6 Comentários
Vale destacar que o código moral das relações sociais do crime no Ceará precede a chegada massiva das facções organizadas no Estado, a partir de meados desta década (em textos posteriores falaremos especificamente sobre as facções e como sua chegada ao Ceará se deu desde as décadas de 1980, no caso do CV, e de 1990, no caso do PCC).
O “proceder”, para usar um termo muito recorrente nas relações criminais paulistas e explorado principalmente por Adalton Marques, não é uma particularidade de coletivos organizados e orientados para a realização de atividades delitivas, como o Primeiro Comando da Capital (PCC), o Comando Vermelho (CV), a Família do Norte (FDN) e os Guardiões do Estado (GDE).
O “correr pelo certo” já existia por aqui desde os tempos das gangues de bairros populares. Geralmente, o código de ética do “crime” é sobremaneira respeitado pelos mais antigos na “atividade”, que já o introjetaram como memória acumulada das experiências vividas.
A criminalidade favelada está envolta em rituais de comportamento historicamente construídos pelas antigas gerações. No entanto, esses ritos estão em constante reatualização e são permanentemente evocados na prática cotidiana.
No entanto, a partir do início do século, com o aumento desenfreado no acesso a armas de fogo, os “criminosos” muito jovens, entre 10 e 15 anos, negligenciaram e transgrediram muitos dos acordos tácitos que regulavam a conduta e o comportamento de um “bandido homem”, provocando relativa perda de credibilidade da ética criminal. Alguns dos pilares de sustentação deste código, que são a política de “proteção” aos moradores e a inviolabilidade das casas nas favelas, começaram a ser desrespeitados pelos “pivetes”, o que provocou um desarranjo nas relações criminais e uma considerável descrença na eficácia das regras morais do “crime” por parte dos “trabalhadores”, que estavam sendo roubados nos seus bairros, vendo suas casas serem invadidas etc. João, “bandido das antigas”, é enfático: “É por isso que hoje em dia morre muito pivete”.
A pesquisa etnográfica de Luiz Fábio Paiva, Contingências da violência em um território estigmatizado, realizada num complexo de bairros populares em Fortaleza, denominado Grande Bom Jardim, conta muito bem deste momento de instabilidade do código moral das relações criminais, quando os moradores se sentiam encurralados dentro de seus territórios pelas quadrilhas de jovens infratores que não mais compactuavam com os antigos costumes de não “mexer” com os trabalhadores. A chegada em massa das facções criminosas ao Ceará, um processo que começa em 2013 e se consolida em 2015, teve como uma das principais funções retomar algumas regras de conduta que estavam quase caindo em desuso nas relações criminais cearenses. Hoje em dia, “vão roubar longe, não roubam os próprio morador não”, me explica Helena, 48 anos, garçonete em um pequeno restaurante do Grande Tancredo Neves.
Prensado, ex-traficante e ex-assaltante, é mais contundente:
“É safadeza, cara, você fazer pirangagem onde mora, porque tem trabalhador, cidadão, família. Se num respeita seu barraco, respeita o barraco do próximo. Vale a pena roubar a pessoa que tenha dinheiro, bó roubar um banco, um caixa eletrônico? Mas roubar um pai de família, parceiro? Ladrão que rouba pai de família, que mata pai de família, pra mim merece morrer”.
Há alguns relatos que gostaria de compartilhar que exemplificam a gramática moral das relações criminais. O primeiro deles é do próprio Prensado. Em uma das vezes em que foi preso, enquanto não “descia” para o presídio, foi alocado em uma cela de distrito policial. Ao chegar à grade de entrada, percebeu que na cela estavam dois dos seus rivais do comércio de drogas no GTN. Ele explicou a situação ao policial plantonista e então pediu para que não o colocasse ali. Não foi atendido. Quando entrou, um dos “inimigos” deu-lhe alguns tapas, mas o “bichão” rival logo interviu: “Ninguém vai fazer mais nada com ele aqui não, o furo nós cobra em liberdade, né aqui não… Aqui tá todo mundo no veneno. [Estando] no cubículo, é fora do jogo”.
O caso mostra que as “tretas” anteriores à prisão devem ser resolvidas somente em liberdade. A experiência de detenção deixa as contendas em situação liminar, visto que a liminaridade, na teoria de Victor Turner, como circunstância intermediária e periférica da vida cotidiana, que põe em suspensão momentânea alguns ritos, é caracterizada por “mudanças no status social de um grupo ou de um indivíduo”. Ao se encontrarem presos, “no cubículo”, Prensado e seus rivais situavam-se em configuração diferente à da liberdade, em status distinto ao que carregavam no mundo extramuros, e esta condição exigia moralmente um armistício negociado entre “bandidos homens”. Rafael Barbosa, em As armas do crime: reflexões sobre o tráfico de drogas no Rio de Janeiro, ao falar das regras do Comando Vermelho (CV), destaca justamente que as “incompatibilidades trazidas da rua devem ser resolvidas na rua”.
Prensado novamente me contou um episódio que demonstra outras particularidades do código de ética criminal. Em uma das muitas “guerras” do GTN pelo controle territorial de áreas, na luta intestina entre gangues pelas fronteiras físicas e simbólicas da periferia com o objetivo de comandar o tráfico de armas e drogas, ele detalha uma oportunidade em que sua quadrilha invadiu um território para matar os “inimigos” que haviam assassinado seu tio, um icônico “patrão” da Vila Cazumba. Para surpreender os rivais, foram de manhã bem cedo. Contudo, foram também surpreendidos pelo intenso movimento de pessoas não envolvidas com as ações criminais àquela hora do dia. Um atraso de vinte minutos na operação tinha feito a diferença para a “missão” fracassar. “Vi mulher e criança na rua, num ia atirar, né!”, exclama Prensado.
É muito caro à ética criminal vitimar pessoas que não têm participação com as atividades delitivas.
Outro relato me foi contado por uma agente de saúde com quem fiz muitas visitas às residências dos moradores de uma das comunidades do GTN. Após o trabalho, Ana Rosa estava esperando o ônibus para retornar para casa. Ela e outra mulher aguardavam os transportes na parada de coletivos que fica em uma avenida que divide dois territórios do GTN. Nesse ínterim, uma dupla de assaltantes surge em uma bicicleta. A mulher é assaltada, mas Ana Rosa não. Os assaltantes a reconheceram do trabalho de saúde comunitário: “Ela é lá do posto, macho!”, disse um deles, avisando ao outro para que não agisse sobre a agente comunitária.
A quarta história pude acompanhar como uma das partes envolvidas, ainda que apenas indiretamente. Uma ex-companheira trabalhava no Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) de uma comunidade pauperizada de Fortaleza, o Lagamar, comunidade que muitas vezes rivaliza no comércio de drogas e em poderio bélico com o GTN na região sudeste da cidade. Em um intervalo de seis meses, ela fora assaltada três vezes perto de chegar ao trabalho logo de manhã bem cedo. No último assalto, quando levaram sua bolsa com documentos, cartões de crédito/débito e dinheiro, ela me ligou revoltada. Sugeri-lhe que no CRAS procurasse saber se algum dos trabalhadores precarizados, como zeladores, cozinheiras, seguranças, pessoas da portaria etc. conhecia o “bichão” do Lagamar. Disse o nome dele. Eu não o conhecia, mas devido às minhas andanças de longa data no GTN já tinha ouvido falar bastante do “dono” do Lagamar. Quando chegou ao CRAS, ela conversou com o porteiro sobre o ocorrido. O porteiro não apenas sabia quem era o “bichão”, mas tinha contato com ele. Ligou e explicou o ocorrido. O “bichão” se dispôs prontamente a resolver a situação. Até o final daquela manhã, alguns garotos foram entregar ao porteiro no CRAS a bolsa com todos os pertences.
Vale dizer, por oportuno, que esta ética “justiceira” é parte inextricável da construção moral e da eficácia local de qualquer “patrão” dentro do complexo de relações sociais do crime.
Casos como estes não são exclusivos do Lagamar, mas compõem a memória social de muitas periferias em todo o país. O código moral das relações criminais faveladas mantém algumas condutas “universalizadas” a despeito das diferenças culturais e geográficas.
Outro tabu que se salienta na construção moral dos “bandidos” pobres tem relação com as desigualdades de gênero. A companheira (esposa, namorada, etc.), muitas vezes, é considerada tão posse quanto um automóvel, uma casa; enfim, é mais um pertence. Envolver-se sexualmente com uma mulher comprometida com outro agente criminal é, provavelmente, “a pirangagem mais mortal”, conta Papagaio. O “boca de prata”, aquele que “fica com a mulher do cara é bom de peeia!”, complementa ele. Doc, um “bandido homem” com quem Foote Whyte conversou em sua pesquisa num subúrbio de Boston nos 1940, já adiantava esta premissa básica das relações criminais: “Esse é o código pirado que há por aqui: se ele diz que ama a garota, tenho que deixá-la em paz”.
Perguntei a alguns dos meus interlocutores se o “crime” tinha alguma lei. Todos confirmaram que sim. Indaguei-os como era essa lei. Papagaio dá a sua versão: “A lei do crime é andar certo, na linha. Não desandar do bagüi [bagulho], não roubar cidadão, respeitar as vizinhança, tá entendendo? E se nós pega estrupador [estuprador], nós bota pra matar tudim, estrupador, cabueta, boca de prata, x-9”.
Pango, “patrão” de um dos territórios no GTN, me falou sua visão sobre como era a “lei do crime”: “É não comer [roubar] nada de ninguém [do local], trabalhar direito, num querer comer a mulher dos outros, de outro bandido, e ser humilde mah… o cara sendo humilde e respeitando, ele entra em todo canto, primeira das coisas ele tem que ser humilde. Porque tem muita gente que começa a ganhar dinheiro, aí começa a ser bichão, aí aumenta as asa, aí num é assim mah, tem que ser humilde, ajudar as pessoas, porque aqueles invejoso, olho grande, vai querer falar besteira pra outras pessoas, e aquelas pessoas [com quem] que tu já é humilde, já ajudou, vai querer dizer assim “não, o cara num é desse jeito, esse bicho é safado”. E aquela pessoa que é olho grande, invejoso, vai pro saco”.
A fala de Pango levanta um ponto que quero discutir brevemente. Ao enfatizar por diversas vezes que “ser humilde” é um atributo moral indispensável ao agente da criminalidade favelada, ele reforça uma dimensão bastante valorizada entre aqueles que são mais conservadores no que diz respeito ao cumprimento de uma ética criminal restrita e racionalizada.
A humildade nas relações do crime geralmente tem relação com uma “caminhada” mais longa nas práticas delitivas, ela é a experiência adquirida fruto de aprendizados vivenciais, é herdeira de uma maturidade psicoemocional que já aprendeu que a arrogância atraem inimizades e desavenças prejudiciais às atividades criminais. A humildade é possivelmente o principal componente do “proceder”, do “correr pelo certo”.
Os muitos jovens que se seduzem facilmente pelos assaltos e pelos tráficos de armas e drogas raramente possuem este predicado. São mais propensos aos arroubos juvenis, às impulsividades e imprudências próprias da faixa etária, falta-lhes uma humildade “malandra”, característica dos “bandidos homens” com carreiras delitivas mais extensas.
Digo humildade “malandra” porque este “ser humilde” do qual fala Pango é uma tática e, muitas vezes, performática, joga com as oportunidades que o campo de atuação oferece para obter as vantagens inerentes desta ética comportamental. Ser humilde, neste sentido, não é ser “bonzinho” ou “otário”, mas ser esperto e astuto ao estabelecer zonas de convergência e empatia por todos os lados de sua atividade criminal. Pango complementa: “Eu sou mais na minha… tem a hora do cara ser bichão, né?” Ser humilde é, pois, uma ação tática, no sentido certeauniano, uma vez que funciona como estímulo de recursos de representatividade e consideração. Nesta perspectiva, ter a capacidade diplomática de “ser humilde” é uma referência positivada pelos mais experientes nas relações criminais: “O nêgo num pode chegar apavorando. Nunca apavorei, fui sempre respeitado, em todo canto. Ei mah, o nêgo sabe chegar e sabe sair”, comenta João, sobre suas percepções acerca do código moral do “crime”.
///
A série Antropologia do crime no Ceará é publicada semanalmente no #siteberro. Veja abaixo os textos anteriores.
artur@revistaberro.com / revistaberro@revistaberro.com
i. A dimensão ética na pesquisa de campo
ii. Pesquisando o “mundo do crime” e inserindo-se no “campo”
iii. Grande Tancredo Neves: formação dos territórios
iv. As relações sociais das camadas populares
v. A feira como arte da oralidade popular
vii. Estabelecidos e outsiders: a favela dentro da favela
viii. “Trabalhadores” e “bandidos”: entre separações e aproximações
ix. Sistema de relações sociais do crime: uma rede de ações criminais hierárquicas
xi. “Não confio na polícia”: A relação de descrença entre a classe trabalhadora e os policiais
xii. A economia da corrupção que move a relação entre polícia e “bandidos”
xiv. Tecnopolítica da punição: A função econômica do encarceramento
xv. Estado punitivo-penal e a produção social da delinquência
xvi. “Cadeia é uma máquina de fazer bandido”
xvii. A “escolha” é uma escolha? Compreendendo o ingresso nas relações criminais
xviii. Consumo, dinheiro e sexo: a tríade hedonista da carreira criminal
xix. Traumas, complexos e a luta por reconhecimento (parte I)
xx. Traumas, complexos e a luta por reconhecimento (parte II)
xxi. “Fura até o colete dos homi”: As armas como símbolo dominante
xxii. Os códigos morais da criminalidade favelada (parte I)
6 Replies to “Os códigos morais da criminalidade favelada (parte II)”