7 Comentários
Como são construídas as crenças morais de uma comunidade? Seria possível falar de uma ética universal, nos termos propostos pelo filósofo Jürgen Habermas? Em uma sociedade, a moral é imposta ou consensuada?
Em ética e sociologia da moral, Émile Durkheim defende que nem sempre é possível saber as causas de determinadas crenças morais devido às complexidades de suas origens, ou seja, elas foram historicamente edificadas como um sistema de funções em cima de relações processuais de pressões e tentativas, acertos e fracassos nas crescentes formas de interagir em coletividade. Para o sociólogo francês, qualquer representação dos valores da humanidade está presa à incapacidade de açambarcar todas as dimensões morais do espírito humano. A moral em Durkheim tem uma função de segurança ontológica, à medida em que ela é situada como uma busca por felicidade coletiva duradoura. Para este autor, os primeiros objetos nos quais o ser humano projetou esta idealização de segurança foram a família, a cidade e a nação. Já para Freud, os valores morais e éticos surgem como uma das severas exigências ideais do Supereu da cultura.
Dentro do repertório de crenças morais dominantes em qualquer cultura, os conceitos de “bem/mal”, “bom/mau”, “justo/injusto” funcionam como uma síntese metonímica das lutas por separação e hierarquia dentro dos arranjos sociais. Em Genealogia da moral, Nietzsche sublinha que foram as estirpes nobres que criaram e estabeleceram a si próprias a denominação de “bons” em oposição aos costumes e comportamentos plebeus, caracterizados então como “maus”. A partir deste “pathos de distância”, a nobreza criou valores e nomeou-os, fazendo valer seu poder de nomeação, de demarcar semânticas e semióticas de dominação, pois “o bom e o mau são somente o produto de uma seleção ativa”, destacam Deleuze e Guattari, em Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia.
Em si mesmos, os conceitos elencados não têm qualquer valor ou sentido. Por exemplo, “em si, ferir, violentar, explorar e exterminar naturalmente nada apresenta de ‘injusto’, pois a vida é, essencialmente, em suas funções básicas, ofensiva, violadora, exploradora e exterminadora, não se podendo em absoluto concebê-la sem esse caráter”, defende Nietzsche. Percebe-se que manter a geografia moral, que coloca de lados radicalmente opostos os “bons” e os “maus”, é um dos modos de sustentação da ordem hegemônica.
Para enfrentar este problema, os sociólogos Elias e Scotson, em Os estabelecidos e os outsiders, propuseram uma abordagem configuracional, no qual “a meta de um estudo das configurações não é enaltecer ou censurar um lado ou o outro e sim, tanto quanto possível, explicar seres humanos em configurações, independentemente de sua ‘bondade’ ou ‘maldade’ relativas, em termos de suas interdependências”. Para estes autores, ao se pensar o crime e a delinquência como “ruins” ou “anômicos” e o cumprimento integral às normas estabelecidas como “bom” ocorre uma tendência a separar problematizações que estão conectadas, e não podem ser separadas na análise sociológica.
Se parte considerável dos sistemas de crenças são construídos e impostos para legitimar uma semiologia da dominação, há concomitantemente uma parte que foge pela brecha criada para dar vazão a gramáticas morais historicamente subjugadas pela “moral” dominante. Wittgenstein, nas Investigações filosóficas, considera que as palavras não têm uma semântica em si mesmas, mas que seu sentido está no uso circunstancial de acordo com as situações vivenciadas. Gabriel Feltran, em Valor dos pobres: a aposta no dinheiro como mediação para o conflito social contemporâneo, destaca que os sentidos do “certo” e do “justo” nas comunidades pobres estão de acordo com as formulações wittgensteinianas.
Saliento que há um gradiente moral nas relações criminais pobres, ao contrário da visão que anima o senso comum.
A vertente do sistema de relações sociais do crime nas favelas não é indiferente à perspectiva de uma ética própria. Dessa forma, ao analisar a moralidade criminal dos pobres faz-se fundamental, de antemão, “superar qualquer julgamento, bem como a lógica bipolar do bom e mau, do certo e errado, do correto e do incorreto”, afirma o sociólogo César Barreira, em Cotidiano despedaçado: cenas de uma violência difusa. Os agentes criminais favelados estão sempre tecendo avaliações morais e éticas altamente complexas em suas relações sociais. Em grande medida, estes juízos de valor envolvem uma semântica cultural que escapa à normatividade jurídica e à eticidade dominante – ou a uma pretensa “ética universal”, no sentido habermasiano do termo. É, pois, uma outra experiência ética, uma particular economia moral da criminalidade pobre.
Estes códigos compartilhados no sistema social do crime não são estanques e perenemente rígidos; são, por sua vez, significações em disputa pelos interpretantes e, embora tenham uma considerável de estabilidade, também ocasionam, nesse circuito interpretativo, conflitos, ambiguidades, ruídos e contradições.
Assim, reitero, as relações criminais têm um código moral próprio, marginal às leis normativas; este código se difundiu no Brasil junto com o banditismo urbano dos anos de 1960 e 1970 e funciona como um signo linguístico-comportamental reatualizado – muitas vezes oralmente – de geração em geração, que desemboca principalmente em ações práticas, artes de fazer. A pactuação tácita de quem participa do jogo o reproduz constantemente. A violência e o conflito – geralmente por “bocadas”, territórios e outros meios de poder – surgem, neste contexto, como mediadoras e (re)atualizadoras das “regras” de conduta. Aquele que não as segue enfrenta sérias consequências, que vão de repreensões verbais a castigos corporais, e até mesmo à morte, em casos extremos.
Complementa-me João, com as marcas do vivido: “A honestidade do bandido é a palavra. Quem não tem palavra é pirangueiro. E pirangueiro morre logo. É o certo pelo certo, pivete. O errado tem que ser cobrado”. Camaleão também lança sua assertiva: “Do homem só quero o respeito e a palavra”. O jagunço Riobaldo, personagem clássico de Guimarães Rosa, em Grande sertão: veredas, dá sua contribuição ao debate: “O mais difícil não é um ser bom e proceder honesto; dificultoso, mesmo, é ter o poder de ir até no rabo da palavra”.
As falas sintéticas e taxativas de João e Camaleão enfatizam o atributo moral basilar do qual se valem os agentes criminais: a oralidade negocial, a palavra como penhor-mor.
Nenhuma outra conduta é mais importante do que “ter palavra de homem” dentro das relações criminais.
Se um “bandido” for “pegue na palavra”, ou seja, desmentido em sua exposição oral, sofrerá severas consequências. Um dos principais interlocutores de William Foote Whyte em sua pesquisa etnográfica num subúrbio estadunidense, Doc, explica ao antropólogo o porquê de ter rompido relações com um integrante de sua própria gangue: “O cara deu pra trás em sua palavra, Bill. É só isso o que me interessa”.
Na sua pesquisa em um morro do Rio de Janeiro, Coisas da vida no crime: Tráfico e roubo em favelas cariocas, Carolina Grillo constatou que a oralidade surge como grande mediadora diplomática de conflitos, produzindo transcendência e trazendo para o contexto elementos imateriais que estabilizam os arranjos de poder e reconhecimento dentro das relações sociais do crime. Já em sua etnografia na periferia paulistana, Sobreviver na adversidade: entre o mercado e a vida, Daniel Hirata considera que a “palavra empenhada” serve para garantir contornos de certeza em meio a uma rede de ações tão incertas.
///
A série Antropologia do crime no Ceará é publicada semanalmente no #siteberro. Veja abaixo os textos anteriores.
artur@revistaberro.com / revistaberro@revistaberro.com
i. A dimensão ética na pesquisa de campo
ii. Pesquisando o “mundo do crime” e inserindo-se no “campo”
iii. Grande Tancredo Neves: formação dos territórios
iv. As relações sociais das camadas populares
v. A feira como arte da oralidade popular
vii. Estabelecidos e outsiders: a favela dentro da favela
viii. “Trabalhadores” e “bandidos”: entre separações e aproximações
ix. Sistema de relações sociais do crime: uma rede de ações criminais hierárquicas
xi. “Não confio na polícia”: A relação de descrença entre a classe trabalhadora e os policiais
xii. A economia da corrupção que move a relação entre polícia e “bandidos”
xiv. Tecnopolítica da punição: A função econômica do encarceramento
xv. Estado punitivo-penal e a produção social da delinquência
xvi. “Cadeia é uma máquina de fazer bandido”
xvii. A “escolha” é uma escolha? Compreendendo o ingresso nas relações criminais
xviii. Consumo, dinheiro e sexo: a tríade hedonista da carreira criminal
xix. Traumas, complexos e a luta por reconhecimento (parte I)
xx. Traumas, complexos e a luta por reconhecimento (parte II)
xxi. “Fura até o colete dos homi”: As armas como símbolo dominante
7 Replies to “Os códigos morais da criminalidade favelada (parte I)”