A revolução dos “bichos-grilos”: o nascimento da contracultura



0 Comentários



(Ilustração: Levi Noli/ Revista Berro)

Não se pode pensar parte significativa dos temas e conteúdos trabalhados na imprensa alternativa sem associá-los, direta ou indiretamente, com o movimento da contracultura. Este movimento tem sua gênese nos Estados Unidos ainda na década de 1950, com a Beat Generation, ou “Geração Beat”. Os beatniks eram jovens intelectuais estadunidenses adeptos de ideias que criticavam o consumismo, os valores e a alienação da sociedade industrial

Mas, foi no decorrer dos anos de 1960 que a contracultura popularizou-se e, partindo dos Estados Unidos, espalhou-se pelo mundo. Contudo, definir o que é contracultura não é tarefa tão simples, porque ela não foi um movimento palpável, concreto, datado e preso a alguma delimitação. Foi, na sua real significância, uma forma de contestação e de desprendimento dos valores burgueses da “sociedade tecnocrática”, como disse Theodore Roszak, em A Contracultura: reflexões sobre a sociedade tecnocrática e a oposição juvenil, além de ter sido um movimento essencialmente transformador no campo dos costumes e do comportamento.

Nos tempos de esplendor do movimento da contracultura, se houve alguém que teve seu nome comentado, estudado, elogiado e muito, mas muito falado, este foi, sem dúvida, o filósofo e sociólogo alemão Herbert Marcuse. O alemão é quase unanimidade em todas as obras que abordam os anos 1960 do século XX e a contracultura.

Dentre os 3Ms – de Marx, Mao e Marcuse – que inspiraram e instigaram as rebeliões e manifestações estudantis mundo afora, Marcuse sobressaiu-se àquela época. Seu livro One-Dimensional Man, de 1964, que no Brasil tem o título de A Ideologia da Sociedade Industrial: o homem unidimensional denunciava a sociedade tecnológica como superficial e conformada à alienação. De acordo com Mark Kurlansky, em 1968 – O ano que abalou o mundo, Marcuse “inseriu na disciplina cuidadosamente orquestrada da filosofia alemã todos os sentimentos dos rebeldes dos anos 1950 e dos estudantes revolucionários da década de 60”.

O pensador alemão vislumbrou um mundo pós-moderno em que a tecnologia teria papel fundamental de alterar, para pior, as relações humanas. Qualquer semelhança com o nosso tempo, regida pelas curtidas e follows nas redes sociais, não é mera coincidência. Se pensarmos nos algoritmos do século XXI e todas as transformações perigosas que têm gerado na sociedade, temos uma boa pista das ideias marcuseanas. 

“Enquanto pensadores mais convencionais insistiam que a tecnologia criaria mais tempo para o lazer, Marcuse advertiu que ela, em vez disso, aprisionaria as pessoas em vida pouco originais, destituídas de pensamento criativo. Avisou que, embora a tecnologia parecesse ajudar o dissidente, ela seria de fato usada para amortecer o protesto. As pessoas estavam sendo anestesiadas ante uma complacência que era confundida com felicidade”, sublinha Kurlansky.

No Brasil, o filósofo também foi venerado pela juventude universitária. Suas ideias invadiram as mentes tupiniquins através da imprensa mesmo antes de que suas obras fossem lançadas pelas editoras nacionais. Lodo depois, a recepção às ideias de Marcuse chegam com Eros e Civilização e Ideologia da Sociedade Industrial: o homem unidimensional. Marcuse era um pensador sintonizado com os ares do seu tempo, defende Zuenir Ventura em 1968: O ano que não terminou. Para Ventura, Marcuse conseguiu captar as novidades daquele momento histórico: o consumismo, a sociedade de massa, a social-democracia, a importância das minorias…

Em tempos de manifestações de estudantes aos montes, as teses do filósofo forneciam esperançosos objetivos políticos ao movimento estudantil, uma vez que, segundo Marcuse, o papel da vanguarda da revolução passaria da classe operária para os setores marginalizados pela sociedade industrial e principalmente para os estudantes. Motivos óbvios, portanto, para o alemão ser o grande nome da juventude universitária dos anos 1960. Como disse Kurlansky, o “guru dos estudantes radicais”.

De acordo com as teorias do filósofo alemão, a grande idéia da contracultura, como o nome já enseja, era posicionar-se contra tudo o que a sociedade tinha adquirido como valores e padrões formados, que de tão enraizados pareciam impossíveis de questionamentos.

Portanto, os adeptos desse movimento contestavam a sociedade industrial capitalista, sua cultura empresarial e seu consumismo intrínseco, o patriotismo, o nacionalismo – e, principalmente, revolucionaram os costumes.

Theodore Roszak também teve timing à época, ao entender antes de outros, com clarividência, as transformações que ora ocorriam. Ele pontuou que uma nova cultura surgia entre os jovens. Para ele, essa cultura era tão radicalmente contrária aos valores básicos da sociedade industrial burguesa que muitos não o consideravam uma cultura propriamente, mas uma barbárie que estava prestes a invadir a cultura ocidental. Assim, a tecnocracia, “forma social na qual uma sociedade industrial atinge o ápice de sua integração organizacional”, nas palavras de Roszak, contribuiu decisivamente para o advento da contracultura, na medida em que os jovens se rebelaram contra essa cultura estagnada e acrítica, própria da sociedade tecnocrática.  

Hoje, parece esquisita essa afirmação, mas nos primeiros anos a contracultura e suas ideias eram condenadas e consideradas pela esquerda tradicional brasileira e latino-americana coisas de alienado político. Como diz o músico e escritor Cadão Volpato, no artigo Paz e amor, bicho, “ser cabeludo era, de fato, um problema. E ser roqueiro, para os jovens  radicalizados de esquerda, que preferiam empunhar armas no lugar das guitarras – ou, na melhor das hipóteses, violões em canções de protesto –, era uma espécie de vergonha”.  

As ortodoxas esquerdas brasileira e latino-americana ainda não estavam preparadas para assimilar as ideias libertárias do movimento da contracultura. Muitos esquerdistas brasileiros, principalmente do “Partidão” – o Partido Comunista –, achavam que qualquer manifestação cultural que viesse dos estadunidenses, “os imperialistas”, era ruim e alienante.

Segundo Zuenir Ventura, “as transformações de costumes que começavam a se operar então nem sempre foram absorvidas pelas organizações políticas como um fenômeno paralelo, convergente ou aliado. Para um Partido Comunista como o nosso aderir aos novos costumes era um inaceitável desvio ideológico. As mudanças de comportamento não eram recebidas como sinais de avanço, mas de retrocesso. Eram sintomas de decadência da burguesia. A ideia de proletariado estava associada à ideia de pureza social”. 

Entre os muitos movimentos que a contracultura fez espalhar-se pelo mundo, três merecem um destaque especial pela sua importância, propagação e, principalmente, pelas conquistas proporcionadas ainda hoje: os movimentos feminista (revolução sexual), negro (direitos civis) e hippie. Trataremos deles no nosso próximo texto. 

///

A série O jornalismo alternativo na ditadura militar é publicada semanalmente no #siteberro.

Clique no link abaixo para acessar o texto anterior:

I. O contexto sócio-histórico do nascedouro da imprensa alternativa no Brasil


Tags:, , , ,

One Reply to “A revolução dos “bichos-grilos”: o nascimento da contracultura”

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *