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Por ser um alternativo e, principalmente, pelo seu caráter debochador, desde o início, “O Pasquim foi entendido pela hierarquia militar como instrumento de confronto”, relata Bernardo Kucinski, em Jornalistas e revolucionários: nos tempos da imprensa alternativa, em que pese, no seu começo, como vimos, o confronto direto com a ditadura não era a abordagem central do jornal. Muito pelo contrário. Seus jornalistas e colaboradores o queriam como espaço para analisar de maneira crítica e desmistificadora qualquer assunto, “mas não imaginavam que enquanto iam falando naquele jeitão espaçoso e feliz que lhes era peculiar, os censores do governo federal os observavam com a determinação crescente de acabar com a festa”, ressalta Norma Pereira Rego, em Pasquim: gargalhantes pelejas.
Entretanto, nos seus primeiros meses, os últimos de 1969, de acordo com José Luiz Braga, em O Pasquim e os anos 70: mais pra epa que pra oba, é interessante salientar uma certa ingenuidade da patota no trato com os militares. Escrevem artigos e publicam charges vistas como subversivas pelo regime, introduzem e popularizam o palavrão na linguagem jornalística. São mudanças que incomodavam bastante a ditadura, mas aos jornalistas d´O Pasquim, inicialmente, aquilo não tinha o mínimo problema; na cabeça deles, estavam apenas fazendo uso da sua liberdade de opinião e não teriam porque temer represálias por parte da hierarquia militar. Ledo engano.
“Ao amalgamar coisas da política e moralismos de classe média como objeto de seu ataque, o Pasquim desvenda um dos pontos de sustentação do regime militar. Não terá sido por outra razão que o jornal foi tão perseguido como ‘atentatório à moral’”, define Braga. Com apenas seis meses do seu lançamento, a Distribuidora Imprensa, que distribuía o alternativo em todo o país, com medo de represálias do governo, desfaz subitamente a sociedade. Nesse instante, O Pasquim poderia ter acabado, com apenas um semestre de existência.
Mas seus fundadores foram atrás de uma saída e conseguiram com que a Abril, maior distribuidora do Brasil, topasse fazer a distribuição do jornal. A Abril aceitou a empreitada porque se solidarizou com os jornalistas d´O Pasquim? Certamente, não! Ora, a empresa dos Civita fez isso pensando, obviamente, no lucro que poderia obter distribuindo um jornal que vendia por semana mais de 150 mil exemplares. O Pasquim, ainda que alternativo, era um filão de ouro para qualquer distribuidora na época.
Todavia, logo depois desse momento, quando a vendagem de O Pasquim atingiu a marca incrível de 200 mil exemplares semanais, “tornando-o hegemônico junto aos filhos da classe média, consolidou-se no aparelho repressivo a tese de que o jornal era um instrumento de grupos subversivos com o objetivo de destruir a família brasileira”, analisa Kucinski. Nesse mesmo período, no final de 1969 e primeiros meses de 1970, de acordo com o autor, surgem as primeiras reações da grande imprensa contra o semanário, incomodada com o sucesso alcançado pelo alternativo intruso, principalmente por ser um novo competidor no mercado publicitário, sobretudo no de jornais e revistas.
A grande imprensa, apoiada pelos setores civis conservadores e, às sombras, pelos militares, entra em choque com O Pasquim. “Em novembro de 1969, em cima da entrevista de Leila Diniz, O Globo publicou editorial de primeira página acusando a existência de uma ‘esquerda pornográfica’, nociva, devido à falta de controle social”, pontua Kucinski. O cerco começava a se fechar e a pressão contra o jornal aumentava. Para piorar as coisas, o alternativo ipanemense publica um editorial intitulado “O Sexo do Pasquim”, sobre o conceito de liberdade, que causa revolta no comando militar. Em março de 1970, “cinco números depois uma bomba poderosa foi encontrada no prédio do jornal. Se tivesse explodido tiraria Botafogo do mapa”, detalha Rego.
Após o episódio da bomba que felizmente não explodiu os jornalistas d´O Pasquim então acordaram para saber com quem estavam lidando e que armas o inimigo usava. Algumas semanas antes, no final de janeiro de 1970, o governo baixara o decreto lei 1.0772, “baixado especialmente para reprimir O Pasquim”, diz Kucinski. Dessa maneira, era “introduzida a censura prévia, obrigando a redação a submeter todas as matérias, antecipadamente, à Polícia Federal. Mas os humoristas jogavam com os censores o sutil jogo do humor, deformando a própria censura, transformando-a numa caricatura da censura real”, segue o autor.
É agora que O Pasquim iria fazer uso de uma arma, sorrateira e quase sempre infalível, que o acompanharia em quase toda a sua história de pelejas contra o regime: a produção de subentendidos, a implicitação humorística. Segundo Braga, as técnicas de implicitação foram tão comumente usadas em consequência da censura prévia que chegaram a um nível de refinamento muito grande. “Não podendo atacar diretamente o regime, trata de ridicularizar uma série de outros fatos sociais coerentes com a lógica do sistema: moral e costumes da classe média, problemas urbanos…”, salienta o autor.
“Como ‘um moleque que conseguia correr na contramão, como trombadinha ou pivete’, O Pasquim teve mais possibilidades de driblar a censura do que jornais políticos, presos à necessidade do convencimento lógico”, bem pondera Kucinski. Brincando com o jogo do subentendido, a relação com o leitor se consolidou de vez. “A gente sabia que podia ser hermético, o censor não ia perceber isso, mas ali adiante, certamente o leitor ia saber o que a gente estava dizendo. Era um código secreto que a gente utilizava com o leitor”, relata Claudius, no documentário da TV Câmara, O Pasquim: A Subversão do Humor.
Outro fator que ajudou O Pasquim na guerra com a ditadura foi a malandragem típica de seus jornalistas. A primeira censora, dona Marina, “acabou ficando amiga da patota do jornal e, como era chegada a uma birita, entre um gole e outro, aprovava muita coisa que não devia”, brinca Sérgio Augusto, em O Pasquim – Antologia (vol. I): 1969-1971 . Seria demitida quando deixou passar um quadro de Pedro Américo, em que D. Pedro, às margens do Ipiranga, em vez do famoso “Independência ou Morte”, brada “Eu quero mocotó”.
Em que pese a técnica da implicitação bastante utilizada, bem como as demais táticas para driblar o aparelho censório vigente, “os prejuízos materiais causados pela censura eram maiores do que se imagina porque nem sempre ela vinha diretamente do governo. Havia muita gente ligada ao jornal que, ao perceber o quanto ele desagradava ao poder, rompia relações”, aponta Rego. Vide o exemplo da Distribuidora Imprensa e de muitos outros anunciantes que fugiram do jornal temendo represálias.
De acordo com Martha Alencar, uma das poucas mulheres que trabalhou na redação d´O Pasquim, no documentário O Pasquim: A Subversão do Humor, “a censura era devastadora porque ela não só corroía a criatividade e a liberdade de expressão como ela corroía economicamente, sem falar no tempo, o atraso na produção do jornal, o atraso para chegar nas bancas, as conseqüências disso em termos de distribuição”.
Ainda assim, O Pasquim, mesmo enfrentando forte pressão dos militares e sob implacável censura prévia, continuava sua saga audaz e debochada, achincalhando a classe média e criticando tudo o que representava o status quo.
A ditadura resolveu, à força, mostrar quem mandava. No dia 1º de novembro, quando estava sendo rodado o número 72 d´O Pasquim, aquele do quadro em que D. Pedro grita “Eu quero mocotó”, quase toda a redação é presa por policiais do DOI-CODI. “O fato de caber ao DOI-CODI, um comando especial do exército para o combate à luta armada, e não à polícia política, o controle da operação, revela a importância atribuída a O Pasquim pelo aparelho de repressão”, ressalta Kucinski. A prisão de quase todos da patota se estenderia por aproximadamente dois meses.
Mas O Pasquim não podia parar. Seria um sinal de rendição. “Millôr organiza o número 73 com reproduções de desenho e material de arquivo. Do número 74 ao 80, Martha Alencar, Millôr e Henfil continuam, apesar de tudo, a elaboração do jornal, ajudados na criação gráfica por Miguel Paiva”, diz Braga. O Pasquim, irônico como moleque travesso, já que não podia noticiar a prisão, refere-se a ela como “surto de gripe que numa verdadeira reação em cadeia assolou a equipe do jornal”. Tentavam, mais uma vez usando de sua técnica de implicitação infalível, avisar ao leitor o que estava acontecendo. Uma das frases de capa naquelas semanas foi “Pasquim – um jornal com algo a menos”.
Miguel Paiva detalha, no documentário O Pasquim: A Subversão do Humor: “E aí nós tivemos que fazer O Pasquim um pouco tentando suprir a ausência, ou seja, fingindo que ninguém tinha se ausentado. Eu desenhei no estilo de todo mundo, desenhei no estilo do Jaguar, desenhei no estilo do Ziraldo, enganamos por alguma semanas. E depois começou a acontecer um fenômeno de solidariedade em relação a O Pasquim, e aí nós fizemos grandes números no jornal com a colaboração de praticamente todo mundo que importava nesse país”.
Nesses dois meses em que mais da metade da patota esteve presa, acontece, então, um “rush de solidariedade” de artistas, jornalistas e intelectuais em favor do semanário de Ipanema. Todos queriam ajudar. Uma de suas capas daquele período evidenciava esse espontâneo mutirão de solidariedade.
“Aí foi telefone tocando sem parar e muito jornalista e escritor se oferecendo para escrever em lugar dos amigos presos, como Luiz Fernando Veríssimo, Rubem Braga e José Carlos Oliveira”, lembra Rego. Chico Buarque e Glauber Rocha estavam entre os mais exaltados. “Naquele natal de 1970, O Pasquim virou símbolo de resistência, instrumento de intervenção de uma sociedade civil não totalmente adormecida. Escrever n´O Pasquim passou a ser um privilégio”, afirma Kucinski.
Após analisar todo esse episódio da prisão, uma questão fica em evidência. Por que os militares, se queriam acabar com O Pasquim, não fecharam logo o jornal, em vez de prendê-los? Ora, “o regime teimava em se dizer ‘democrático’, mesmo sabendo que só enganava os seus partidários delirantes; em segundo lugar, sabia que iria haver repercussão internacional, porque os editores do Pasquim já mantinham ligações com o Washington Post e com o Nouvel Observateur”, sublinha Norma Pereira Rego.
Após a prisão, chega ao fim essa fase áurea do jornal. “Depois da prisão, O Pasquim, que era uma escola risonha e franca, ficou muito chato porque os anunciantes fugiram e, quando não, eram pressionados para não botar anúncio no jornal. Além disso, uma censura como nunca antes tinha acontecido”, diz Sérgio Cabral, no documentário O Pasquim: A Subversão do Humor. “A inocência se perdera, a euforia do sucesso econômico também. Até aqui, mesmo com as pressões, as ameaças e a censura prévia, o ar de festa existia”, relembra Braga.
A primeira fase do anárquico jornal realmente chegava ao fim. A dívida era entre um e dois milhões de cruzeiros, as vendagens nas bancas caíram de 160 mil para 60 mil exemplares, a publicidade caiu a zero. Para completar, membros da patota, temendo novas prisões ou represálias ainda mais graves foram saindo, um por um, do alternativo: primeiro, Martha Alencar, depois Fortuna, Luiz Carlos Maciel e Sérgio Cabral. Com isso, “o ímpeto criador foi morrendo silenciosamente”, como diz Rego. O Pasquim não acabaria, diga-se, continuaria sua caminhada longeva até 11 de novembro de 1991, na edição de número 1072, mas não mais voltaria a ser aquele moleque audaz e travesso, debochador e brincalhão que encantou milhares de brasileiros nos seus primeiros 18 meses.
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A série O jornalismo alternativo na ditadura militar é publicada sistematicamente no #siteberro.
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Clique nos links abaixo para acessar os textos anteriores:
I. O contexto sócio-histórico do nascedouro da imprensa alternativa no Brasil
II. A revolução dos “bichos-grilos”: o nascimento da contracultura
III. O movimento dos direitos civis: as lutas feministas e negras
IV. Sexo, drogas e rock’n’roll: o movimento hippie
VI. 1968: o ano da rebelião mundial estudantil
VII. O AI-5 e a resistência da imprensa alternativa
VIII. Os jornais alternativos na vanguarda
IX. A estratégia dos alternativos e o contra-ataque da censura
X. Os jornais combatentes: os casos de Opinião, Movimento e Versus
XI. O Pasquim como protagonista da resistência
XII. Da tragédia à comédia: a busca pelo humor social
XIII. A crítica dos costumes e a contracultura pasquiniana
XIV. A revolução jornalística “pasquineira”
XV. A redação entre amizades: a construção coletiva
XVI. Os inesquecíveis “pasquineiros”
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