Da tragédia à comédia: a busca pelo humor social



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(Ilustração: Levi Noli/Revista Berro)

Entre as características intrínsecas d´O Pasquim que contribuíram para seu sucesso em curto período, uma merece um destaque especial: o humor debochado, moleque, muitas vezes cortinado, subentendido. Ora, logo vem a pergunta, sendo O Pasquim um jornal de humor, nada mais lógico do que esperar dele o riso, não é? Claro, óbvio, porém nem sempre tivera sido assim. Nunca a tática da comédia e da galhofa funcionara tão bem, tão eficientemente quanto no semanário de Ipanema. Seus jornalistas, cartunistas e humoristas fizeram do humor e da ironia o ponto alto de sua produção

A Manha,O Malho, A Careta, Pif-Paf, e a própria Carapuça, ainda que jornais de humor como O Pasquim, nem de longe conseguiram imprimir um humor tão atual, contextualizado e pertinente para o período quanto o jornal ipanemense. As cabeças pensantes d´O Pasquim “podiam estar fazendo apenas mais um jornal humorístico, na linha de O Malho, A Manha, A Careta, Pif-Paf, mas não produziam apenas humor de pressão e sim de contestação, tinham que ser mais do que agressivos, tinham que ser muitas vezes ‘baixo nível’”, pontua Norma Pereira Rego, em Pasquim: gargalhantes pelejas

O Pasquim conseguiu, sobretudo por conta de seu humor diferenciado – que criticava os costumes burgueses e a moralidade hipócrita da classe média –, o que nenhum outro jornal humorístico conseguiu até hoje: rivalizar em popularidade e tiragem com jornalões da grande imprensa.

De acordo com José Luiz Braga, em O Pasquim e os anos 70: mais pra epa que pra oba, o humor d´O Pasquim, ao contrário do que tinha se experimentado até então, era fortemente vinculado ao social; tinha-se, dessa maneira, “o uso do humor como instrumento de reflexão e crítica”. Para Rego, “O Pasquim, em seus poderosos textos e desenhos de humor, punha o dedo na ferida”.

Bernardo Kucinski, em Jornalistas e revolucionários: nos tempos da imprensa alternativa, segue a mesma tendência argumentativa: “Os humoristas d´O Pasquim não praticavam o humor diversionista, ou como forma de reintegração do indivíduo no sistema. Era um humor fortemente centrado na denúncia da coerção  e da violação dos direitos humanos”.  Ainda segundo o autor, esse humor social pasquiniano agredia com ironia funda a ditadura e trazia um certo alívio ao campo oprimido.

(Foto: O Pasquim, n.74, novembro de 1970)

Corroborando com estas ideias de Kucinski, Braga pontua que em um momento de tragédia, de censura e opressão “em que a perplexidade e a ausência de objetivos muito claros impediam a defesa de uma política precisa, a sátira se apresenta como um objetivo em si, como um objetivo de agregação dos dominados e de identificação entre todos os insatisfeitos com o estado das coisas”.

Sendo assim, o humor social pasquiniano incomoda em demasia o regime, que não acostumado a enfrentar aquela forma de crítica (cartuns, desenhos, charges), vê-se em despreparo. A ditadura mostrava-se preparada para enfrentar a crítica política propriamente, aquela dos alternativos marcadamente políticos, mas não sabia como enfrentar aquele humor social, debochado e que atuava nas entrelinhas. “Aparece já aí uma coisa que será freqüente no Pasquim: não se pode falar, implicita-se. Censurar o implícito exige uma finura de olhar que falta aos censores”, ressalta Braga. . Algumas vezes, até brincavam com essa capacidade de produção de subentendidos. (Ver anexos 3 e 4) 

Em que pese ser um jornal marcado fortemente pelo humor, O Pasquim apresentava também matérias “sérias”. Ainda assim, o humor não ficava de fora destas, pois “é na conjunção entre as matérias sérias e as engraçadas que o jornal adquire sua característica geral de humor. Assim o sério no Pasquim é um elemento que participa diretamente da construção de um espaço humorístico”, analisa Braga. Dessa maneira, “o humor serve aos artigos sérios porque aguça a percepção em busca de subentendidos. Além disso, a descoberta das implicitações (sérias) dos artigos propõe um prazer lúdico próximo ao prazer próprio do riso”, continua o autor. 

Ainda de acordo com Braga, ao contrário do que à primeira vista pode parecer, os conceitos de seriedade e humor não são mutuamente exclusivos. Para ele, portanto, O Pasquim, ao conseguir mesclar com tamanha precisão esses dois conceitos, entrou definitivamente para a história do jornalismo brasileiro

O humor pasquiniano ainda foi um dos responsáveis pela sua longa vida, ainda que esse não fosse seu intento primordial. Assim como todos os jornais alternativos da época, o semanário ipanemense enfrentava sérias disputas internas. No entanto, pela função suavizadora do riso consegue, por muito tempo, aparar possíveis arestas nas contradições intestinas entre seus jornalistas. “O debate interno é tornado viável pelo riso que apazigua certas contradições”, ressalta Braga. 

Dessa forma, o humor foi, sem dúvida, um dos principais componentes responsáveis pela popularidade e principalmente pelo ódio que a ditadura nutria pelo O Pasquim. “O humor é extremamente transformador, o humor é uma linguagem subversiva por si só. Então, ele vai sempre descobrir uma maneira de pular aquele muro que construíram na frente dele. Então, não há maior alimento ou incentivo ao humor do que a censura”, afirma Miguel Paiva, no documentário da TV Câmara O Pasquim: A Subversão do Humor

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A série O jornalismo alternativo na ditadura militar é publicada sistematicamente no #siteberro.

revistaberro@revistaberro.com

Clique nos links abaixo para acessar os textos anteriores:

I. O contexto sócio-histórico do nascedouro da imprensa alternativa no Brasil

II. A revolução dos “bichos-grilos”: o nascimento da contracultura

III. O movimento dos direitos civis: as lutas feministas e negras

IV. Sexo, drogas e rock’n’roll: o movimento hippie 

V. Arte corajosa nos trópicos

VI. 1968: o ano da rebelião mundial estudantil

VII. O AI-5 e a resistência da imprensa alternativa

VIII. Os jornais alternativos na vanguarda

IX. A estratégia dos alternativos e o contra-ataque da censura

X. Os jornais combatentes: os casos de Opinião, Movimento e Versus

XI. O Pasquim como protagonista da resistência


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