na época que “é muita gente da área que se junta pra dar ataque no Polo e no Coloral, mah. Sai juntando 10 bairros, 15 bairros… tem morte que nem apresenta, os cara faz só sequestrar”.
Os conflitos entre as facções se espalharam por todo o Estado em 2017. Duplos e triplos homicídios passaram a ser recorrentes nos noticiários. E chacinas, muitas chacinas, com quatro vítimas ou mais, pipocaram pelo Ceará. Os doze meses de 2017 foram os mais violentos em relação a crimes de homicídio na história cearense. O ano encerrou com 5.134 eventos desse tipo, uma média de 14 assassinatos por dia. Quando comparado com 2016, o ano da “paz”, o Estado teve um incremento de mais de 50% no número de crimes letais intencionais, passando de 3.407 durante a “pacificação” para 5.134 na “guerra”. Em Fortaleza, o salto foi ainda mais drástico: de 1.007, em 2016, para 1.978, em 2017, aumento de 96,6%.
Se em 2016, quando a imprensa local veiculava que a diminuição nos índices de letalidade intencional teria relação com os “acordos de paz” nas comunidades pobres, o Estado refutava com veemência a informação – inclusive negando a existência desses grupos no Ceará – e alegava que a diminuição decorria do “sucesso” do seu programa “Ceará Pacífico”; em 2017, de maneira oportunista, as suas “autoridades” não credenciaram o aumento exponencial nos índices de homicídios às fragilidades inerentes de suas políticas públicas, mas a “disputas pelo tráfico” comandadas pelas facções, dessa vez reconhecendo cinicamente sua existência. Puros malabarismos retóricos de uma política desastrosa de segurança pública que investe em armamento e aumento do efetivo policial, mas esquece da causa primordial: o enorme fosso de desigualdade social que impera no Estado.
Em 2018, foram nove chacinas, com 53 mortos, entre elas a mais sangrenta: no dia 27 de janeiro, durante um forró em um território comandado pelo CV, faccionados da GDE chegaram em três carros e, ao descerem dos veículos, passaram a atirar à revelia em quem cruzasse pelo seu caminho. Saldo da matança: 14 pessoas mortas, sendo oito mulheres, e nove pessoas feridas. A Chacina das Cajazeiras, como ficou conhecido esse episódio, foi a maior já registrada na história do Ceará. Dois dias depois, o CV se vingaria, matando dez presos da GDE em uma matança na cadeia pública de Itapajé, cidade a 125 quilômetros de Fortaleza. Vale destacar que estes detentos estavam, obviamente, sob tutela do Estado.
Nos anos seguintes, novas chacinas na capital e no interior. Em levantamento feito pelo jornal cearense O Povo, de 2017 adiante ocorreram 21 chacinas no Ceará, com um saldo macabro de 122 mortes. Está evidente que este tipo de crime – que antes era raríssimo – passou a fazer parte das dinâmicas da criminalidade faccionada no Estado.
As chacinas caracterizam-se principalmente por tentativas de tomar territórios do “inimigo” e vinganças a ataques de facções rivais. A cadeia crônica, circular e cumulativa de revanchismo, que já ocorria na época das gangues e quadrilhas locais de varejistas do tráfico, voltou, mas dessa vez com uma nova envergadura: com muito mais mortes e com a potência de armas como fuzis e metralhadoras, que não eram comuns no Ceará até então. Portanto, o Estado enfrenta atualmente um processo de imersão ostensiva em uma nova configuração da criminalidade pobre.
As maneiras de operar as relações criminais mudaram; quero dizer que as artes de fazer o crime no Ceará passam por intensas transformações sociais nos últimos seis ou sete anos, que ainda carecem de maturação. Não são apenas novos modos de ações delitivas, mas é uma nova estética criminal que desponta. Os reflexos mais superficiais estão aí, nesses dados estatísticos que apontam para recordes de índices de homicídios. No entanto, acredito que dentro desse contexto há movimentos e efeitos subterrâneos que ainda não se desvelaram completamente. Tudo ainda é muito incipiente.
As configurações das relações criminais são bastante instáveis e dinâmicas, e mudam com uma rapidez que é maior do que em outras esferas da vida social: muitas vezes, acordos são costurados e rompidos em alguns meses.
A linguagem jornalística tradicional, vítima da instantaneidade, se aligeira em fazer reportagens meramente descritivas dos fatos. Esta é a maior fragilidade deste tipo de jornalismo factual. Mas a análise socioantropológica pede calma, não pode ser apressada. É preciso observar, inferir, esmiuçar e, o mais importante, tentar compreender essa novíssima composição a partir do problema fundante da sociologia: Como essa configuração social foi possível? Não tenho respostas prontas, apenas tateio…
#guerra #facções #faccão #CV #FDN #PCC #GDE
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A série Antropologia do crime no Ceará é publicada semanalmente no #siteberro. Clique nos links abaixo para acessar os textos anteriores.
artur@revistaberro.com / revistaberro@revistaberro.com
i. A dimensão ética na pesquisa de campo
ii. Pesquisando o “mundo do crime” e inserindo-se no “campo”
iii. Grande Tancredo Neves: formação dos territórios
iv. As relações sociais das camadas populares
v. A feira como arte da oralidade popular
vii. Estabelecidos e outsiders: a favela dentro da favela
viii. “Trabalhadores” e “bandidos”: entre separações e aproximações
ix. Sistema de relações sociais do crime: uma rede de ações criminais hierárquicas
xi. “Não confio na polícia”: A relação de descrença entre a classe trabalhadora e os policiais
xii. A economia da corrupção que move a relação entre polícia e “bandidos”
xiv. Tecnopolítica da punição: A função econômica do encarceramento
xv. Estado punitivo-penal e a produção social da delinquência
xvi. “Cadeia é uma máquina de fazer bandido”
xvii. A “escolha” é uma escolha? Compreendendo o ingresso nas relações criminais
xviii. Consumo, dinheiro e sexo: a tríade hedonista da carreira criminal
xix. Traumas, complexos e a luta por reconhecimento (parte I)
xx. Traumas, complexos e a luta por reconhecimento (parte II)
xxi. “Fura até o colete dos homi”: As armas como símbolo dominante
xxii. Os códigos morais da criminalidade favelada (parte I)
xxiii. Os códigos morais da criminalidade favelada (parte II)
xxiv. “Mãezinha”: uma categoria local que põe em suspensão o ethos violento
xxvi. “O crack veio pra acabar com tudo”: o noia como um “zé ninguém”
xxvii. “Você conquista o respeito, você num impõe”: A liderança nas relações criminais
xxviii. As “brigas de trono”: as disputas pelo comando territorial
xxx. Crônica de uma guerra entre quadrilhas de “traficantes”
xxxi. O costume guerreiro da criminalidade pobre
xxxii. Traficante é aquele que nem pega na droga
xxxiii. O assaltante como um nômade das práticas criminais
xxxiv. “O cara num nasceu pra viver no crime o resto da vida não”
xxxv. Uma tentativa de diálogo entre a “vida nua” e a crueldade
xxxvi. A eficácia simbólica das facções
xxxvii. O contexto sócio-histórico e operacional das facções no Ceará
xxxviii. Guardiões do Estado: uma facção cearense com pretensões nacionais
xxxix. Esse negócio de gangue acabou-se: considerações sobre a paz
xl. Batismos de morte e o ethos do trabalho nas relações criminais (parte I)
xli. Batismos de morte e o ethos do trabalho nas relações criminais (parte II)
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