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Durante o trabalho de campo, nas muitas conversas com os interlocutores, muitas categorias nativas surgiram. Algumas vieram como subcategorias estigmatizadas e depreciadas dentro das relações criminais. A principal delas e quase unânime em suas narrativas é o “pirangueiro”. Em algumas interpretações, como na de Prensado, “pirangueiro é aquele que deixou a droga depravar ele, que tu num pode nem botar pra dentro de casa, que num respeita, é o nóia”.
Geralmente, o conceito de “pirangueiro” é alargado, e envolve semânticas não apenas vinculadas ao consumo abusivo de drogas, mas também relativas à confiança, reciprocidade, respeito, consideração, enfim, ao “proceder”. Para Raposão, “o pirangueiro é aquele cara que fala muito, fofoqueiro, que fica teleguiando um irmão contra o outro, entendeu? Olho gordo, invejoso, que fica engomando ladrão, não tem coragem. A pirangagem de uns e outros, que, tipo, põe as amizades na balança por dinheiro, tem o olho grande no companheiro, entendeu? Que trai a lealdade pelo lado financeiro, que por causa de um real tem coragem de formar e tirar sua vida… Isso aí eu detesto”.
Camaleão, por sua vez, diz que pirangueiros são “esses cara que faz as coisas sem pensar, um cruzeteiro, um que vai roubar o cara nas área, outro que mata por uma besteira, faz coisa com maldade, entendeu?”. A opinião de Saci é semelhante: “Um pirangueiro é um caba que tá com você aqui e depois cruzeta você, como já aconteceu isso no mêi da gente. O cara tá aqui com a gente, aí depois vai cruzetar o cara pra outro malandro”. De acordo com Pango, pirangueiro “é o que de todo jeito quer se dar de bem, quer comer as coisas dos outros, sempre quer mais, sempre quer se dar de bem de tudo, uma hora se dá mal, uma hora a casa cai e num tem pronde correr não”.
De todas as conversas que estabeleci com praticantes de práticas delitivas, em apenas em uma delas houve uma inesperada e muito sincera autorreferência como “pirangueiro”. Foi Nico, 19 anos, assaltante de ônibus e de transeuntes, quem se autodefiniu desta forma, após ser questionado.
Nosso diálogo [minhas falas estão em colchetes]:
[Ei, mah, o que é um pirangueiro pra ti?] Pirangueiro sou eu [risos]. [Tu se acha pirangueiro?] É, né não? [Quando tu diz “pirangueiro sou eu”, por que tu diz isso?] Eu digo porque pirangueiro pra mim é um cara que faz ruindade, né. Só faz coisa errada. [Mas o pirangueiro também é quem não considera o parceiro, fica de leva e traz, fala uma coisa pra um, depois fala outra coisa pra outro…] Mas aí já é outro tipo de pirangueiro. Tem esse tipo aí também. [É esse pirangueiro que eu tava perguntando. Tu acha que tu é esse?] Sim, também, porque eu já dei, assim, já dei altos balão [enganar] na galera. Já fiz pirangagem, né. Com uns e ôto [outros].
Parece-me, portanto, que o conceito de “pirangueiro” tem algumas características generalizadas, mas algumas outras são acionadas de acordo com as situações vivenciadas por cada interlocutor, que adiciona aos seus pontos de vista negativações consonantes com suas experiências pessoais.
Olhando por outra perspectiva, pode-se também inferir que o “pirangueiro” representa a metonímia que condensa em uma única expressão nativa todas as subcategorias negativadas na moralidade das relações criminais. O “pirangueiro” é por extensão o “nóia”, o “cabueta”, o “atrasa lado”, o “corre de ganso”, o “boca de prata”, o “traíra”, o “X-9”, etc.
A categoria nativa “cabueta”, uma corruptela oral advinda de alcaguete, é mais uma que é revestida de um símbolo negativado. Raposão é bem enfático a respeito do tratamento que ele destina a um “cabueta”: “Mato no automático [sem pestanejar]. De preferência, não matar a tiro. Matar espancado, empindurar [pendurar] ou decapitar, morrer devagar, entendeu?”. Papagaio complementa dizendo que “cabueta, pirangueiro e boca de prata são tudo sem vergoim”. O “boca de prata”, como já falado anteriormente, é o sujeito que se relaciona com uma mulher envolvida com outro “bandido”.
Pergunto a Raposão sobre os “corre de ganso” e os “atrasa lado”. Ele me explica: Os corre de ganso é aquele que chega, por exemplo, se batiza no CV [Comando Vermelho, facção à qual Raposão é batizado] e sai dizendo pra todo mundo ‘ah, eu sou do CV’, sai pichando a casa da população botando CV. No lugar de tá levando progresso pra família, de tá fortalecendo, tá é atrasando… sai apavorando a população. O atrasa lado é quase parecido, digamos, é o cabueta, um estrupador encubado. A gente não aceita, esse a gente mata no automático. A gente não aceita, essa parte aí de pederastia, a gente mata no automático. Se a gente tivesse o endereço de todos, ia buscar no online. Matando, fazendo vídeo e jogando no grupo”.
Há ainda o “traíra”, que é também um “pirangueiro”. Raposão me detalha o que ocorre, por exemplo, quando alguém de um grupo de assaltantes subtrai apenas para si um produto de um roubo. Ele me conta sobre um assalto a uma residência de luxo em um bairro das camadas médias e altas da cidade. Raposão nem sempre vai diretamente ao evento, mas financia o carro e as armas. Pergunto-lhe como ele pode garantir que ninguém vai omitir algum objeto ou dinheiro surrupiado. Ele me responde:
“Sempre no meio da equipe tem um fiel meu. Se a equipe não tiver um fiel, ela num sai, ela volta. Tem sempre aquele fiel, leal e sincero. Que aí ele chega ‘Ei, ó, a gente pegou um carro’, no online, ele conversando comigo no zap afastado dos outro: ‘Ó, veio uma aliança, veio um relógio, uma pulseira, veio 30 mil…’. Só que ele não se acusa na hora. Na hora que eu chego no setor lá da gente, aí eu espero tudo em cima da mesa… Aí se veio tudo, mas faltou a aliança, eu vou procurar saber quem foi que deixou faltar a aliança. Pronto, aquele dali já é excluso, ninguém fala nada que ele vai morrer. Aí um dia depois a gente vai, sequestra o menino e planta por ali pelo Jangurussu” [bairro periférico da zona sul de Fortaleza].
Na moralidade das relações criminais, situações como esta descrita por Raposão são excepcionais, não ocorrem com a frequência que o leitor e a leitora podem estar imaginando.
Na maioria da rotina cotidiana, os conflitos são resolvidos com palavras. Uma boa argumentação oral evita o aprofundamento de muitas brigas. Quando a oralidade não é mais suficiente, há um gradiente de outras punições (expulsão do local; banimento permanente ou temporário das atividades delitivas; espancamento, com algumas precauções, como não atingir a cabeça violentamente, etc.) antes que se chegue à situação limite do assassinato.
Destaco que estas categorias que foram aqui trabalhadas são fluidas, dançam muitas vezes no mesmo salão semântico, se embaralham frequentemente. Se o “pirangueiro” tem por propriedade especial aglutinar todas as classificações negativadas do código moral, um “x-9” pode ser um “cabueta”, este pode ser um “atrasa lado”, o “nóia”, além de “pirangueiro”, pode ser um “traíra”, e assim ciclicamente, numa espiral de atribuições depreciativas dentro das regras de conduta e comportamento das relações criminais. É fundamental também esclarecer que este código não é estático, está sempre se reatualizando – ainda que se conserve mais do que se transforme –, portanto, está sujeito a interferências, contradições, contingências, etc.
Esta moralidade é muitas vezes ambígua, repleta de paradoxos. Desta maneira, ela não pode ser analisada de forma objetificada, como um quadro homogêneo e estéril que não permite criação ou desconstrução, ainda que, reitero, sua força de conservação tenha uma pujança considerável.
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A série Antropologia do crime no Ceará é publicada semanalmente no #siteberro. Veja abaixo os textos anteriores.
artur@revistaberro.com / revistaberro@revistaberro.com
i. A dimensão ética na pesquisa de campo
ii. Pesquisando o “mundo do crime” e inserindo-se no “campo”
iii. Grande Tancredo Neves: formação dos territórios
iv. As relações sociais das camadas populares
v. A feira como arte da oralidade popular
vii. Estabelecidos e outsiders: a favela dentro da favela
viii. “Trabalhadores” e “bandidos”: entre separações e aproximações
ix. Sistema de relações sociais do crime: uma rede de ações criminais hierárquicas
xi. “Não confio na polícia”: A relação de descrença entre a classe trabalhadora e os policiais
xii. A economia da corrupção que move a relação entre polícia e “bandidos”
xiv. Tecnopolítica da punição: A função econômica do encarceramento
xv. Estado punitivo-penal e a produção social da delinquência
xvi. “Cadeia é uma máquina de fazer bandido”
xvii. A “escolha” é uma escolha? Compreendendo o ingresso nas relações criminais
xviii. Consumo, dinheiro e sexo: a tríade hedonista da carreira criminal
xix. Traumas, complexos e a luta por reconhecimento (parte I)
xx. Traumas, complexos e a luta por reconhecimento (parte II)
xxi. “Fura até o colete dos homi”: As armas como símbolo dominante
xxii. Os códigos morais da criminalidade favelada (parte I)
xxiii. Os códigos morais da criminalidade favelada (parte II)
xxiv. “Mãezinha”: uma categoria local que põe em suspensão o ethos violento
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