”Eu boto tanta fé nesses corre, que a galera começa a meter fé também”



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Samuel Emtranse em uma das artelarias que desenvolve, a tatuagem (Foto: Sablina Cavalcante)

Quando conheci Samuel eu perguntei por que ele usava o sobrenome “Denker”, que era como ele se apresentava lá pelo ano de 2013. “Por nada, só pra frescá mermo”. Essa resposta foi uma das mais cristalinas que havia recebido durante os anos ouvindo as pessoas dos saraus. A espontaneidade de quem fala que gosta mesmo é de música e, através das afinidades musicais, fortaleceu amizades, reforçou laços familiares e suas ações passaram a produzir outros tantos encontros. Foi através da música que ele também passou a ser um leitor contumaz, agregando também um modo de ganhar a vida comprando e vendendo livros.

Samuel prefere hoje o sobrenome artístico Emtranse. Assim mesmo, com a letra “m” antes de uma consoante que não seja “p” ou “b”. Seus avós chegaram em Fortaleza vindos de Cajazeiras, na Paraíba. Caseiros de ocupação, desembarcaram na capital cearense com dez filhas mulheres e um filho. Nessa época, a mãe de Samuel ainda não tinha uma residência fixa na cidade, trabalhava de babá e via o filho de quinze em quinze dias até conseguir arranjar um teto. O garoto teve que morar com suas tias, conhecendo também vários bairros de Fortaleza. Pici, Papôco, Conjunto Esperança e Jereissati são exemplos dos bairros que ele conheceu morando nas casas das suas nove tias.

Foi através do livro Mate-me Por Favor que o então adolescente com treze anos passou a se imbricar no campo da literatura. Sua mãe, após fixar residência, sabendo do gosto do filho pelo livro, foi a uma livraria e conseguiu a obra escrita por Larry McNeil e Gilliam McCain para ele. O livro conta a história do punk rock nos Estados Unidos, estilo musical e comportamental americano surgido na década de 70. As várias referências literárias presentes na obra, segundo Samuel, fizeram com que ele buscasse cada vez mais outros livros para ler.

“Eu gostava era de música, de som. Só que aí nesse livro que eu consegui, minha mãe me deu de presente, eu falei pra ela, contava as histórias pra ela e ela foi lá e conseguiu, né cara? Foi numa livraria e conseguiu. Tinha muitas referências de literatura e eu comecei a ir atrás”.

Foi a partir daí que ele passou a ler outras obras. Conheceu Jorge Amado, Machado de Assis, dentre tantos outros romancistas. A poesia de Augusto dos Anjos que virou a cabeça do Samuel. O estranhamento causado pelos versos do poeta paraibano mexeu com a compreensão sobre o que o jovem rapaz pensava sobre literatura, instigando-o a pensar também em escrever seus próprios poemas

“O que bateu mesmo em mim foi quando eu conheci o Augusto dos Anjos, aí bateu forte, viu? Mancho, tu é doido! Aí eu me apaixonei mesmo pela poesia, que até então eu tinha contato com os contistas, né?(…) Aí depois do Augusto eu peguei mais referência atrás do Rimbaud, Baudelaire, desses maluco aí da poesia”.

Recordei uma frase de outro amigo poeta, Pedro Tostes, que no livro Casamata de Si (Editora Patuá, 2018) escreveu a frase “navegar é impreciso”. Lembrei porque com as leituras e os escritos, o Samuel passou uma fase na qual ele precisava se encontrar. Queria pensar mais sobre si, compreender melhor seus questionamentos sobre a própria existência, além disso ele tinha o sonho de conhecer outros lugares do Brasil e da América do Sul. Nessas inquietações que ele decidiu pegar a estrada e fazer um mochilão à sua maneira.

Brasília, Goiânia, passando pelo estado do Mato Grosso do Sul e chegando a Bolívia, Samuel foi conhecendo pessoas, além de outras culturas. Quatro anos de viagem, estadias que aumentam sua bagagem e sua perspectiva de mundo até a notícia da morte de sua avó, o que trouxe de volta o neto para Fortaleza. Seus avós são paraibanos, foi lá onde nasceram e constituíram uma família com dez filhas mulheres e um filho homem.

Com o retorno de Samuel Emtranse, logo veio a vontade de trocar experiências e poesias. Voltou o contato com um primo, o Aglailson, cujas inclinações artísticas eram semelhantes às de Samuel. Reaproximou-se também de outros amigos como Carlos Pinto e conheceu Carlos Magno. Esse último que mais tarde me apresentaria ao homem que hoje escrevo sobre. O embrião do ajuntamento de pessoas com o intuito de trocar poesias faladas e outras artes começava. O que mais tarde veio a se chamar Sarau da B1, evento que hoje é um patrimônio do fazer artístico em bairro descentralizado da Fortaleza réa.

Há três anos o poetalivreiro viajante estava na Praia dos Crush quando decidiu assimilar mais uma ocupação pra vida. No final de 2019, olhando ao redor da faixa de areia, “99,9% das pessoas tinham, só os recém nascidos que não tinham tatuagem”. Uma mudança em transe se anunciou e ele decidiu vender mais de mil livros do sebo que ele mantinha há mais de quinze anos. Samuel também fazia colagens e agregou o pensamento que poderia continuar fazendo as colagens, só que agora na pele das pessoas. Com ajuda de sua mãe e da Nina Rizzi conseguiu mobilizar pessoas em torno de seu apontamento de futuro.“Eu boto tanta fé nesses corre, que a galera começa a meter fé também”.

Consciente da responsabilidade que é desenhar no metal da pele das pessoas, Samuel conseguiu mobilizar recursos para comprar tintas, agulhas, maca e se aperfeiçoar com aprendizado de técnicas que agora fazem parte do seu cotidiano. A naturalidade com a qual ele fala da mudança é bem parecida com a que ele fala do retorno do sarau da B1. Após longo e necessário período de reclusão em decorrência do isolamento social, o sarau se prepara para retornar às atividades lá no Conjunto São Cristóvão, na pracinha da rua Boulevard 1. Samuel, mobilizador que é, compartilhou com a gente essa história doida que é a vida. Esse navegar impreciso cuja vela é soprada sobre mudanças e permanências, migrações e retornos.

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A série Artelaria de quebrada é publicada semanalmente no #siteberro. Clique nos links abaixo para acessar os textos anteriores. 

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i. Artelaria de quebrada: poetas e saraus de periferia

ii. “Eu não posso deixar que meu amigo que foi morto no dia do sarau morra de novo”


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