Socialidade juvenil em Fortaleza dos anos 1990/2000: Dos bailes funks às quadrilhas do tráfico  



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(Ilustração: Lara Albuquerque)

Historicamente, nenhuma disputa foi tão comentada no Grande Tancredo Neves (GTN) e experimentada violentamente pelos moradores como “ecos da violência”, para usar uma expressão cunhada pelo sociólogo Geovani Jacó Freitas, do que a “guerra” entre as quadrilhas criminais do Tancredo Neves contra as do Tasso Jereissati, cujo ápice se deu na segunda metade da primeira década dos anos 2000 – principalmente no biênio 2006-2007. 

De acordo com Fabiano Freitas, em sua dissertação A territorialidade da criminalidade violenta no bairro Jardim das Oliveiras, esta “guerra” entre Tancredo e Tasso, em diferentes momentos, já alterou rotas de ônibus, suspendeu aulas nas escolas, e cancelou as tradicionais festas juninas na região de 2005 a 2008. Em 2009, os festejos puderam novamente ocorrer, mas com grande aparato policial. As casas na região eram vendidas por cinco mil reais, mas não surgiam compradores. 

A rivalidade histórica entre estes dois territórios já acontecia desde o final dos anos 1990, época em que os “bailes funk” em Fortaleza atraíam grupos de jovens das mais diferentes “quebradas” da cidade para, além de escutarem música, digladiarem-se. Nesta época, as disputas territoriais na capital cearense estavam atreladas ao funk e às gangues de pichação. No próprio Tancredo Neves, acontecia um baile funk no MIC Clube – onde atualmente está situada uma Igreja Universal. As gangues do Tancredo rivalizavam, principalmente, com as do Lagamar, Piloto, Areal (Conjunto ABC), Messejana e Vila Cazumba.

A união das “galeras” de um mesmo território para ir aos bailes era a regra comum, e assim os jovens reunidos em um só grupo formavam um “mulão”, termo muito recorrente à época.

O Tancredo, nesse momento, era composto por algumas “galeras”, porém as mais conhecidas eram as da Cobal, Pracinha e Avenida. Para ser líder (ou “cabeça”) de um “mulão” era imprescindível mostrar técnicas e habilidades na luta corporal, no “mano a mano”. Muitos “cabeças” se tornam bastante reconhecidos em toda a cidade pela demonstrada virilidade física nos confrontos nos bailes. Viraram personagens icônicos, alguns que morreram foram alçados à categoria de mito em seus territórios: “No tempo do fulano…”. 

Atualmente, o “mano a mano” cedeu lugar às armas de fogo e os bailes funk foram substituídos pelo “forró da favela”. Apesar da rivalidade que era vivenciada no funk, os homicídios eram esporádicos. As “tretas” eram resolvidas nos bailes, com confrontos interpessoais entre os “cabeças” ou entre outros integrantes dos “mulões”, que os líderes indicavam. O “cabeça” só “disputava” com outro do mesmo status.

Dos “mulões” dos bairros e das gangues de pichação que iam aos bailes funk dos anos 1980/1990 há uma transformação na socialidade dos jovens favelados a partir do final da década de 1990. Devido à repercussão negativa no discurso público, e após petições do Ministério Público, no primeiro semestre de 2001 os bailes funk foram definitivamente proibidos em Fortaleza, uma medida que afetou diretamente modos de lazer dos jovens das classes populares. 

Como acréscimo ao contexto, quando as armas e as drogas começam a ser incorporadas em grande quantidade às realidades das favelas em Fortaleza, nesse mesmo momento histórico, muitos dos “cabeças” das gangues aderiram às atividades varejistas do comércio de drogas, estimulados pelos lucros materiais e simbólicos que o tráfico oferecia. As armas configuraram-se em seu trunfo para controlar o território e se defender das gangues rivais. Vale mencionar que, em muitos territórios, a passagem de “cabeça” de gangue a “patrão” de quadrilha não se deu de forma estável e assentida por todos. Outros líderes de “galeras” do mesmo território também queriam a tão almejada alcunha de “patrão” do tráfico. Houve disputas pela posição de liderança. Os confrontos “mano a mano” rapidamente cederam espaço às balas. 

É, portanto, nos primeiros anos do século XXI, em Fortaleza, que as antigas gangues atreladas às “galeras” dos bailes funk e dos grupos de pichadores entram em decadência como símbolo de representação da juventude favelada para a ascensão das quadrilhas criminais, baseadas principalmente no comércio varejista de drogas. Assim, essas primeiras quadrilhas de “traficantes” conservaram e reatualizaram, com outros métodos e técnicas bem mais letais, as rixas históricas e as demarcações territoriais das gangues dos anos de 1980 e 1990.

Já sob essa nova configuração, em que as gangues cederam às quadrilhas, alguns eventos mudariam as relações entre os jovens do complexo GTN de maneira decisiva e implantaria uma “guerra” que durou cerca de dez anos, até a entrada capilarizada das chamadas “facções” no ano de 2015, que estabeleceram um armistício em todo o complexo de favelas, uma vez que todas as quadrilhas do GTN agora estão vinculadas a uma única facção, o Comando Vermelho (CV). 

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A série Antropologia do crime no Ceará é publicada semanalmente no #siteberro. Veja abaixo os textos anteriores. 

artur@revistaberro.com / revistaberro@revistaberro.com

i. A dimensão ética na pesquisa de campo

ii. Pesquisando o “mundo do crime” e inserindo-se no “campo”

iii. Grande Tancredo Neves: formação dos territórios

iv. As relações sociais das camadas populares

v. A feira como arte da oralidade popular

vi. O favelês cearense

vii. Estabelecidos e outsiders: a favela dentro da favela

viii“Trabalhadores” e “bandidos”: entre separações e aproximações

ix. Sistema de relações sociais do crime: uma rede de ações criminais hierárquicas

x. “O dinheiro fala mais alto, [com ele] se torna mais fácil de fazer justiça”: A violência do aparelho judiciário

xi. “Não confio na polícia”: A relação de descrença entre a classe trabalhadora e os policiais

xii. A economia da corrupção que move a relação entre polícia e “bandidos”

xiii. “O crime nunca vai acabar por causa da polícia”: a participação policial decisiva nas relações criminais

xiv. Tecnopolítica da punição: A função econômica do encarceramento

xv. Estado punitivo-penal e a produção social da delinquência

xvi“Cadeia é uma máquina de fazer bandido”

xvii. A “escolha” é uma escolha? Compreendendo o ingresso nas relações criminais

xviii. Consumo, dinheiro e sexo: a tríade hedonista da carreira criminal

xix. Traumas, complexos e a luta por reconhecimento (parte I)

xx. Traumas, complexos e a luta por reconhecimento (parte II)

xxi. “Fura até o colete dos homi”: As armas como símbolo dominante

xxii. Os códigos morais da criminalidade favelada (parte I)

xxiii. Os códigos morais da criminalidade favelada (parte II) 

xxiv. “Mãezinha”: uma categoria local que põe em suspensão o ethos violento

xxv. “Pirangueiro”, “cabueta”, “boca de prata”, “corre de ganso”, “atrasa lado”: compreendendo algumas categorias negativadas da moralidade criminal 

xxvi. “O crack veio pra acabar com tudo”: o noia como um “zé ninguém”


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