O Pasquim como protagonista da resistência



0 Comentários



(Ilustração: Levi Noli/Revista Berro)

De início, é fundamental  dizer que os/as escritores/as satíricos e cartunistas desempenharam um papel central na resistência à ditadura brasileira. Segundo Bernardo Kucinski, em Jornalistas e revolucionários: nos tempos da imprensa alternativa, “nenhuma outra categoria se opôs de forma tão coesa. Esse humor funcionou como terapia coletiva, socializando uma das principais funções psicológicas do riso, a de dissipar tensões lentamente acumuladas. Por isso, ele floresceu nos momentos de anticlímax do regime militar: primeiro, logo após o golpe; depois, quando se esgotou o impacto do AI-5 e, finalmente, ao se iniciar a abertura política”.

O Pasquim foi, de longe, o maior fenômeno editorial da imprensa brasileira nos anos 1970. O jornal ipanemense alcançou, em pouco tempo, uma popularidade incrível, disseminando-se rapidamente entre os filhos da classe média de uma maneira jamais vista por um semanário humorístico.

José Luiz Braga, em O Pasquim e os anos 70: mais pra epa que pra oba afirma que “em consequência dos controles exercidos sobre a imprensa pelo regime militar, diversos setores de opinião antes distintos em seu modo de expressão perdem seus espaços de manifestação”.  O Pasquim – juntamente com a imprensa alternativa, da qual ele foi talvez o precursor – torna-se, portanto, um dos poucos espaços abertos a essa diversidade de opiniões críticas.

Continua o autor: “Não se pode dizer que o Pasquim tenha inventado a imprensa alternativa, que nos parece inscrita nessa conjuntura. Mas teve o mérito de ser a primeira iniciativa (um pouco por acaso) e nesse sentido serviu certamente de estímulo a outras experiências”.  Norma Pereira Rego, em Pasquim: gargalhantes pelejas  comunga da ideia de Braga e assevera que “O Pasquim, pelo sucesso alcançado, abriu mesmo o caminho para a imprensa alternativa de oposição neste país”.

Sendo assim, e contando com um pouco de sorte, O Pasquim converteu-se, em um curto período de tempo, em um sucesso estrondoso. O que era um projeto de mídia impressa transformou-se “quase numa repercussão de mídia eletrônica. O Pasquim ganhou uma repercussão que raramente se viu na mídia impressa. Seria uma coisa assim como se passasse às oito da noite na TV Globo. O dia que saía O Pasquim era realmente o assunto do país”, atesta Washington Olivetto, no documentário da TV Câmara, O Pasquim: A Subversão do Humor.

Dessa maneira, com toda essa repercussão, não tardaria para o semanário incomodar o regime militar. Por toda a sua importância e a sua presença impregnada dentro da classe média, o jornal de humor de Ipanema pode ser considerado, sim, o grande protagonista da resistência ao aparelho censor que vigorava naqueles anos no Brasil. A ditadura, por sua vez, não achava a menor graça do jornal satírico, e tentou por muitos meios destruí-lo. 

A sua luta contra a censura e as formas como isso se deu veremos adiante. Antes, é interessante compreendermos como nasceu o alternativo. 

As origens 

O Pasquim nasceria em junho de 1969. Contudo, seu embrião começaria a ser gerado aproximadamente um ano antes, em setembro de 1968, quando morreu precocemente Sérgio Porto, mais conhecido como Stanislaw Ponte Preta. No que a morte de Ponte Preta tem relação direta com as origens do semanário ipanemense? É que o constataremos a seguir. 

(Foto: 1ª edição d´O Pasquim, junho de 1969; “Aos amigos, tudo; aos inimigos, justiça”)

Antes disso, porém, faz-se igualmente relevante anotarmos que a geração humorística nacional nos anos de 1960, embora contasse com nomes de grande estofo intelectual e jornalístico, não conseguia emplacar uma revista ou semanário duradouro, pujante. De acordo com Braga, as tentativas anteriores, com O Malho, A Manha e A Careta tinham fracassado rapidamente. O único que alcançou relativo sucesso havia sido Pif-Paf, de Millôr Fernandes, de 1964. Entretanto, o humorístico de Millôr chegou somente aos oito números e logo seria inviabilizado pela incipiente ditadura que acabava de assumir o poder.

O humor, então, teria lugar apenas na imprensa convencional – e, detalhe, não podia ser de contestação. “À medida que o jornalismo ‘sério’ foi se encolhendo, depois da edição do Ato Institucional número 2, expandiu-se o humor na grande imprensa”, conta Kucinski. O humor na mídia convencional ficaria restrito apenas aos cadernos que Ziraldo e Fortuna tinham na grande imprensa: o suplemento ‘Cartum’, do Jornal dos Sports; e ‘Manequinho’, no Correio da Manhã, respectivamente. Era pouco. Muito pouco para a excelente safra de humoristas e cartunistas que aquela geração apresentava.

De acordo com Kucinski, embora o humor tenha expandido-se na grande imprensa após o AI-2, os humoristas tinham a necessidade de uma publicação própria, independente, só de humoristas, algo “porta-voz de todos os humoristas brasileiros”.  Contentar-se com suplementos secundários de humor em jornais da grande imprensa era algo muito limitado para aquela extraordinária geração.

É nesse contexto que aparece a figura de Stanislaw Ponte Preta. Após algum tempo sem um jornal de humor, Ponte Preta, àquele momento, em 1968, encabeçava um tablóide semanal de humor que tinha uma tiragem média de 20 mil exemplares. Carapuça mostrava-se, portanto, até certo ponto auspiciosa para aqueles tempos. Mas, com a morte repentina de seu criador e responsável, o tablóide fica órfão, em que pese que, de fato, era Alberto Eça, amigo de Ponte Preta, quem desenhava no tablóide.

Seria, portanto, mais um fracasso da tentativa de se implantar um semanal de humor com destaque no país. “Em 1969, estávamos mais ou menos ao Deus-dará. O sonho tinha acabado, não se tinha o que fazer ou para onde ir, formava-se o vazio histórico e existencial onde medravam a luta clandestina e o desbunde”, afirma Luiz Carlos Maciel, em Anos 60. É exatamente aí que as origens d´O Pasquim têm início.

Querendo dar continuidade à Carapuça, Murilo Reis, da Distribuidora Imprensa, que editava o tablóide, entra em contato com Tarso de Castro que, à época, fazia muito sucesso com sua coluna no Última Hora. Tarso procura, então, Jaguar e Sérgio Cabral para saber a opinião destes. Jaguar achava que o melhor a fazer era fechar Carapuça, que estava muito ligada à figura de Stanislaw Ponte Preta, e abrir um novo jornal. Sérgio Cabral endossa prontamente a ideia. Murilo Reis topa a empreitada. Jaguar convida ainda Claudius e Carlos Prósperi para fazer o projeto gráfico do novo jornal. O embrião d´O Pasquim começava a ser formado.

O próximo passo – aparentemente simples – era identificar o novo jornal. “A coisa quase desandou porque o nome do jornal não saía. Listas e listas de nomes eram descartadas”, pontua Jaguar, em O Pasquim – Antologia (vol. I): 1969-1971.  Muitas reuniões e muitos litros de uísque depois, foi então que Jaguar propôs ‘Pasquim’, já prevendo que os militares alcunhariam o novo jornal pejorativamente de pasquim – jornal difamador, injurioso. “Terão de inventar outro nome para nos xingar”, disse Jaguar, ao explicar o porquê do nome. Em princípio, a sugestão não despertou muita empatia dos demais, “mas como ninguém aguentava mais tanta reunião, acabou sendo aprovada”. 

 

De Ipanema contamina-se o Brasil

A 26 de junho de 1969, “O Pasquim chega às bancas com uma fórmula simples: humor, ironia, uma entrevista como carro-chefe, bastante ilustração, textos curtos, frases de vários sentidos”, diz o documentário O Pasquim: A Subversão do Humor. Seu primeiro conselho de redação é formado por Tarso de Castro (editor), Jaguar (editor de humor), Sérgio Cabral (editor de texto), Carlos Prósperi (editor gráfico) e Claudius (sem função específica). Apesar de não serem sócios fundadores, Millôr e Ziraldo colaboram desde a primeira edição.

O acordado com Murilo Reis, da Distribuidora Imprensa, era que a editora entrava com o local da redação, na Rua do Resende, 100, no centro do Rio, e receberia 50% dos lucros. Os outros 50% seriam rateados entre os cinco fundadores, que entrariam com o trabalho. “O negócio é estabelecido nos termos precários de uma iniciativa que se imagina de antemão destinada a uma curta e alegre experiência”, afirma Braga.

Nos números seguintes, logo juntaram-se à turma Henfil, Paulo Francis, Sérgio Augusto, Luiz Carlos Maciel, Fortuna, Martha Alencar, Olga Savary e Ivan Lessa, além de diversos colaboradores da estirpe de Caetano Veloso (exilado em Londres), Chico Buarque (idem em Roma), Ferreira Gullar, Moacyr Scliar, Cacá Diegues, Glauber Rocha, Vinícius de Moraes, Chico Anysio, Jô Soares, Rubem Fonseca etc. Como se percebe, o jornaleco ipanemense nascia com um prestígio e uma equipe de gente grande.

(Foto: O Pasquim tinha um número considerável de colaboradores/as renomados/as)

Entretanto, em seu início, O Pasquim é feito para ser sobretudo um jornal de bairro. “Nasce quase como uma farra de Ipanema. Mais uma”, diz o doc O Pasquim: A Subversão do Humor. “Os artistas de Ipanema formam o primeiro círculo em torno do núcleo de humoristas e jornalistas”, pontua Braga. “Imaginado por Jaguar como um jornal de bairro de Ipanema, O Pasquim logo revelou vocação à universalidade, extraindo daquele microcosmo uma visão crítica compartilhada por jovens e artistas do resto do país”, detalha Kucinski. E por que, então, um jornal feito para um bairro do Rio de Janeiro cairia nas graças de todo o Brasil? Eis a resposta de Ziraldo, no doc O Pasquim: A Subversão do Humor

“O Pasquim foi feito para Ipanema. Agora acontece que naquele momento, por esses fatalismos históricos, Ipanema pautava o Brasil. Ipanema significava o Olimpo, quer dizer, essa deve ser a grande existência; viver mesmo é viver em Ipanema. E aí O Pasquim vira o porta-voz desse modus vivendi. É muita coincidência histórica acontecendo quando O Pasquim se insere nela. Ele era como uma gota de sangue num algodão, quer dizer, logo o algodão fica todo vermelho. É aquela coisa da expansão de uma ideia que chega num canto fértil”.

Dessa maneira, os humoristas d´O Pasquim conseguiram em pouco tempo disseminar aquele modo de vida ipanemense para todo o Brasil.

 

O início avassalador

Àquela época, a expectativa de um jornal humorístico no Brasil é super reduzida. Dentro do contexto político-social repressivo daquele momento, “o que seus fundadores sabiam bem é que publicações consagradas ao humor não tinham vida longa neste país, principalmente as que não eram feitas com bases industriais”, diz Norma Rego. 

No primeiro número d´O Pasquim, o ponto alto da edição, de acordo com Jaguar, foi um artigo de Millôr Fernandes, no qual o mestre mostrava toda sua descrença com a expectativa de longevidade do semanário. Em um artigo intitulado “Independência, é? Vocês me matam de rir” (leia abaixo), o humorista-mor daquela geração sentenciava, ironicamente, O Pasquim à morte em curto espaço de tempo, concluindo seu texto dessa maneira: “Não estou desanimando vocês não, mas uma coisa eu digo: se esta revista for mesmo independente não dura três meses. Se durar três meses não é independente. Longa vida a esta revista!”.

(Foto: Artigo de Millôr Fernandes na 1ª edição d´O Pasquim, junho de 1969)

Contudo, “apesar de saber o que estava falando, Millôr errou na profecia. O Pasquim foi independente porque apesar de toda a pressão não abandonou a luta, embora falasse abertamente do seu medo e teve uma vida longa, quase sempre muito divertida”, salienta Norma Rego. Com O Pasquim, é bom que se diga, as coisas aconteceram incrivelmente diferentes, como veremos a seguir. “Com ele, o jornalismo, a publicidade, os costumes e o nível da hipocrisia nacional sofrem um abalo. O Brasil nunca mais será o mesmo”, sublinha o doc O Pasquim: A Subversão do Humor. 

No entanto, ainda que respaldado por ter em sua redação jornalistas e humoristas tarimbados, O Pasquim realmente nasceu com a expectativa de viver pouco, como era comum entre os jornais de humor na época. Jaguar ficou surpreso com a tiragem inicial de 14 mil exemplares para a primeira edição. “Ainda escaldado pela meteórica trajetória do Pif-Paf, achava que cinco mil era mais do que suficiente”, diz ele, em O Pasquim (vol. I) – Antologia: 1969-1971.

No entanto, a edição esgotou-se em dois dias. Rodaram mais 14 mil exemplares. Números assim para uma primeira edição eram por demais auspiciosos e, desde já, davam um sinal do sucesso que viria a alcançar o jornal ipanemense. As vendas estouraram nas bancas desde a primeira edição. As causas para tão estrondoso sucesso logo puderam ser percebidas até com uma certa facilidade.

O jornal se caracterizou por apresentar desde o seu primeiro número sua fórmula de sucesso, haja vista que “as primeiras edições d´O Pasquim já trazem os traços, seções e maneirismos que caracterizariam toda a sua existência como imprensa alternativa: a grande entrevista, provocativa, dialogada, as dicas de restaurantes, sugeridas por Jaguar e escritas por sua mulher Olga Savary, e que depois seriam imitadas por quase toda a imprensa brasileira ; o bairrismo , a página underground  de Luiz Carlos Maciel ; o personagem imaginário Pedro Ferreti, compartilhado por todos os redatores quando queriam criticar anonimamente; os artigos corrosivos de Paulo Francis; o ratinho Sig, criação de Jaguar; a enorme seção de cartas”, detalha Kucinski.

Sendo assim, com uma série de novidades textuais e de formato, além, logicamente, do humor refinado e de charges inesquecíveis, O Pasquim foi, edição após edição, crescendo exponencialmente. De acordo com Braga, com apenas quatro meses, o semanário de Ipanema já vendia 80 mil exemplares. Um mês depois, o alternativo atingia a incrível marca de 100 mil exemplares por semana, tornando-se “um dos jornais mais vendidos do país”, ressalta Kucinski.  

As vendas exponenciais no número de exemplares d´O Pasquim pareciam não ter fim; assustam e surpreendem até mesmo sua redação. A escalada é contínua: “117 mil no número 22; 140 mil no número seguinte, depois 160 mil e 180 mil. Estabiliza-se em torno de 200 mil aí pelo número 27”, sublinha Braga. Em janeiro de 1970, com apenas sete meses de existência, a escalada progressiva tem seu fim (ufa!): do número 32 em diante, O Pasquim estabilizou-se em incríveis 225 mil exemplares semanais. Era um sucesso editorial absoluto. “O vigor do fenômeno O Pasquim pode ser medido pelo crescimento lento do Village Voice (tablóide alternativo de Nova York – adendo nosso), que só começou a dar lucro sete anos depois de lançado. Em 1967, com 12 anos de circulação, Village Voice vendia apenas 75 mil exemplares”, compara Kucinski. 

A partir deste sucesso estrondoso, O Pasquim iria revolucionar o jornalismo brasileiro.

///

A série O jornalismo alternativo na ditadura militar é publicada sistematicamente no #siteberro.

revistaberro@revistaberro.com

Clique nos links abaixo para acessar os textos anteriores:

I. O contexto sócio-histórico do nascedouro da imprensa alternativa no Brasil

II. A revolução dos “bichos-grilos”: o nascimento da contracultura

III. O movimento dos direitos civis: as lutas feministas e negras

IV. Sexo, drogas e rock’n’roll: o movimento hippie 

V. Arte corajosa nos trópicos

VI. 1968: o ano da rebelião mundial estudantil

VII. O AI-5 e a resistência da imprensa alternativa

VIII. Os jornais alternativos na vanguarda

IX. A estratégia dos alternativos e o contra-ataque da censura

X. Os jornais combatentes: os casos de Opinião, Movimento e Versus


Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *