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Analisando a socialidade favelada, pode-se decretar que alguém “escolhe” ser “bandido”, como se fosse uma escolha prática entre ser “traficante”, médico ou engenheiro? Que opções profissionais surgem como viáveis às gerações de jovens que nascem nas favelas brasileiras? De que maneiras as muitas privações materiais e simbólicas interferem na dinâmica psicológica dos praticantes da criminalidade pobre? Como as violências físicas e subjetivas do estatismo e da semiótica do poder incidem nas ações e nos modos de pensar dos indivíduos que aderem à carreira criminal?
Conversando com dezenas de pessoas que aderiram às atividades do crime no Grande Tancredo Neves observei que esta “escolha” – na maioria das vezes elaborada de forma ativa e conscientemente e quase nunca irrefletida – é atravessada por variáveis sociais (contextos macros e microssociológicos) e individuais (subjetivas, psicológicas) que lhe conferem um caráter multiconfiguracional de disposições a agir.
“Criei minha fiazinha só às custa de vender droga”
Dentre estas configurações, uma que se apresenta como evidente é a luta por sobrevivência material. Sobre isso, Chico Science entoava estes versos cortantes em meados dos anos 1990: “Em cada morro uma história diferente, que a polícia mata gente inocente. E quem era inocente hoje já virou bandido, pra poder comer um pedaço de pão todo fudido. Banditismo por pura maldade, banditismo por necessidade, banditismo por uma questão de classe”.
Um dos jovens praticante de atividades criminais no Rio de Janeiro entrevistado por Celso Athayde e pelo rapper MV Bill, para o livro Cabeça de porco, pontuou que “ter a visão do crime é saber que o crime é um meio de sobrevivência pra você e sua família”.
Queria apresentar algumas falas de pessoas que entrevistei que ajudam a entender a questão:
Pango, 28 anos, “patrão” de um território no GTN: “Entrei porque minha mãe e meu pai num tinha muito condições de dar as coisas pra gente, aí resolvi entrar, passei pra querer roubo, mas aí eu vi que tinha pena dos outros, das vítimas. Fui duas vezes, aí eu senti pena. Aí eu “não, essa vida né pra mim não”. Aí eu vim pressa aqui, aí eu gostei, né? Só nos corre mesmo! E tô aí até hoje, né, mah, lutando aí pra sobreviver. […]
Nessa época aqui, muita gente entrou no mundo do crime mah, por causa da inflação e do desemprego mah, porque tava necessitando de comida, de gás, aí num tem como. A gente que já somo muito veterano, a gente recruta os menino da geração nova, dá casa, dá moto, fornece a mercadoria, dá arma, aí eles começa”.
Samurai, 30 anos, traficante varejista: Eu num estudei não, baitola, num tenho emprego não. Botei um… na Fábrica Fortaleza, botei um currículo. Só que é difícil ser chamado né, parceiro. Se eu for chamado eu me abraço, né. [Mesmo se for pra ganhar só mil conto?] Eu me abraço. Me abraço, tu é doido, quero sair mah. Tu é doido, quero ficar nisso aqui não. Tô falando mah, é um quebra-cabeça, o cara tem que saber quem tá ao seu redor, mah. Se preocupando e tal né mah.[E quando tu pensa “macho, eu tô no crime é por isso”, o que é, qual é motivação, a grande motivação?] (Nesse momento da conversa, Samurai se desdiz sobre trabalhar para ganhar “apenas” mil reais). É pra sobreviver, mah. Sobrevivência, pra sobreviver né, mah. Tenho outro meio de vida não, mah. Que eu ajudo os outro, mah. Cara chega aqui pede 20 conto, 30 conto. Tu viu aí oh… chegou o cara… chegou um aqui agora.
Porque o que gasto aqui é muito dinheiro, mah. A família em cima de mim, tem minha mulher, essas duas aí (aponta para o quarto onde estavam a cônjuge e o filho recém-nascido), o cara gasta que nem uma porra, mah. Aí tu acha que um salário vai dar, mah? Um salário? Gastei quase duzentos conto só de remédio. Com o meu filho e ela (a recém-nascida). Gastei. Tem como não, mah. Tem muita gente desempregada, mah. É 14 milhão. Aumentou, mah. Era 12 (milhões), né? Hoje em dia eu tiro só pra sobreviver, eu nem uso droga não, tá entendendo.
Tem meus cliente, entendeu. Não gosto de traficante, não (aqui ele se refere de forma depreciativa ao varejista que recebe clientela a todo instante na porta de casa ou o “avião” que despacha na bocada). Eu só tenho três cliente vip, mah. Não é pra qualquer pessoa, não.
Cleandro, 45 anos, desempregado: Aí pronto, criei minha fiazinha um certo tempo só às custa de droga (Cleandro foi um dos pioneiros no fornecimento de crack no GTN em meados dos anos de 1990, mas hoje não participa mais diretamente das atividades criminais na região).
Portanto, fica evidente que considerável parcela dos indivíduos da favela que aderem a atividades criminais, excluídos do campo privilegiado e assimétrico das oportunidades civis e socioeconômicas do mercado de trabalho capitalista contemporâneo, não conseguem tatear objetivamente outra alternativa viável e pragmática para custear as despesas alimentares básicas de suas famílias senão as práticas delitivas.
“Se quiser ganhar uma coisinha a mais tem que ir pro crime mesmo”
Se a questão da sobrevivência material familiar se apresenta como desencadeadora da “escolha” pela opção criminal nas vidas de Pango, Samurai e Cleandro, outra motivação recorrente, já adiantada na fala de Samurai, é a desigualdade da equação entre:
i. ganhos financeiros e força de trabalho empregada nas subcategorias do mercado de trabalho capitalista destinadas às populações marginalizadas;
ii. quando comparadas às quantias obtidas em atividades ilegais das camadas pobres. As vantagens econômicas das práticas delitivas se sobrepõem largamente sobre o trabalho formal destinado às classes populares.
Nesse caso (e em todos os demais), a “escolha” pelo ingresso no sistema de relações sociais do crime tem uma dimensão política, na medida em que há uma reflexão avaliativa sobre esta ação e uma resistência ativa a alinhar-se ao mundo social de acordo com aquilo que é imposto pela ordem hegemônica.
É exatamente essa a leitura que me fez João, que trabalhava com assaltos, homicídios e com o tráfico varejista. Alguns meses após nossa conversa, ele foi morto por um policial durante uma tentativa malsucedida de assalto: “Se fosse pedreiro, ganhava mil reais trabalhando o dia todo no sol quente. Se for pra trabalhar de servente, pintor, carpinteiro, o nêgo num sai dali! Dá não mah, pra trabalhar assim não. Se quiser uma coisinha a mais tem que ir pro crime mesmo. Agora tô aqui ó, ganhando minha céda (cédula, dinheiro), sem botar peso nem debaixo do sol quente. Nós num precisava trabalhar não mah. Era pra nós poder andar de cavalo, ter água limpa, plantar, comer, ficar deitado numa rede… né assim que o Racionais (MC’s) fala? Mas o homem é ambicioso, ele estragou tudo, como o Facção (Central) diz”.
Outras narrativas que surgem dão conta do desemprego e da dificuldade de conseguir uma ocupação formal, mesmo com seguidas tentativas. Penso que a poética de Gonzaguinha cabe nesse momento: “Um homem se humilha se castram seus sonhos, seu sonho é sua vida, e vida é trabalho, e sem o seu trabalho, o homem não tem honra, e sem a sua honra, se morre, se mata”.
A falta de oportunidades no mercado de trabalho capitalista tem muitas vezes relação direta com a baixa escolaridade – e esta ocorre, principalmente, devido às muitas lacunas atrativas e deficiências estruturais do sistema educacional público.
A maioria dos praticantes criminais com quem conversei havia abandonado a escola, muitos ainda no ensino fundamental. Não conheci nenhum praticante de atividades delitivas no GTN que possuía mais de dez anos de escolaridade. O sistema educacional não lhes oferecia vantagens simbólicas suficientes que os fizessem investir libidinalmente na instituição escolar. Na verdade, impera entre estes indivíduos uma quase indiferença à formação educacional formal. A evasão escolar é a norma.
Pango, “patrão” de um dos territórios do GTN, que, em épocas de bonança chega a ganhar de dez a quinze mil reais semanais, evadiu-se da escola na 8ª série. Pergunto-lhe por que desistiu. “Eu vi que estudo num tinha futuro não, mah. Estudava, estudava, e num via nada”.
O mal-estar crônico da escolarização pública é fruto de uma avaliação objetiva mediada cognitivamente pelos jovens favelados e implica num quase total desinvestimento em relação à encantada meritocracia escolar. Ao desinvestirem na instituição escolar, porque “estudava, estudava, e num via nada”, na verdade eles veem, numa leitura sagaz, que a escola não está orientada para transformar suas realidades materiais e culturais, mas, pelo oposto, funciona para manter as desigualdades de capitais entre os segmentos sociais, através de esquemas de classificação, seleção e exclusão socialmente legitimados.
O prazer pelo risco e o ethos de aventura
Ainda pensando a adesão à carreira criminal, há outro impulso motivacional que precisa ser considerado na análise da “escolha”. É a ascensão de um ethos de aventura, um desejo libidinal de prazer pelo risco que parece dar sentido à vida de muitos dos que optam pelas relações criminais. A “adrenalina” das práticas delituosas dá o ritmo de suas sensações e anima seus espíritos em contraponto ao marasmo existencial de suas vidas banais: sem escola, sem trabalho, sem lazer, etc.
Dialogando com o assunto, em Ritual de interação: ensaios sobre o comportamento face a face, Erving Goffman sustentou que “nas bordas da sociedade, há poças de pessoas que aparentemente acham razoável se engajar diretamente nos feitos arriscados de uma vida honrada. Sua alienação de nossa sociedade as liberta para serem sutilmente induzidas a perceber nossas fantasias morais”. Segundo este autor, o que leva os indivíduos a realizar suas ações é a busca por atividades que gerem expressão, que os ponha em perigo mesmo que por momentos fugazes, pois estas ações consequentemente lhes trarão o respeito dos outros. A ação, diz Goffman, somente surge quando o “indivíduo voluntariamente arrisca chances consequentes percebidas como evitáveis. Normalmente, a ação não será encontrada durante a rotina de trabalhos úteis, em casa ou no emprego, pois aqui as coisas são organizadas de forma a deixar as chances de fora”.
Assim, ainda que não me furte à possibilidade dela ser apontada como uma idealização, proponho como hipótese empírica que as ações coletivas encabeçadas por jovens negros faccionados nas favelas e periferias brasileiras é uma reatualização histórica das muitas lutas por resistência e liberdade encampadas pelas diversas etnias negras e indígenas escravizadas e dizimadas no Brasil colonial – em que pese a ressalva de que nos casos comparados os objetivos e pretensões com as lutas são bastante distintos.
Retomando o argumento central, diria que esse ethos de aventura dos “bandidos” pobres configura-se como uma ação criminal recheada por enfrentamentos belicosos com a polícia e com grupos rivais. Esse ethos é a excitação espiritual da qual se valem para enfrentar a inação de uma vida sem nada para fazer. As incertezas, imprevisibilidades e perigos, que flutuam frequentemente sobre suas ações, não são levianamente desprezadas no seu fazer; pelo contrário, há uma propriedade avaliativa nelas – um estado de prontidão sempre alerta a fazer rápidas análises situacionais (um saber empírico) – que implica que avancem ou recuem, insistam ou desloquem, apareçam ou fujam de acordo com cálculos configuracionais.
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A série “Antropologia do crime no Ceará” é publicada semanalmente no #siteberro. Veja abaixo os textos anteriores.
artur@revistaberro.com
i. A dimensão ética na pesquisa de campo
ii. Pesquisando o “mundo do crime” e inserindo-se no “campo”
iii. Grande Tancredo Neves: formação dos territórios
iv. As relações sociais das camadas populares
v. A feira como arte da oralidade popular
vii. Estabelecidos e outsiders: a favela dentro da favela
viii. “Trabalhadores” e “bandidos”: entre separações e aproximações
ix. Sistema de relações sociais do crime: uma rede de ações criminais hierárquicas
xi. “Não confio na polícia”: A relação de descrença entre a classe trabalhadora e os policiais
xii. A economia da corrupção que move a relação entre polícia e “bandidos”
xiv. Tecnopolítica da punição: A função econômica do encarceramento
xv. Estado punitivo-penal e a produção social da delinquência
xvi. “Cadeia é uma máquina de fazer bandido”
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