“Eu não posso deixar que meu amigo que foi morto no dia do sarau morra de novo”



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(Foto: arquivo pessoal)

O Padre Andrade é um bairro fortalezense onde existe um trilho de trem. Segundo Bárbara Araújo, jovem que completa 22 anos em novembro, morou na localidade por mais de uma década, esse mesmo trilho separa econômica e socialmente os moradores da localidade: “A gente morou numa rua que era um pouco mais elitizada quando eu era pequena, só que era uma questão de diferença, o lado esquerdo e o lado direito do trilho”. Estamos em mais um bairro da periferia fortalezense atravessado por histórias que permeiam a dor da perda, a disparidade social e a permanência no fazer artístico.

É um bairro que fica na zona oeste da capital cearense e, segundo o olhar da poeta, possui uma intensa desigualdade socioeconômica: “Eu via que minha mãe fazia um esforço gigante pra me dar um monte de coisa meio desnecessária, por conta do luxo, né? Eu cresci no Padre Andrade, eu vi que eu tinha uma perspectiva maior do que a galera que andava comigo”. Ela teve acesso à literatura bem cedo.

A mãe dela foi trabalhadora doméstica por muitos anos e hoje trabalha com serviços gerais. O seu pai era professor do curso de letras de uma universidade em Fortaleza. O que o patriarca considerava como “verdadeira poesia”, para ela era algo distante de uma vivência nas ruas onde começou a ter suas primeiras socializações. “É difícil ensinar matemática para quem não tem feijão e arroz no prato para  comer”, diz Bárbara.    

Quando tinha onze anos, Bárbara passou a apresentar sintomas de depressão. Nessa época também que ela começou a fazer teatro com os amigos da escola em que estudava. Esse fato, somado com a questão dela ter se mudado para uma vila ainda criança, são motivos que ela considera pontuais para ter tomado gosto pelo fazer artístico. A partir dessa vivência, ela desvela que ainda criança gostava mesmo de brincar com os meninos da rua, transcendendo o espaço delimitado como sua casa:

Nessa vila era mais atraente o que estava fora, eu sempre gostei muito de pipa, de jogar pião, e isso acontecia mais com a galera da bandidagem, né, que é a galera do rolê, a galera da disputa mesmo no cerol. Era a perspectiva que era muito colocada a mim, entendeu? Tinha uma vila e eu cresci ali e tal, onde aconteceram as primeiras repressões femininas porque tinha muito menino na vila. Daí eu saí pra soltar pipa bem nova e onde conheci uma galera com outra perspectiva de realidade mesmo.

Na vivência com os outros adolescentes de suas áreas, ela também passou a ter acesso às “balinhas” de maconha que se transformavam em baseados que rodavam de mão em mão. Com o dinheiro que ela recebia da mãe para a merenda na escola, ela guardava uma parte para fazer as “intera”. Alguns amigos já estariam no curso de venda de drogas, o que na gíria popular a gente chama “avião”. 

A artista tinha um convite para ir a um sarau que Baticum organizaria na noite de uma sexta-feira. Durante a manhã, ela foi socializar com os amigos frequentadores das redondezas da escola, acontecimento que fazia parte do cotidiano da estudante. Bárbara não sabia que o baseado era um último elemento de partilha entre ela e o amigo.

Na mesma noite em que ela ia celebrar a poesia, Alexandre foi sequestrado e assassinado. Agora não era só a disparidade social que atravessava a vida e a percepção da garota, nesse momento foi a fragilidade da vida e o arrependimento de não ter convidado o rapaz para aquele sarau de poesia. Nesse momento também, na vida de Bárbara, o incômodo passou a gerar crises mais intensas de depressão.

Surreal é o nome artístico de Bárbara Araújo. Foi após esses acontecimentos, e de uma crise mais aguda de depressão, que a sua mãe decidiu se mudar para perto da avó materna, do lado oposto ao bairro onde ela cresceu. Além de querer melhorar o quadro mental da poeta, a sua mãe vislumbrou ajudar a irmã mais velha e a avó de Bárbara. Bárbara hoje mora com a mãe, na região metropolitana de Fortaleza, em Maracanaú.

Sobre a principal motivação que levou a mudança ela é objetiva: “A gente saiu de lá porque minha mãe queria que eu ficasse mais saudável”. À medida que sua mente adoeceu, o fazer artístico também foi reaparecendo como uma forma de remediar as aflições.

Surreal pensava poeticamente desde os doze anos, concebendo seus primeiros escritos que ela garante ser por influência dos jogos poéticos com o arte-educador e poeta, morador do Antônio Bezerra, Baticum:

Conheci o Baticum aos doze anos, no Garimpo de Talentos do Teatro Antonieta Noronha, e começamos a brincar de poesia. Fui entrando mais pro lado de rock, Baticum me mostrou a poesia. Eu fazia teatro desde pequena e a arte foi o que me tirou mesmo daquela perspectiva mais hostil pra minha saúde mental.

Bárbara, a Surreal, fez um olhar de esperança ao falar da sua relação com o bairro onde cresceu. Voltar ao Padra Andrade, para ela, carrega um significado para além da perda do seu amigo. A reparação para ela se faz na suas constantes idas ao bairro: “Eu acho que devo voltar sempre porque eu acho que devo resgatar alguém, eu não posso deixar que meu amigo que foi morto no dia do sarau morra de novo, morra de novo e morra de novo”. 

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A série Artelaria de quebrada é publicada semanalmente no #siteberro. Clique nos links abaixo para acessar os textos anteriores. 

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i. Artelaria de quebrada: poetas e saraus de periferia


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