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Os braços deste rio caudaloso por onde escorre o sistema de relações sociais do crime, ainda que à primeira vista possam parecer caóticos e desordenados, funcionam de maneira organizada, compartilhada e com larga capacidade de sintonia estrutural. Se aparentemente as funções mais importantes desempenhadas pela polícia nas comunidades faveladas são liberar o “alvará de funcionamento” das bocadas em face de extorsões sistemáticas, e comercializar armas e drogas junto aos traficantes varejistas, não menos relevante é sua função de prender. Os sistemas prisional e policial dependem mutuamente, formam um circuito bidirecional de mão dupla, “toma lá, dá cá”.
De acordo com o filósofo Michel Foucault, em Vigiar e punir, esses sistemas se ligam por um dispositivo geminado, realizam conjuntamente em toda a seara das ilegalidades a distinção, a atomização e a produção de uma delinquência objetificada em um tipo social: “A violência policial fornece à prisão os infratores que esta transforma em delinquentes, alvo e auxiliares dos controles policiais que regularmente mandam alguns deles de volta à prisão”. Dessa forma, mesmo reiterando que os peixes miúdos são os alvos sacrificiais, os “patrões” do tráfico varejista nas favelas também têm sua hora de integrar as estatísticas de ingresso no sistema penitenciário. Para a ordem dominante, há uma funcionalidade econômico-política no encarceramento, como já nos ensinou o próprio Foucault.
É curioso pensar que, até o final do século XVII na Europa, a prisão era quase completamente ignorada no sistema de penas. Em algumas ordenações jurídicas à época, ela não era sequer mencionada entre as opções punitivas. Ainda no final do século XVIII, um decreto na França de 1790 mandava soltar “todas as pessoas detidas nos castelos, nas casas religiosas, cadeias, delegacias ou quaisquer outras prisões”.
Contudo, é entre o final do XVIII e o início do século seguinte que a técnica disciplinar confere ao sistema prisional o papel de vedete biopolítica para o controle individualizado dos corpos e para a gestão eficaz dos fluxos de ilegalismos que escapavam às garras dos aparelhos de poder. A reforma do sistema penal, pontua o autor de Vigiar e punir, deve ser interpretada como uma estratégia que pretende situar a punição dentro de uma regularidade que aumente a eficiência simbólica dos poderios junto com uma otimização econômica.
Acho relevante visitar detalhadamente o que Foucault falou sobre esse momento histórico: “A economia das ilegalidades se reestruturou com o desenvolvimento da sociedade capitalista. A ilegalidade dos bens foi separada da ilegalidade dos direitos. Divisão que corresponde a uma oposição de classes, pois, de um lado, a ilegalidade mais acessível às classes populares será a dos bens – transferência violenta das propriedades [que eram dos camponeses e passaram à burguesia industrial]; de outro, à burguesia, então, se reservará a ilegalidade dos direitos: a possibilidade de desviar seus próprios regulamentos e suas próprias leis; de fazer funcionar todo um imenso setor da circulação econômica por um jogo que se desenrola nas margens da legislação – margens previstas por seus silêncios, ou liberadas por uma tolerância de fato”.
Desta forma, o sistema jurídico é estruturado para fazer a divisão entre classes dentro do seu ordenamento, mas disfarça (e dissimula!) esse preconceito de classe na sua “liturgia” complexa, cheia de palavras difíceis e ortodoxas, afastadas da linguagem cotidiana, nas suas indumentárias arrogantes, como a toga e o paletó (que tentam dar um ar importante e de legitimidade aos operadores da lei). Continua Foucault: “E essa grande redistribuição das ilegalidades se traduzirá até por uma especialização dos circuitos judiciários; paras as ilegalidades de bens – para o roubo – os tribunais ordinários e os castigos; para as ilegalidades de direitos – fraudes, evasões fiscais, operações comerciais irregulares – jurisdições especiais com transações, acomodações, multas atenuadas, etc. À burguesia se reservou o campo fecundo da ilegalidade dos direitos. E, ao mesmo tempo em que essa separação se realiza, afirma-se a necessidade de uma vigilância constante que se faça essencialmente sobre essa ilegalidade de bens”.
A partir desse momento, surge processualmente uma tecnopolítica da punição e “‘humanidade’ é o nome respeitoso dado a essa economia e a seus cálculos minuciosos”, diz o filósofo. O seu duplo funcionamento, jurídico-econômico e técnico-disciplinar, deu-lhe uma áurea de “civilizada”, condizente com as ideias iluministas que ganhavam contorno nos séculos XVIII e XIX.
Dessa forma, a prisão tem uma função econômico-política que se assenta na produção social de uma delinquência objetificada em tipos criminais das camadas populares. Comecemos por descrever sua utilidade econômica: a delinquência estimula e assegura a produtividade dos mercados ilegais capitalistas, como as diversas modalidades de tráfico: de drogas, de armas, de pessoas etc. Os fluxos lucrativos dessas atividades estão todos integrando o sistema financeiro internacional: “a delinquência, ilegalidade dominada, é um agente para a ilegalidade dos grupos dominantes”, comenta Foucault. Por outro lado, a construção social de um homo criminalis dissemina o medo entre a população, e, como efeito, legitima e torna desejável o sistema de controle policial.
A figura do delinquente surge então a partir dos poderes e técnicas penitenciárias e sobre ele deve se produzir um saber psiquiátrico que o construa como monstro, perigoso, anômalo, uma espécie de aberração social. Essa construção pretende tornar o delinquente um criminoso antes mesmo dele cometer qualquer ato infracional. Nesse sentido, adverte Foucault, “se deveria falar de um conjunto cujos três termos (polícia-prisão-delinquência) se apoiam uns sobre os outros e formam um circuito que nunca é interrompido”.
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A série “Antropologia do crime no Ceará” é publicada semanalmente no #siteberro. Veja abaixo os textos anteriores.
i. A dimensão ética na pesquisa de campo
ii. Pesquisando o “mundo do crime” e inserindo-se no “campo”
iii. Grande Tancredo Neves: formação dos territórios
iv. As relações sociais das camadas populares
v. A feira como arte da oralidade popular
vii. Estabelecidos e outsiders: a favela dentro da favela
viii. “Trabalhadores” e “bandidos”: entre separações e aproximações
ix. Sistema de relações sociais do crime: uma rede de ações criminais hierárquicas
xi. “Não confio na polícia”: A relação de descrença entre a classe trabalhadora e os policiais
xii. A economia da corrupção que move a relação entre polícia e “bandidos”
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