A revolução jornalística “pasquineira”



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(Ilustração: Levi Noli/Revista Berro)

Como vimos anteriormente, a revolução proporcionada pelo O Pasquim em termos de linguagem se deve principalmente a um estilo de produção organizado em patota. “Muita coisa feita lá pela primeira vez, hoje se usa como se tivesse existido sempre no nosso jornalismo”, pontua  José Luiz Braga, em O Pasquim e os anos 70: mais pra epa que pra oba. Quase todos os jornais brasileiros importantes foram influenciados pelo idioma d´O Pasquim, direta ou indiretamente. No entanto, começaremos falando da inovação visual pasquiniana, um projeto gráfico inovador que caracterizou o semanário ipanemense desde seu primeiro número.

O Pasquim, “a página é construída de um modo muito visual, tomada como um objeto composto, equilibradamente, de texto, ilustrações, eventuais fotografias. É trabalhada graficamente de modo a ser mais que um suporte para leitura linear”, diz Braga. Cada página é trabalhada como um objeto inteiro; dessa forma, atrai para si um olhar diferenciado do leitor. “Em suma, no Pasquim, o projeto gráfico, a paginação, a titulação, a tipografia, a ilustração se organizam para dar a cada página uma unidade gráfica de objeto visual”, continua o autor. 

Para Braga, a revolução nesse aspecto dá-se justamente no fato de que o traço n´O Pasquim tem a mesma – ou, em alguns casos, mais – importância que o texto, que a escrita, tanto no aspecto quantitativo, no espaço ocupado da superfície da página, quanto no qualitativo, enquanto veiculador das ideias do jornal. A charge, que nos grandes jornais tem uma função secundária, no semanário carioca, “longe de ser isolada ou marginal, torna-se preponderante e central”, prossegue Braga. 

Em qualquer de suas formas (cartum, charge, quadrinhos), o desenho aparece sempre com relevância no jornal, e espalhado por todo o seu conteúdo, não confinado a determinadas páginas ou seções. Não obstante essa função central do desenho, a fotografia no alternativo de Ipanema é relativamente pobre. Como a reportagem não é um dos pontos fortes do semanário, “e é sobretudo como elemento de reportagem que a fotografia pode se desenvolver na imprensa as fotografias não encontram, no projeto inicial do Pasquim, um papel definido”, alerta Braga. 

Noutro aspecto que os jornalistas d´O Pasquim foram inovadores é no que diz respeito ao relacionamento com o leitor. A seção de “Cartas”, desde os primeiros números, é a principal responsável pela interação inédita e bastante íntima entre jornalistas e leitores. “Cria-se, entre O Pasquim e seus leitores, aquela comunicação direta, do tipo horizontal, tantas vezes proposta por projetos alternativos e raramente alcançada”, sublinha Bernardo Kucinski em Jornalistas e revolucionários: nos tempos da imprensa alternativa. Para este autor,  “a presença do leitor em O Pasquim é avassaladora”.

Na seção de “Cartas”, destacou-se Ivan Lessa e seus personagens, como o inesquecível Edélsio Tavares. As cartas, respondidas provocativamente por Ivan Lessa, “num estilo sádico, que agride e até insulta, numa relação adulta, que não tenta paternalizar ou instrumentalizar o leitor, ou convencê-lo de alguma coisa”, ressalta Kucinski, chegavam a despertar, à primeira vista, a ira e a indignação dos/as leitores/as, mas logo estes sentimentos desapareciam pela relação madura e intensa que havia entre as partes.  “Na crítica, eu acho que o que havia era uma cumplicidade que nós tínhamos com os leitores absolutamente extraordinária”, diz Claudius, um dos integrantes, no documentário da TV Câmara, O Pasquim: A Subversão do Humor

Em síntese, o texto do/a leitor/a d´O Pasquim “é participante não só porque utiliza o jornal como veículo para suas opiniões, mas sobretudo porque ele tenta se integrar no jornal. O leitor usa o Pasquim como tema, adota um estilo pasquiniano”, define Braga. 

Agora, em que pese o projeto gráfico e visual inovador e a inédita horizontalidade na relação com o público-leitor, foi no campo da linguagem que os jornalistas do semanário carioca foram, digamos, revolucionários. “Logo no seu primeiro número, de 26 de junho de 1969, O Pasquim revolucionou a linguagem do jornalismo brasileiro, instituindo uma oralidade que ia além da mera transferência da linguagem coloquial para a escrita do jornal”, defende Kucinski. Essa linguagem seria mais tarde apreendida também pela publicidade. “Certamente, O Pasquim, assim como ele tirou o empolado da linguagem do jornalismo brasileiro, ele sem dúvida nenhuma estabeleceu o coloquial para muitas outras áreas”, diz o publicitário Washington Olivetto, no documentário da TV Câmara O Pasquim: A Subversão do Humor

A revolução não está simplesmente em uma simplificação da linguagem através do coloquial ou do popular; “foi todo um novo modo de expressão, dotando os textos de cada escritor dos atributos de expressividade da fala”, afirma Kucinski. “Desde o número 1, por intenção ou por preguiça, acharam que o legal era deixar a escrita ‘do jeito que se fala’”, sublinha Braga. 

A procura pela simplificação na escrita levou os jornalistas do semanário carioca a uma busca incessante por uma linguagem o mais próximo possível da fala. “A oralidade do Pasquim corresponde à procura, através de diferentes estilos pessoais, de uma expressividade, de uma eficácia informativa que geralmente adotamos na língua falada. Não são, pois, as estruturas da fala que são reproduzidas no Pasquim, mas o seu modo de expressividade”, pontua Braga.

O lugar-comum, o clichê, o chavão eram absurdamente rejeitados pelos seus jornalistas. “A ação renovadora do Pasquim sobre a linguagem jornalística se manifesta em dois níveis: diretamente na escrita dos seus colaboradores; e tematicamente, através de artigos críticos e de um trabalho humorístico de investida contra os chavões”, continua o autor. 

De acordo com Braga, a preocupação com a oralidade, em escrever do jeito que se fala, levou a um trabalho direto e incessante sobre a palavra. O jornal criou expressões como ‘negó seguinte’, e propunha terminações em “im”, substituindo o “inho”, como “fradim”, “baixim”. Nessa seara, Ziraldo foi mestre. Do criador do “Menino Maluquinho”, surgiram expressões como “duca”, “sifu”, “pô”, facilmente entendíveis, mas que escritas assim poderiam ser publicadas.  Desse modo, “O Pasquim introduziu o palavrão na linguagem jornalística, e na própria linguagem falada, através de corruptelas e variações dos termos originais, rapidamente incorporados no quotidiano do público”, diz Kucinski. 

“Mas no Pasquim a grossura (palavrão, piadas de caserna) não era deselegante, não desagradava porque vinha entrelaçada à cultura e à inteligência de seus autores, vinha principalmente dentro de um contexto de criatividade e altos ideais”, defende Norma Pereira Rego, em Pasquim: gargalhantes pelejas, além do que ela vinha em doses muito menores do que a sutileza, arduamente buscada para que fosse possível transmitir mensagens nas entrelinhas driblando a censura.

Dentro do contexto dessa linguagem inovadora, revolucionária, O Pasquim tinha conseguido “assim o estilo de entrevista que marcou época e renovou o trabalho jornalístico no país”, define Braga. A entrevista com Leila Diniz, no número 22, repleta de palavrões, alguns explícitos, outros tão óbvios que, ainda que substituídos por um asterisco, eram facilmente decifráveis, totalmente livre de autocensura, funcionou como uma bofetada na hipocrisia e duplicidade de valores das elites”, pontua Kucinski. 

Depois dessa entrevista, “além de ler nas entrelinhas, o leitor vai passar a entender nos asteriscos”, brinca Braga. No mais, “a transcrição das gravações mantém as fórmulas de língua falada, o texto inclui as hesitações e descontinuidades próprias da conversa solta bem como as escolhas de expressão“, continua Braga.

Contudo, é importante que se esclareça que essa fórmula de reproduzir entrevistas sem adequar a fala dos entrevistados à linguagem jornalística, surgiu por acaso, despretensiosamente. Quem conta esta história é Jaguar:

Transcrevi a entrevista (do Ibrahim Sued, no primeiro número) utilizando o gravador; Tarso e Cabral sumiram, só apareceram na hora de o jornal rodar. Deram uma lida e disseram: ‘Tem que fazer o copidesque’.  Eram jornalistas tarimbados, eu só sabia desenhar cartuns. ‘Copidesque? Que diabo é isso?’ Pacientemente, explicaram que era adequar o texto à linguagem jornalística. Mas felizmente não deu tempo, o jornal rodou com a entrevista do jeito que estava. E foi assim que, por acaso, o Pasquim tirou o paletó e a gravata do jornalismo brasileiro, brinca Jaguar, em em  O Pasquim – Antologia (vol. I): 1969-1971.

No entanto, não somente por não serem copidescadas que as entrevistas d´O Pasquim ganharam tamanha notoriedade e tornaram-se um dos principais motivos de venda e prestígio do jornal ipanemense – um dos seus pontos fortes.  De antemão, as entrevistas do semanário diferenciam-se das convencionais por não apresentar rigidez, sisudez no relacionamento entrevistador-entrevistado. Outra: não eram feitas apenas por um entrevistador, mas por toda a turma, na maioria das vezes em um ambiente convidativo ao bate-papo e sempre regadas com muito uísque. Dessa maneira, logo de cara, a entrevista d´O Pasquim abandona os papéis rígidos de uma entrevista convencional. 

Dessa forma, “a conversação funciona um pouco como uma terapia de grupo, em que as pessoas são levadas pelo ambiente a participar, a se expor, os entrevistados se deixam levar quase sempre a uma formulação com forte nível de oralidade”, diz Braga.  “No calor de conversas pouco formais, o entrevistado falava sempre mais do que se esperava, de forma que a maioria dessas entrevistas, principalmente as políticas, tornaram-se belos depoimentos sobre a sociedade brasileira, sua imprensa e sua história”, define Rego. 

Em suma, “a entrevista pasquiniana encontra sua originalidade exatamente por ser organizada em termos de patota”, defende Braga. No espaço da entrevista, portanto, o entrevistado não é “o outro”, aquele que deve ser lançado contra a parede, sabatinado, que se defronta com o jornal: naquele momento, o entrevistado faz parte da turma e quase sem querer se submete a suas regras e vontades. 

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A série O jornalismo alternativo na ditadura militar é publicada sistematicamente no #siteberro.

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Clique nos links abaixo para acessar os textos anteriores:

I. O contexto sócio-histórico do nascedouro da imprensa alternativa no Brasil

II. A revolução dos “bichos-grilos”: o nascimento da contracultura

III. O movimento dos direitos civis: as lutas feministas e negras

IV. Sexo, drogas e rock’n’roll: o movimento hippie 

V. Arte corajosa nos trópicos

VI. 1968: o ano da rebelião mundial estudantil

VII. O AI-5 e a resistência da imprensa alternativa

VIII. Os jornais alternativos na vanguarda

IX. A estratégia dos alternativos e o contra-ataque da censura

X. Os jornais combatentes: os casos de Opinião, Movimento e Versus

XI. O Pasquim como protagonista da resistência

XII. Da tragédia à comédia: a busca pelo humor social

XIII. A crítica dos costumes e a contracultura pasquiniana


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