O AI-5 e a resistência da imprensa alternativa



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(Ilustração: Levi Noli/ Revista Berro)

Em 1968, o Brasil estava no quarto ano de governo militar. O marechal Artur da Costa e Silva assumira a presidência no ano anterior, sucedendo o também marechal Humberto de Alencar Castello Branco. De acordo com Zuenir Ventura, em 1968: O que fizemos de nós, “suas qualidades humanas eram suficientes para fazer dele uma figura que não chegava a ser odiada, ainda que não fosse amada”. 

Com Costa e Silva no comando, tinha-se a esperança de que o país seria reconduzido à sua normalidade democrática. No entanto, o militar não governava sozinho, e entre seus ministros muitos não viam com bons olhos o retorno à democracia plena naquele momento. As disputas intestinas acirraram-se por maior influência no que diz respeito às medidas a serem adotadas pelo governo.

Para Ventura, “estava claro que o governo Costa e Silva caminhava imprensado entre duas correntes internas: uma, querendo o endurecimento, e a outra, tentando, Deus sabe como, a via de liberalização. O embate dessas forças, com o eventual predomínio de uma ou de outra, é o que explica a ciclotimia desses tempos, que oscilavam num movimento pendular que ia dos sobressaltados à distensão, do temor ao alívio”.  

Com um engajamento crescente dos estudantes e da sociedade civil nas manifestações populares, o governo perdia força e era cada vez mais criticado e pressionado. A opinião pública condenava e indignava-se com os abusos cometidos pela polícia durante as muitas passeatas realizadas por todo o Brasil naquele ano. A morte de Edson Luís, a Passeata dos 100 Mil, “a sexta-feira sangrenta”, a invasão da Universidade de Brasília (UnB) eram acontecimentos que iam minando, gradativamente, qualquer resquício de credibilidade e aceitação que o governo Costa e Silva ainda poderia ter. Por todo o segundo semestre de 1968, a pressão da sociedade sobre os militares foi ascendente. A “grande imprensa” ainda não havia cedido ao autoritarismo e à censura (naquele momento não tão severa) imposta pelo regime.

As correntes internas de dentro do Palácio das Laranjeiras, sede do governo federal à época, começaram então a se enfrentar com mais vigor, e é nesse momento que as alas radicais se fortalecem nessa queda-de-braço e iniciam o processo de adoção de medidas de exceção. O presidente Costa e Silva, apontado pela CIA em um de seus memorandos secretos como de “liderança fraca e vacilante”, como relata Ventura em seu livro, não era muitas vezes informado das ações a serem adotadas por seus ministros de Estado. Um editorial do Jornal do Brasil daquele ano dizia que “os auxiliares diretos do presidente da República se desvelam para que ele seja o último a saber das coisas”.

Àquela altura de 1968, no segundo semestre, a marcha da insensatez parecia irreversível. À medida que a intolerância tomava assento no governo, a única resposta possível parecia ser o radicalismo. Agora, o país caminhava ligeiro rumo ao endurecimento do regime, com as disputas internas do governo agora espalhando-se também para a sociedade. O CCC (Comando de Caça aos Comunistas) estendera sua ação por todo o território nacional. A esquerda, através de seus vários grupos armados, cometia atentados em prédios e quartéis do Exército. “Havia no ar um cheiro de pólvora que, apesar da crença da época, só ia fazer mal à esquerda, armada ou não”, diz Ventura. 

A intempérie nos ares brasileiros era clarividente. O deputado Márcio Moreira Alves, do Movimento Democrático Brasileiro (MDB), em sessão do Plenário, discursara de modo inflamado conclamando o povo a não comparecer às festividades militares do dia da Independência e pedia às mulheres que não se relacionassem com militares. Cientistas políticos consideram esse emblemático discurso de afronta à ditadura como o estopim para a implantação do AI-5

O ministro da Justiça, Luiz Antônio da Gama e Silva, afirmando que as Forças Armadas haviam sido desrespeitadas, exige punição ao parlamentar, e entra com um pedido de licença à Câmara dos Deputados para que o deputado fosse processado perante o Supremo Tribunal Federal (STF) nos termos da Constituição. Tinha início, a partir desse caso, uma ferrenha guerra entre o Executivo e o Legislativo, que culminaria mais tarde com a decretação do AI-5, “e para ganhá-la, o governo iria abrir mão de qualquer pudor e usar todos os seus poderes de persuasão e, sobretudo, de pressão”, sublinha Ventura. 

Em 12 de dezembro, em uma sessão quente e conturbada, por grande maioria dos votos, o Congresso decidiu pela negação de qualquer punição ao parlamentar. Ao rejeitar o pedido de licença proposto pelo governo ao deputado Márcio Moreira Alves, o Congresso mostrava na ocasião resistência moral e independência política, mas comprava um briga que, um dia depois, culminaria no Ato Institucional Nº 5Aquela derrota para Costa e Silva e principalmente para seus ministros que queriam o endurecimento do regime foi a gota d´água que faltava para transbordar aquele copo cheio de autoritarismo.

Numa sexta-feira, 13 de dezembro de 1968, o presidente decretava o “golpe dentro do golpe”, o obscurantista e castrador AI-5, que entregou o Brasil às forças mais retrógradas e opressoras de nossa histórica recente.  Dos presentes à reunião que instaurou o ato, apenas o vice-presidente, o civil Pedro Aleixo, votou contra a implantação do ato. Os outros vinte e dois participantes seguiram o voto do presidente.

Entre as deliberações do AI-5, “ia-se fechar o Congresso por tempo indeterminado, interrompiam-se as garantias constitucionais de vitaliciedade, inamovibilidade e estabilidade, podia-se cassar, demitir, transferir, reformar funcionários civis e militares à vontade e suspendia-se o habeas corpus, o que permitia manter qualquer preso acusado de delito político em regime de incomunicabilidade por dez dias”, elenca Ventura. 

Para a historiadora Maria Aparecido de Aquino, em Censura, Imprensa, Estado Autoritário (1968-1978): o exercício do cotidiano da dominação e da resistência : O Estado de São Paulo e Movimento, “o AI-5 foi marco divisório na história da censura neste país. A partir de 13 de dezembro de 1968, a censura à imprensa viveu períodos de maior ou menor intensidade e variou seu modo de atuação de acordo com o periódico”. Na verdade, o ato começou “a censurar antes de ser editado, a prender antes de ser anunciado publicamente. Na quinta-feira à noite, véspera da declaração do ato, os seus censores invadiam as redações dos jornais, rádios e televisão de vários estados”, ressalta Ventura. 

Na sexta-feira, 13 de dezembro de 1968, O Estado de S. Paulo e o Jornal da Tarde, de São Paulo; o Correio da Manhã, o Jornal do Brasil, Última Hora, e O País, do Rio, o Correio Braziliense, na capital federal; e O Diário, de Belo Horizonte, já sofriam com a censura implacável. As ações desencadeadas após a decretação do AI-5 não se resumiam apenas na repressão aos periódicos. “No dia 13, enquanto os censores assumiam praticamente a direção dos jornais, uma turma de incansáveis e onipresentes agentes se dedicava à operação de caça às bruxas – ao arrastão”, diz Ventura. 

As prisões – de maneira indiscriminada – ganhariam status de normalidade. Continua Ventura: “não é possível calcular o número exato de prisões – até porque o AI-5 não gostava de registros e controles desse tipo –, mas se estima que no período que se seguiu ao 13 de dezembro alguma centenas de intelectuais, estudantes, artistas, jornalistas, tenham sido recolhidos às celas do DOPS, da PM e aos vários quartéis do Exército, da Marinha e da Aeronáutica em todo o país”.  

O ano de 1968 terminava de uma forma trágica para a população brasileira As liberdades constitucionais haviam sido usurpadas. O AI-5 suplantava definitivamente a democracia e a esperança de um governo civil pautado pela Constituição, na medida em que fora implantado “não para proteger inocentes, mas para transformá-los em suspeitos ou culpados”, como bem analisa Zuenir Ventura.

A imprensa estava gravemente amordaçada. Com a decretação do Ato Institucional Nº 5, a imprensa empresarial, também chamada de “grande imprensa”, não demorou a adaptar-se ao novo contexto, desvinculando de seus quadros jornalistas combativos e críticos, malditos pelo regime. A última grande publicação nacional a render-se à censura foi a incipiente Veja, uma revista à época com pouco mais de um ano, em dezembro de 1969. Esse contexto de complacência da imprensa convencional aos desmandos militares foi mola propulsora para que os veículos alternativos explodissem avassaladoramente nos meios jornalísticos.  

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A série O jornalismo alternativo na ditadura militar é publicada sistematicamente no #siteberro.

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Clique nos links abaixo para acessar os textos anteriores:

I. O contexto sócio-histórico do nascedouro da imprensa alternativa no Brasil

II. A revolução dos “bichos-grilos”: o nascimento da contracultura

III. O movimento dos direitos civis: as lutas feministas e negras

IV. Sexo, drogas e rock’n’roll: o movimento hippie 

V. Arte corajosa nos trópicos

VI. 1968: o ano da rebelião mundial estudantil


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