A crítica dos costumes e a contracultura pasquiniana



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Em sua primeira fase, que podemos afirmar que vai do seu lançamento até a prisão da redação, em novembro de 1970, O Pasquim é um jornal de humor marcado fortemente pela crítica dos costumes da sociedade média unidimensional, nos moldes daquela pensada por Marcuse em A ideologia da sociedade industrial – o homem unidimensional, de 1964. A analogia vale também, em partes, para a “sociedade tecnocrática”, de Roszak, em Contracultura: reflexões sobre a sociedade tecnocrática e a oposição juvenil, de 1972.

De acordo com José Luiz Braga, em O Pasquim e os anos 70: mais pra epa que pra oba, essa primeira fase do jornal é certamente uma crítica dos costumes. Norma Pereira Rego, em Pasquim: gargalhantes pelejas, corrobora da ideia e pontua. “O jornal não tem a política como seu tema central. Ele fala de futebol, do sucesso de Glauber Rocha em Cannes, de música, de teatro”, defende Braga. “O projeto era não ter uma ideologia, era um jornal de humor. Um jornal de humor por si só não pode, não deve ter uma posição política. Ele pode ter uma posição política contrária às ideologias, ou contrária às posturas, sintetiza Miguel Paiva, no documentário da TV Câmara, O Pasquim: A Subversão do Humor

A classe média moralista e conservadora, cheia de pudores e falsas morais, era seu alvo preferido. Estavam sempre dispostos a criticar “todo o pavor que ela sentia pelo novo, o diferente, seu modo de escolher sempre a medida menor para tudo o que não representasse símbolo de status social, a determinação em não fazer o mínimo protesto quando lhe tomavam algo que lhe era de direito”, diz Rego, enfim, suas características já bastante conhecidas, mas pouco criticadas. “Às vezes, a fim de chocar a moralidade de classe média, o jornal apresenta, além de fotos de mulheres, um gesto considerado obsceno, ou insinuações verbais. Estas capas, hoje percebidas como bastante inocentes, foram frequentemente consideradas ‘imorais’”, afirma Braga. No entanto, para muitos jornais alternativos feministas da época, como Brasil Mulher, Maria Quitéria, Nós Mulheres, Beijo, em muitos momentos O Pasquim reproduzia o machismo da sociedade. 

(Foto: O Pasquim, com esse tipo de conteúdo, pretendia atacar a moralidade conservadora classe-mediana, mas jornais alternativos feministas da época criticavam-no por objetificar o corpo feminino e reproduzir muitas vezes padrões machistas)

Segundo Rego, “naquela primeira fase, a oposição ao governo não era o primeiro objetivo nem a maior atração do jornal”.  No entanto, pelos tempos que vivíamos à época, “é importante observar que há uma relação estrita entre essa questão dos costumes e a oposição ao regime”, prossegue a autora. 

A maior parte dos alternativos é ao contrário centrada diretamente na política, na análise dos acontecimentos, tendendo a privilegiar o ângulo propriamente político. “O tratamento humorístico assinala também uma diferença essencial para o Pasquim. Suas origens não carregam um projeto explicitamente político  em razão do seu enfoque cultural-jornalístico, a participação propriamente militante e acadêmica é menos importante que em outros jornais”, evidencia Braga.

Dessa maneira, nessa primeira fase, o jornal não apresentava proselitismos ou discursos ideológicos de qualquer espécie. Sem panfletagem e sectarismos, certa vez uma de suas frases de capa foi: “Contra a ditadura, inclusive a do proletariado”.  “Por mais que se sentissem orgulhosos de entrevistar Luiz Carlos Prestes ou felizes de mandar ouvir Gregório Bezerra em Lisboa, nunca nenhum deles entrou numa reunião do Partido Comunista. Esta era a grande marca do Pasquim: ser um jornal aberto, livre, sem linha editorial”, pontua Norma Rego. 

Já foi dito aqui que O Pasquim não foi, em sua primeira fase, um jornal de caráter propriamente político, como a grande maioria dos alternativos de sua época.  Ao proclamar-se um jornal livre de amarras ideológicas, O Pasquim encaixa-se, portanto, na vertente existencialista que, de acordo com Kucinski (2003), foi adotada por alguns outros jornais alternativos como Bondinho e Versus.

Essa liberdade existencialista pasquiniana encontra morada nas ideias do filósofo francês Jean Paul Sartre, criador da teoria na qual o ser humano é, a priori, livre – de tudo, inclusive de ideologias. Sendo assim, nas teses sartreanas, “o homem está condenado à liberdade” assim como sua “existência precede a essência”.  Para Sartre, aquele que não fosse livre, estava fadado à “existência inautêntica”.

Dessa forma, agregando às ideias do existencialismo sartreano as da contracultura norte-americana, O Pasquim foi o responsável e primeiro jornal do país a propagar e falar daquele movimento surgido no início da década de 1960 em solo estadunidense.

De acordo com Bernardo Kucinski, em Jornalistas e revolucionários: nos tempos da imprensa alternativa,“como o pioneiro da imprensa underground americana, o Village Voice, fundado no bairro boêmio de Nova York, em 1955, O Pasquim propagou, a partir daquela compacta zona intelectual-boêmia do Rio, uma contracultura, alternativa tanto à cultura da ordem estabelecida quanto à cultura oficial de esquerda. Uma contracultura sintetizada no conceito do ‘anticaretismo’, do repúdio ao conformismo, a tudo que fosse conservador, repressor e inautêntico”. 

De acordo com Kucinski, O Pasquim, instituiu o culto da cultura underground norte-americana e “detonou um movimento próprio de contracultura, transformando as linguagens do jornalismo e da publicidade, e até a linguagem coloquial”. A contracultura n´O Pasquim é percebida também pela sua “recusa das estruturas sociais do mundo industrializado, pouco importa se capitalista ou comunista, percebidas como totalitárias. Esta área, rica em correntes diversas, incluiria o movimento hippie, com os temas do amor livre, da aceitação do uso de drogas”, ressalta Braga. 

(Foto: Luiz Carlos Maciel assinava uma seção de contracultura n´O Pasquim)

Tratando disso, portanto, podemos afirmar que “O Pasquim não só propunha a liberdade total; O Pasquim viveu a liberdade total, na forma não burocrática de produção de pauta e no recurso de alguns de seus protagonistas centrais a novos modos de percepção através da maconha e da cocaína”, sublinha Kucinski . Sendo ele, pois, um jornal existencialista, o autor assevera que, no início dos anos de 1970, com a repressão cada vez mais dura, “enquanto a esquerda clássica refugiou-se ainda mais no dogma, a vertente existencial recorreu à droga, entre os quais jornalistas do Bondinho, O Pasquim e Versus.

A seção udigrudi, de Luiz Carlos Maciel, era o grande carro-chefe da contracultura pasquiniana. Maciel, antenado nesse campo de criação cultural na Europa e nos Estados Unidos, foi denominado o guru da contracultura d´O Pasquim. Discutindo de psicanálise a cannabis sativa, Maciel, “cujos artigos tinham títulos do tipo ‘Muito louco bicho’”, “salvo engano, foi quem inventou (ou pelo menos popularizou) expressões condenadas à imortalidade como ‘barato’, ‘curtir’, ‘sarro’ (no sentido de gozação)”, comenta Sérgio Augusto, em  O Pasquim – Antologia (vol. I): 1969-1971.  Para Kucinski, através da seção udigrudi, de Maciel, e dos artigos de Ivan Lessa, de Londres – respirando contracultura diretamente da fonte –, “as raízes existenciais de O Pasquim inspiraram o surgimento de outros jornais de contracultura no país”.

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A série O jornalismo alternativo na ditadura militar é publicada sistematicamente no #siteberro.

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Clique nos links abaixo para acessar os textos anteriores:

I. O contexto sócio-histórico do nascedouro da imprensa alternativa no Brasil

II. A revolução dos “bichos-grilos”: o nascimento da contracultura

III. O movimento dos direitos civis: as lutas feministas e negras

IV. Sexo, drogas e rock’n’roll: o movimento hippie 

V. Arte corajosa nos trópicos

VI. 1968: o ano da rebelião mundial estudantil

VII. O AI-5 e a resistência da imprensa alternativa

VIII. Os jornais alternativos na vanguarda

IX. A estratégia dos alternativos e o contra-ataque da censura

X. Os jornais combatentes: os casos de Opinião, Movimento e Versus

XI. O Pasquim como protagonista da resistência

XII. Da tragédia à comédia: a busca pelo humor social


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