A redação entre amizades: a construção coletiva



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(Ilustração: Levo Noli/ Revista Berro)

Temos abordado nos últimos artigos todas as inovações estéticas, gráficas e de linguagem que O Pasquim trouxe. É importante ressaltar que o vanguardismo puxado pelo O Pasquim no jornalismo e na publicidade somente foi possível pelos seus sistemas de organização e produção anárquicos, baseados no seu princípio organizador: a patota. “A ‘patota’ era uma forma específica e original de organização de pauta, não burocrática e extremamente criativa. Reuniam-se em bares e relacionavam-se como indivíduos iguais, discutindo cada edição de forma espontânea”, detalha Bernardo Kucinski, em Jornalistas e revolucionários: nos tempos da imprensa alternativa. Nessa toada segue José Luiz Braga, autor de  O Pasquim e os anos 70: mais pra epa que pra oba: “O aspecto mais notável de uma patota é sua configuração sem contornos rígidos”. 

Ao abdicar do formato convencional de pauta para funcionar em “patota”, ou seja, como um grupo de amigos, os jornalistas d´O Pasquim tiveram uma liberdade para criar e inovar nunca antes imaginada por eles num veículo de imprensa. A patota, sinônimo de liberdade criativa, em lugar da redação burocrática tradicional, foi a grande estimuladora de todas as inovações que vieram com O Pasquim, haja vista que “enquanto a pauta é um sistema de organização centrado nos valores frios da eficiência, a patota é uma estrutura em comunitas, em que as relações pessoais são essenciais”, defende Braga. 

Sendo assim, Braga pontua que o jornal não se pretendia uma empresa, mas um aglomerado submetido à amizade, guiado por princípios horizontais. “O grupo não se via como uma empresa, nem mesmo como uma redação convencional, mas como uma patota, um grupo de amigos que tinha prazer de fazer de suas relações pessoais e idiossincrasias matéria de jornal”, sublinha Kucinski, no qual “cada colaborador traria uma contribuição inteiramente pessoal e independente, sem obedecer a nenhum plano. O jornal não seria mais do que uma soma dessas contribuições”, continua Braga. 

Por causa do funcionamento coletivo, marcado por relações pessoais de amizade e interação, os textos e cartuns d´O Pasquim esbanjavam alegria, descontração; pareciam sorridentes todo o tempo.

“As relações entre os componentes de uma patota implicam laços pessoais. Além das qualificações profissionais, todos os traços são significativos. A patota não é um agregado funcional de indivíduos, mas uma integração mais ou menos vaga de pessoas”, pontua Braga.

Exatamente pela amizade e pela familiaridade que falamos acima, estavam sempre interagindo um com o outro através dos textos. Criticavam-se mutuamente em suas matérias e conversavam entre si pelas próprias páginas do semanário.  “O jornal é usado como um fórum em que as posições contraditórias são expostas e defendidas. Ataques (bem ou mal-humorados) são dirigidos explicitamente aos colegas/opositores”, nesse sentido, afirma Braga, “durante toda a história do jornal é possível encontrar exemplos dessa presença da patota no texto”. 

É por conta também da organização em patota que “no Pasquim, cada um desenvolveu um estilo próprio, reconhecível, e adequado ao tratamento das questões que interessam ao jornal”, continua Braga.  Os cartuns de Ziraldo, de Jaguar, ou de Henfil, os textos de Ivan Lessa, os artigos de Millôr, os ensaios de Paulo Francis eram de uma pessoalidade tão extrema que, embora assinados, ainda que não fossem seriam facilmente identificados. “No Pasquim, cada um com seu estilo pessoal de escrita impregna de pessoalidade o texto. A pessoalidade é assim um elemento do estilo do Pasquim”, conclui Braga. 

Ainda segundo o autor, “no texto do jornal, a manifestação da pluralidade aparece de diversas maneiras. A mais evidente é da variedade de posturas psicológicas que transparecem na produção e no estilo de cada colaborador. Exemplos: o ativismo otimista de Ziraldo, o ceticismo achincalhador de Ivan Lessa, o ceticismo arrasador de Paulo Francis, a malandragem de Jaguar, o anarquismo de Millôr, a indignação de Henfil, o liberalismo crítico de Alberto Dines, a postura ‘undergroundista’ de Luiz Carlos Maciel, o mau humor radicalista de Armindo Blanco, o humanismo tragicômico de Aldir Blanc”, contextualiza Braga. 

Dessa forma, “variando entre a esquerda clássica e uma nova esquerda libertária e preocupada com valores quotidianos, o jornal vai apresentar uma multiplicidade de abordagens”, segue o autor. 

Entretanto, nem todo momento a convivência era isenta de ruídos e conflitos. Ainda assim, as desavenças e contradições existentes, muitas vezes, reforçavam ainda mais os laços de amizade e companheirismo entre os “patoteiros”. Como bem explica Braga, não são apenas as similaridades e os assuntos convergentes que configuravam o grupo, mas “as forças de repulsão e o contraste também contribuem para a configuração peculiar de uma patota: cumplicidade e brigas, solidariedades e competição interna, tudo isso carregado de emoção, de marcas afetivas”.

Vale ressaltar que este princípio da patota, da pauta ser construída coletivamente dentro de uma relação horizontal de amizade, é o princípio organizador aqui na Berro. Entre as muitas referências pasquinianas que seguimos, esta é uma das mais importantes no09 processo de existência da revista. Na verdade, muitos dos veículos independentes hoje no Brasil que seguem esse princípio organizador têm como referência editorial O Pasquim. As contribuições éticas e anárquicas, gráficas e estéticas do semanário para o jornalismo brasileiro são gigantescas, talvez ainda hoje inalcançadas por qualquer outro veículo de ontem e da atualidade.        

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A série O jornalismo alternativo na ditadura militar é publicada sistematicamente no #siteberro.

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Clique nos links abaixo para acessar os textos anteriores:

I. O contexto sócio-histórico do nascedouro da imprensa alternativa no Brasil

II. A revolução dos “bichos-grilos”: o nascimento da contracultura

III. O movimento dos direitos civis: as lutas feministas e negras

IV. Sexo, drogas e rock’n’roll: o movimento hippie 

V. Arte corajosa nos trópicos

VI. 1968: o ano da rebelião mundial estudantil

VII. O AI-5 e a resistência da imprensa alternativa

VIII. Os jornais alternativos na vanguarda

IX. A estratégia dos alternativos e o contra-ataque da censura

X. Os jornais combatentes: os casos de Opinião, Movimento e Versus

XI. O Pasquim como protagonista da resistência

XII. Da tragédia à comédia: a busca pelo humor social

XIII. A crítica dos costumes e a contracultura pasquiniana

XIV. A revolução jornalística “pasquineira”


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