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O favelês cearense, que aqui proponho como categoria de análise, é um modo de falar riquíssimo em inventividade e semântica, é o principal dialeto falado nas favelas cearenses por parte considerável dos(as) habitantes destes locais. É um jeito de se expressar que funciona como uma economia linguística que subverte criativamente a ortodoxia gramatical, visando a uma experiência comunicacional que se vale de corruptelas léxicas e eclipses orais que a tornam inalcançável a qualquer normatividade. Mais ainda, é um socioleto cultural pleno de engenhosidade que dialoga, de certa forma, com a história de vida das classes oprimidas, de uma ascendência afro-ameríndia que historicamente teve no seu “linguajar” cifrado e oculto parte de sua força de resistência. Funciona como “uma fortaleza das palavras”, para usar a expressão da socióloga Glória Diógenes, em Cartografias da cultura e da violência: gangues, galeras e o movimento hip-hop.
É um profundo e denso oceano semântico, mareado de neologismos, sintaxes, elipses nominais e verbais, um mosaico de palavras. Seus falantes são artistas que dão corpo a um vocabulário nômade, cigano, marginal, que está em constante movimento, e que, como a pele da serpente ou o bico da águia, precisa de tempos em tempos se renovar para continuar existindo.
A riqueza do favelês cearense não está apenas no sistema léxico, no seu cabedal quase infinito de novas palavras e novos usos para antigas palavras, mas na forma de falar, na maneira como o(a) falante se porta ao emitir a comunicação, na fonética tão específica, no gestual tão característico.
Se a linguagem normativa, como disseram Deleuze e Guattari, em Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia, é “um marcador de poder antes de ser um marcador sintático” e, como já ensinou há muito tempo o linguista Ferdinand Saussure, o signo é arbitrário porque ele opõe a criatividade do falar ao sistema linguístico; nesse sentido, o favelês é a criatividade da palavra burlando o sistema conservador da língua.
Para leigos(as), conseguir acompanhar o ritmo e entender uma conversa no favelês cearense é tarefa espinhosa, de dificílima compreensão. Aprendi-o ainda na adolescência, mas é preciso praticá-lo e vivenciá-lo, pois, como dito acima, ele está sempre se reatualizando, o nomadismo semântico é sua característica inerente. Expressões caem em desuso e outras assumem seu lugar: o que outrora era o “bichão” hoje é o “patrão”, o “tá ligado?” virou “s’intera?”, o “mirim” transformou-se em “pivete” ou só “vet”, “tô nem vendo” ou “ele(a) não tá nem vendo” reinventou-se para “banda vuô”, etc.
Um exemplo concreto da sua inventividade. Imaginar que “machado de assis” pode ser sinônimo de dividir é insólito para muita gente. Pois bem, explico: “machado” é uma expressão que, geralmente acompanhada de um gestual que imita algo cortando na palma da mão, significa dividir alguma coisa, repartir igualmente algo, seja – vá lá – dinheiro ou um pedaço de pizza, por exemplo. Não satisfeito, os(as) falantes adicionaram o “de assis”, brincando inventivamente com o nome do escritor canônico da literatura nacional. No favelês cearense, “machado de assis” não é o autor de O alienista e tantos outros textos marcantes das letras brasileiras (por isso a escrita em minúscula), mas uma expressão ressignificada que simboliza repartir, desde, por exemplo, o lucro de algum “jogo” agilizado no tráfico ou em um assalto, ou a partilha inocente de uma coxinha na mercearia. “Ei, vet, é machado de assis, sintera?”, pergunta o jovem, antes de repartir o salgado.
Um outro exemplo dessas ressignificações é também emblemático. Entre o final dos anos 1990 e o início dos anos 2000, o crack, subproduto da pasta da cocaína, que era chamado de “pedra”, passou a ser chamado também de “brita”. Daí, os(as) inventivos(as) falantes do favelês cearense incrementaram a expressão “brita” e transformaram-na em “britinêi” (está escrito de acordo com a pronúncia), numa referência pop à cantora estadunidense Britney Spears, que à época fazia sucesso mundial. Hoje, em poucas áreas a palavra vem à tona, pois como o favelês é dinâmico e se reatualiza, inclusive em alguns aspectos de acordo com referências da indústria cultural, são apenas os(as) falantes com mais de 30 anos que conhecem a expressão.
Este idioma cultural, uma criação periférica e intralinguística, é predominantemente compartilhado nas periferias cearenses, mas também há expressões bastante localizadas, próprias de uma favela ou de favelas de uma região específica da Grande Fortaleza.
Defendo como hipótese empírica que o favelês cearense é um resquício bastante transformado do originário nheengatu, da família linguística do tupi, que já foi a principal língua falada em boa parte do Brasil por índios tupis, mamelucos, caboclos e portugueses subalternos, principalmente nestas bandas do Norte (vale destacar que o Ceará foi por séculos associado ao norte brasileiro; a classificação “Nordeste” vem surgir muito depois, em 1969, após definição do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística/IBGE). No século XVIII, o nheengatu era tão amplamente falado no país que foi proibido em 1727 pelo rei de Portugal, pois este queria a hegemonia do português lusitano. De acordo com Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil, essa “língua da terra”, mesmo após a proibição, continuou a ser falada e ainda era possível ouvi-la, na região Sudeste, nas conversas das pessoas mais velhas do interior na primeira metade dos Oitocentos; e durou ainda mais no Norte e no Nordeste, resistindo na oralidade do povo até o final do século XIX. A língua ainda hoje resiste em algumas regiões amazônicas próximas ao Rio Negro.
Acredito que resíduos de nheengatu perduram ainda hoje na linguagem da gente mais humilde, principalmente do campo e das periferias, não necessariamente na sua sintaxe ou na fonética da oralidade, mas certamente enquanto instrumento semântico da semiótica da resistência. A linguagem, sem dúvida, é parte inseparável de imemoráveis experiências compartilhadas de resistência, códigos ocultos e contra-violência.
Devido aos efeitos da marginalização, há uma espécie de imanência histórica compartilhada entre o nheengatu, o favelês, o black-english falado nos guetos nova-iorquinos, o pajubá dos segmentos LGBTQIA+ no Brasil, o crioulo palenquero falado em regiões do caribe colombiano, para ficar em alguns exemplos. De acordo com o sociólogo José de Souza Martins, em Uma sociologia da vida cotidiana, “os conteúdos do vocabulário português e do vocabulário nheengatu expressam a oposição de mentalidades, de modos de ver o outro e o mundo e, sobretudo, o modo de compreender a mestiçagem como junção de opostos e não propriamente como harmônica fusão dos diferentes”.
Em diálogo com a teoria dos atos de fala do filósofo da linguagem John Austin, diria que o favelês cearense é um modo de agir, uma arte de fazer. Há uma performatividade da oralidade na sua gente falante. A fala, nesse caso, não apenas relata, mas realiza, faz, atua e produz efeitos e consequências concretas sobre o mundo social. Não há discernibilidade entre o favelês e as condições de opressão das camadas pobres do Ceará. Ele é uma linguagem oral que surge como práxis constituinte dessa realidade de espoliação, e não apenas como uma pretensa “representação” dessa realidade. Trazendo para o debate James Scott, autor de A dominação e a arte da resistência, traço uma analogia para sublinhar que, assim como o discurso oculto que esse autor teoriza,
o favelês cearense se constitui também como um meio de disfarce dos setores marginalizados que lhes dá solidariedade linguística, um discurso moral “que manifesta publicamente uma identidade e solidariedade com os companheiros da mesma classe contra a classe média e a alta”.
As pessoas mais velhas, idosas, não falam o favelês corriqueiramente, mas um cearensês carregado de marcas sertanejas, lembranças das migrações do sertão para a capital, características do inchaço dos grandes centros urbanos. O cearensês, vale sublinhar, é um dos 16 dialetos do português brasileiro reconhecidos por linguistas – e tem tido seu espaço de divulgação na cultura pop em filmes como Cine Holliúdy, de Halder Gomes, que virou série na principal rede de televisão brasileira.
Voltando ao favelês cearense, vale dizer que ele é o único socioleto utilizado nas conversações das relações criminais nas favelas de Fortaleza. Isto não é o mesmo que dizer que esta forma de oralidade está restrita às relações criminais; muito pelo contrário, como foi abordado ao longo de todo o texto, o favelês cearense está disseminado pelas periferias de Fortaleza, e é utilizado principalmente por homens e mulheres jovens (e em menor grau também por crianças!) que dão vazão a esta semântica como uma forma definitiva de separação de uma ortodoxia gramatical que, em termos gerais, os(as) marginaliza e exclui.
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A série “Antropologia do crime no Ceará” é publicada semanalmente no #siteberro. Veja abaixo os textos anteriores.
i. A dimensão ética na pesquisa de campo
ii. Pesquisando o “mundo do crime” e inserindo-se no “campo”
iii. Grande Tancredo Neves: formação dos territórios
Ótimo artigo. Adorei. Talvez poderia apontar uma coisa. O Tupi-guarani não se misturam segundo alguns pesquisadores mais modernos. Dizer tupi-guarani parece não ter muito embasamento. Foi popularizado por varios autores, é fato. Mas me parece que o nheengatu e outras línguas modernas não têm parentesco nenhum com o Guarani.
valeu pela dica Raphael. demos uma breve pesquisada e você tem razão. já atualizamos no texto. o nheengatu tem origem tupi apenas.