“O dinheiro fala mais alto, [com ele] se torna mais fácil de fazer justiça”: A violência do aparelho judiciário



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(Ilustração: Lara Albuquerque)

Nenhum regime de signos talvez seja mais acionado pelos meios de produção simbólica da realidade nas sociedades contemporâneas do que aquele que constrói um pretenso e, por que não dizer, fantasmático “Estado de direito”. Essa expressão está onipresente nos discursos hegemônicos como um símbolo de bem-estar social, de ordem democrática e de garantia inquestionável dos direitos e da dignidade humana: uma tentativa séculos depois de ainda beber nos ideais iluministas de igualdade, liberdade e fraternidade – um Iluminismo eurocentrado, branco e heterocêntrico.

Esta suposta defesa do “Estado democrático de direito” abrange inclusive setores militantes de “esquerda” e populações marginalizadas, devido à sua notável eficácia subjetiva. Implicitamente, ela esconde estrategicamente o arbítrio fundante das leis e a impossibilidade do direito de romper com as desigualdades de classe. Assim, o “Estado democrático de direito” estará sempre direcionado aos direitos dos segmentos dominantes. A garantia do Estado democrático de direito é uma fábula discursiva empreendida pelas ordens estatais hegemônicas, que não tem observância empírica na realidade social, principalmente quando analisadas em aplicação às populações estigmatizadas. As violações a estes direitos são, na maioria dos casos, operadas pelo próprio modo de funcionamento do Estado. 

Nas conversas com as pessoas no Grande Tancredo Neves (GTN), um pergunta recorrente era sobre o que pensavam da “justiça”. Para a pesquisa, era fundamental tentar compreender de que forma as pessoas das classes populares vivenciam as normas jurídicas em suas práticas cotidianas. As respostas de que não confiavam na justiça, ou de que ela é “falha” e “lenta”, se por um lado são clichês, por outro demonstram que, nas suas leituras espontâneas sobre a estrutura social, as pessoas pobres não ignoram a face violenta do aparelho judiciário.

Dona Albanisa, 48 anos, doméstica que não concluiu os estudos, reflete sobre as desigualdades dos meios judiciários: A justiça é falha! É muito lenta, as coisas acontecem e vêm acontecendo e a pessoa fica esperando pela justiça e se acaba em nada, bem dizer, né? É muito lenta! [A senhora já teve algum caso com a senhora, algum familiar ou amigo?] Tenho, é minha cunhada lá do interior. Ela é separada do marido, tem três filhos pequenos e lá é muito lento em caso de pensão, é horrível. Lá atrasa o tanto que quiser. A minha cunhada veve pra cima e pra baixo tentando, mas não cumprem a lei, a lei não é cumprida. 

Acho assim… que o dinheiro fala mais alto, se torna mais fácil de fazer justiça. Um pobre pode pagar por uma coisa que não deve, agora, se for um rico, paga aquela dividazinha que ele tem, aí num instante solta… é falha, muito falha a justiça. Tem que falar a verdade, né?”

A partir de uma perspectiva teórica, Walter Benjamin, em Crítica da violência: crítica do poder, ressalta que há uma violência que funda o direito e outra que o mantém atuante. Segundo o filósofo alemão, a violência tem duas funções primordiais: a primeira é a instituição do direito, e a segunda, sua manutenção: “o direito considera o poder na mão do indivíduo um perigo de subversão da ordem judiciária”. Ainda de acordo com Benjamin, ao se pensar uma crítica da violência deve-se fundamentalmente demonstrar suas relações inerentes com o direito e a justiça.

Partindo da crítica de Benjamin, Pierre Bourdieu, em Meditações pascalianas, afirma que “o arbítrio e a usurpação estão na origem da lei”. Para este autor, o direito se constitui enquanto um dos principais campos de manutenção da ordem simbólica, ou seja, do status quo. De acordo com o sociólogo francês, o direito só é reconhecido socialmente de maneira durável ao longo do tempo porque sua parte arbitrária é ignorada desde o princípio pelos segmentos dominantes que o fundaram. 

De acordo com Foucault, em Vigiar e punir, a justiça não existe para punir todas as práticas ilegais, mas para ser um instrumento de um controle diferencial dessas práticas, operando uma “gestão dos ilegalismos”, na qual algumas das ilegalidades das classes populares são as que sofrerão as imputações criminais das leis penais. 

Pango parecia saber muito bem disso, mesmo sem nunca ter lido o filósofo francês: “Tendo dinheiro tu num vai preso não. Tu compra todo mundo: juiz, desembargador, promotor”. E por que o Cassaco não está solto?, pergunto-lhe, me referindo a um dos maiores traficantes do Ceará, preso em um presídio federal no Paraná. “Porque o nome dele é muito polêmico. Porque dinheiro ele tem. E tem muito. Porque se ele quiser se soltar e comprar todo mundo, a imprensa cai em cima. É mais pela imprensa que ele tá preso. Porque se fosse pela justiça ele já tava solto”. Cassaco foi solto meses posteriores a essa entrevista após conseguir um habeas corpus, mas pouco tempo depois foi assassinado. 

Raposão foi outro “bandido” que nas falas deixava transparecer um arraigado desprezo pelo aparato judiciário, uma profunda descrença no “estado democrático de direito”. Sua experiência como morador de periferia inculcou-lhe a percepção de uma justiça desigual, não acessível às populações faveladas, como se estas fossem indignas de serem atendidas em termos de garantia de direitos civis e sociais pela estrutura judiciária.

São “corpos incircunscritos”, lugares de punição e “lugar apropriado para que a autoridade se manifeste através da inflição da dor”, afirma Teresa Caldeira, em Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo.

Penso que as populações pobres não recorrem e não confiam na justiça por saber, na sua vivência prática e micropolítica do mundo social, que a justiça não é constituída para ajudá-las, mas para realizar nenhuma outra coisa senão normatizá-las e enquadrá-las de acordo com as conveniências para a manutenção da ordem dominante, do status quo

Se por um lado os “trabalhadores” não denunciam as “bocadas” que funcionam abertamente nas suas ruas ou nas vizinhanças por medo de represálias dos “bandidos”, por outra perspectiva pode-se pensar que esta complacência com o tráfico varejista indica também um medo receoso e um desinvestimento subjetivo em acionar determinadas instâncias jurídicas, bem como, e na mesma medida, uma certa desconfiança, um “pé atrás”, como se diz na linguagem popular, diante dos desdobramentos judiciais que sua conduta pode trazer a si; trocando em miúdos, o medo que os “trabalhadores” têm dos “bandidos” em seus territórios é igualmente proporcional à descrença numa suposta lisura e igualdade reivindicada pelos aparelhos ideológicos judiciários.

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A série “Antropologia do crime no Ceará” é publicada semanalmente no #siteberro. Veja abaixo os textos anteriores. 

i. A dimensão ética na pesquisa de campo

ii. Pesquisando o “mundo do crime” e inserindo-se no “campo”

iii. Grande Tancredo Neves: formação dos territórios

iv. As relações sociais das camadas populares

v. A feira como arte da oralidade popular

vi. O favelês cearense

vii. Estabelecidos e outsiders: a favela dentro da favela

viii“Trabalhadores” e “bandidos”: entre separações e aproximações

ix. Sistema de relações sociais do crime: uma rede de ações criminais hierárquicas


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