Os inesquecíveis “pasquineiros”



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(Ilustração: Levi Noli/Revista Berro)

Ao longo de sua história, muitos/as jornalistas, humoristas e colaboradores/as atuaram n´O Pasquim; fizeram parte da patota. Assim, ao escolhermos, entre todos aqueles, uns poucos para aqui analisarmos rapidamente – logo, longe de ser um perfil ou coisa que o valha –, certamente estaremos deixando de fora  alguém. Quando selecionamos alguns, e abdicamos de outros, não quer dizer que aqueles que aqui não estão analisados foram esquecidos e sua importância para o alternativo seja menor ou desprezível. No entanto, em nossa subjetiva análise, cinco nomes merecem destaque pela marca indelével que deixaram ao longo de sua passagem no semanário.

Nada mais razoável que começar pelo mais experiente de todos aqueles humoristas: o genial Millôr Fernandes. “Ao chegar ao Pasquim, Millôr foi recebido como mestre”, pontua defende Norma Pereira Rego, em Pasquim: gargalhantes pelejas. Não fazia parte do grupo fundador do jornal, mas esteve presente desde o seu primeiro número. Neste, escreveu o artigo “Independência é? Vocês me matam de rir”, no qual brinca pertinentemente com a expectativa de duração do jornal (leia abaixo).

(Foto: Artigo de Millôr Fernandes na 1ª edição d´O Pasquim, junho de 1969)

O estilo de Millôr é soberbo, irônico, contundente, tanto no traço quanto na escrita. Nos seus desenhos, “a linha é tão pura e musical quanto uma peça barroca para piano. Nos textos é que este clima muda. A ironia espera por você logo à entrada e, lá dentro, tanto é possível haver diversão e deleite quanto espanto e desconforto”, explica Rego.

Millôr foi também polêmico. Quando a censura prévia deixou O Pasquim, em março de 1975, no número 300, o mestre produz o lancinante editorial “Sem Censura”, no qual finaliza: “Agora O Pasquim passa a circular sem censura. Mas sem censura não quer dizer com liberdade”(veja abaixo). A edição foi apreendida nas bancas. Millôr, cansado desse tolhimento da liberdade por parte do governo militar, deixa o jornal.

(Foto: Editorial d´O Pasquim escrito por Millôr Fernandes que foi apreendido nas bancas em todo o Brasil, 1975)

Outro “pasquineiro” que se sobressaiu naquela imensa patota foi o mineiro com ares de carioca Ziraldo. O desenhista também não fazia parte do grupo que fundou O Pasquim, mas deu sua espetacular contribuição desde os primeiros números. Dono de um estilo bem característico, com traços bem definidos e emblemáticos, Ziraldo era o “xodó” das agências de publicidade na época, que o entupiam de trabalho. Mas, foi n´O Pasquim que o cartunista marcou época – aliás, a palavra “cartum” foi uma invenção de Ziraldo, do inglês cartoon (cartão).

À primeira vista, para quem não conhece mais a fundo o trabalho dele, pensa-se que o criador do “Marciano” e do “Menino Maluquinho” atuou apenas na área dos desenhos. Ziraldo, brincando com as palavras, foi também responsável por muitos neologismos ao juntar palavras e condensá-las em uma só, uma técnica em que era excelente. Não apenas, mas com as palavras fazia brincadeiras e anedotas das mais engraçadas do jornal (veja abaixo). 

(Foto: Ziraldo não se destacava apenas nos desenhos, mas fazia muitas brincadeiras com as palavras)
(Foto: Muitas expressões cunhadas por Ziraldo ganharam as ruas e foram incorporadas à linguagem coloquial brasileira)
(Foto: O Pasquim, maio de 1970)
(Foto: O Pasquim, maio de 1970)

Suas charges, cartuns e seus textos traziam na maioria das vezes borrões, partes de seu ativismo político. Nas eleições de 1982, disse que se o candidato do PMDB, Miro Teixeira, perdesse as eleições no Rio, sairia do jornal. “Ziraldo e Jaguar resolveram tomar posições opostas e atrelar o futuro do jornal ao do partido vencedor”, diz Norma Pereira Rego. Brizola vence e O Pasquim passa a adotar uma linha editorial brizolista, capitaneada por Jaguar. Cumprindo sua promessa, passa suas ações para Jaguar e sai do alternativo.

Outro mineiro dos bons que integrava aquele jornal ipanemense foi Henrique de Souza Filho. Henfil, ao chegar ao Rio, foi logo apadrinhado e estimulado por Ziraldo, boa parte por serem conterrâneos, mas, com certeza, bem mais por seu talento incontestável. De personalidade forte, nos primeiros meses do jornal, comandou o grupo dos jovens cartunistas que exigiam maior participação no semanário, enfrentando veteranos da estirpe de Millôr e Jaguar.

Mas, sem dúvida, foi na construção de personagens que Henfil se destacou. Por trás deles, se implicitava a sua postura ideológica de contestação, de enfrentamento aos moralismos hipócritas e ao status quo. “Henfil é que vai extrair de seus personagens o máximo de intensidade dramática e de fluência narrativa”, diz  José Luiz Braga, em O Pasquim e os anos 70: mais pra epa que pra oba.

Os mais populares foram os Fradinhos, “Baixim” e “Cumprido”, que representavam “a sátira das posições moralizadoras da classe média”, sublinha Braga, mas também tivemos o “Tamanduá”, “que chupava os cérebros vazios de preocupações sociais”, diz Rego, o “Cabôco Mamadô”, “aquele tipo de político muito conhecido que mama no dinheiro do povo pra depois virar manchete de caso policial”, o jagunço “Zeferino”, o bode “Orelana”, “que comia livros e sabia de tudo, e a Graúna, uma sensibilidade que era um espelho do panorama nacional”, continua a autora (veja alguns cartuns abaixo).

(Foto: Os personagens da série ‘Fradinhos” eram os mais populares de Henfil)
(Foto: Henfil não poupava nem mesmo ícones da cultura popular brasileira, como Pelé, que nessa charge surge como alienado e sem consciência racial)

Henfil se foi novo, aos 43 anos, em 4 de janeiro de 1988, após contrair AIDS em uma das muitas transfusões de sangue que constantemente tinha que fazer devido à sua hemofilia. No entanto, sua arte e seu engajamento permanecem vivos e bastante atuais, fadados à imortalidade.  

Bastante subversivo e muito provocador, Ivan Lessa marcou época n´O Pasquim comandando a seção “Cartas”, na qual criou personagem inesquecíveis como Edélsio Tavares e Marly Tavares, esposa daquele, o Sr. e a Sra. Coelhinho, Caldas Marombão, entre outros. Antes disso, no começo do jornal, era correspondente de Londres, de onde mandava textos bem interessantes sobre assuntos gerais, principalmente da contracultura que borbulhava em terras europeias aqueles anos.

Contudo, como dito, foi na relação com o leitor que teve destaque. Quando voltou ao Brasil, já no ano de 1970, inovando na forma como respondia às cartas, Lessa conseguia, simultaneamente, irritar profundamente o público-leitor e/ou levá-lo à catarse. Na seção de cartas era onde se “criava uma atmosfera absolutamente original. A intimidade que tomava com leitor, sua agressividade sempre a mil, as molecagens de colegial adolescente ou de malandro que vive no seio da classe média, mantinha o leitor boquiaberto sem saber se ria ou se indignava”, sublinha Rego. 

“A parte mais eficaz da crítica de costumes do Pasquim era feita na seção de cartas e em outra chamada “Gip-Gip Nheco-Nheco”. O absurdo e o non sense eram o seu departamento”, continua Rego. Ivan Lessa era quem escrevia as duas seções. Foi também o criador, juntamente com Jaguar, dos “Chopnics” e do “Capitão Ipanema”.  Em 1978, volta à Inglaterra, de onde continuaria a mandar seus textos até agosto de 1983, quando deixa O Pasquim.

(Foto: A seção “Cartas” era umas das mais aguardadas a cada edição pelo público-leitor d´O Pasquim)

Por fim, temos aquele que foi o mais fiel integrante da patota, tendo permanecido n´O  Pasquim durante seus 22 anos de existência, desde sua criação, em 1969, até seu último número, em 1991: Sérgio Jaguaribe, o Jaguar. Típico boêmio carioca, Jaguar era dono de um estilo de desenho bastante irônico, debochador. O cartunista de Ipanema “é, entre os desenhistas de humor brasileiros, o que consegue pôr mais ironia no traço. De forma geral, não se detém muito no acabamento dos desenhos,  mas se estiver num dos seus momentos poéticos é capaz de finalizar o cartum com charme inteiramente pessoal”, ressalta Rego. 

Jaguar foi o criador do ratinho “Sig”, aquele que ao lembrarmos do semanário carioca é logo, de cara, associado. Sig “era o mestre-de-cerimônias do Pasquim, aparecia na capa e na abertura das matérias que eram a novidade da semana. Sonhador, valentão, irônico, deslumbrado, o Sig tinha tantas caras diferentes que só para vê-lo valia a pena comprar o jornal”, diz Norma Pereiro Rego. 

(O ratinho Sig, criação de Jaguar, era quase onipresente ao longo de todo o jornal, desde a capa aos conteúdos internos)

Em 11 de novembro de 1991, após mais de mil números, Jaguar finalmente decide pôr um fim à sua luta incansável de manter vivo aquele que foi o maior semanário brasileiro alternativo em termos de críticas aos costumes e de resistência ao poder ditatorial. A história d´O Pasquim certamente confunde-se e atrela-se à de Sérgio Jaguaribe, o Jaguar. 

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A série O jornalismo alternativo na ditadura militar é publicada sistematicamente no #siteberro.

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Clique nos links abaixo para acessar os textos anteriores:

I. O contexto sócio-histórico do nascedouro da imprensa alternativa no Brasil

II. A revolução dos “bichos-grilos”: o nascimento da contracultura

III. O movimento dos direitos civis: as lutas feministas e negras

IV. Sexo, drogas e rock’n’roll: o movimento hippie 

V. Arte corajosa nos trópicos

VI. 1968: o ano da rebelião mundial estudantil

VII. O AI-5 e a resistência da imprensa alternativa

VIII. Os jornais alternativos na vanguarda

IX. A estratégia dos alternativos e o contra-ataque da censura

X. Os jornais combatentes: os casos de Opinião, Movimento e Versus

XI. O Pasquim como protagonista da resistência

XII. Da tragédia à comédia: a busca pelo humor social

XIII. A crítica dos costumes e a contracultura pasquiniana

XIV. A revolução jornalística “pasquineira”

XV. A redação entre amizades: a construção coletiva


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