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Neste texto, quero trazer a fala de alguns “bandidos” capturados pela lei proibicionista brasileira. Eles narram algumas histórias de suas passagens pelo sistema prisional, expondo suas experiências materiais e subjetivas. Cenas fortes. Memórias do cárcere.
Raposão comenta sobre a primeira vez em que foi preso, após uma tentativa de assalto frustrada a uma lotérica na cidade de Pacajus, na região metropolitana de Fortaleza, e fala sobre as condições insalubres e também sobre os “convites” a que todos estão expostos. O relato é forte e impactante:
“Na verdade, a cadeia não é centro de reabilitação, é uma máquina de fazer bandido. Quando você entra numa cadeia, no sistema, parece que você entrou num programa de computador, que ali tudo é ligado. Tu conhece tudo, sabe onde todo mundo tá, pode rastrear toda e qualquer pessoa. Eu fui pra “casinha do cachorro” [nome popular de um espaço de uma cadeia pública] que tem lá em Pacajus, que é só um corredor com uma grade, muita bosta no chão, todo tipo de excremento, aí os tapuru [vermes] sobe pela parede e fica caindo em cima de você. Ali, tu já tá no auge do cansaço, totalmente debilitado, doido pra dormir e procurando canto sem ter. Gente demais! Aí você tem que chegar na humildade pros cara, passar ciência do que tá se passando, ‘ó, não tô conseguindo, tô querendo dormir’… Num corredor que era pra caber duas pessoas têm catorze, aí fica sete sentado até meio-dia e sete em pé. Aí os que tão em pé depois troca, entendeu? Aí a mulher veio com a quentinha [marmita], eu rasguei a tampa da quentinha, fiz uma bolinha e botei aqui no ouvido e no nariz pra quando eu fosse dormir não entrasse tapuru, entendeu? Quando eu cheguei no X [cela] onde eu tava, irmão, tinha que dormir no pé do banheiro, que tava muito lotado, molhado direto, muita barata, o cheiro horrível. Só depois que eu consegui, que peguei o entendimento de como a cadeia funciona, de como sobreviver dentro da cadeia, sendo respeitado, entendeu? Sem ser ferida a minha integridade, fisicamente nem nada… mas eu aprendi tudo isso, estudando muito, calado, escutando muito, falando pouco, aí eu comecei a botar o crime pra gerar lá. Via as coisa errada que acontecia, aí comecei a botar pra gerar. Daí chegou os caba em mim dizendo assim ‘irmão, chegou uns camarada aqui e tal e tal, do presídio, perguntou se você queria fazer parte do CV, se você queria vestir a nossa camisa e tal'”.
Papagaio me conta sobre um episódio em que foi torturado. Em uma das conversas que tivemos, ele me falou que pretendia “deixar o crime” e ingressar nas subcategorias do mundo do trabalho capitalista destinadas às populações periféricas. A cadeia tinha deixado sequelas físicas e psicológicas nele:
— Então, tu não quer mais traficar?
— Não, quero mais não, porque eu sei o que é cadeia, ladrão. Negada tá matando todo mundo.
— Por que é que tu num quer mais?
— Porque num dá mais pra mim cadeia, cara. Cadeia é cruel. É veneno, cara. É um almoço e janta só, e peia, todo dia.
— E lá no 13º (Distrito Policial), como era, conta aí…
— Todo dia eu pedia pra ir pro presídio, mas num me transferiram não mah. Da última vez que me pegaram eu tava com um mandato [mandado] em aberto e num sabia. Quando eu fui no IML fazer o exame [de corpo de delito], quando eu tava me vestindo botei o celular dentro da carteira, que era um bem pequeninim. Aí quando cheguei no 13º, [os policiais disseram] “agora você vai pra tranca, esperar seu almoço e esperar os procedimento. Eu disse “tá certo”. Tinha oito presos, ninguém queria me aceitar. Aí quando eu fui entrando lá tava lotado de muriçoca, mosquito do tamanho duma mosca, aí eu “e aí, galera”, e mostrei o celular de um jeito pra camêra num pegar. Aí me acoquei bem assim e saí ligando pra todo mundo. Quando liguei pro [Y], aí lá vem o chaves; o chaves é o cadeado, é tanto código que tem na cadeia. Lá vem o agente pra abrir a cela: “Bora, de quem é esse celular. Fica todo mundo nu. Vai todo mundo apanhar aqui agora”. Menino, foi peia, só de cassetete aqui nos dedo ó, aqui nos cotovelo, aqui ó… Foi duas sequência [de espancamento], na hora da terceira, o cara foi e disse assim: “vai, [Papagaio], se acusa”. “Eu num vou se acusar não, porque na hora de ligar todo mundo precisou, num vou apanhar sozim não, vai apanhar todo mundo, se alguém me entregar quando chegar lá no X [cela do presídio], vai ver, lá na triagem também, se eu falar que é cabueta na triagem vai morrer tudim. Aí o policial disse: “é teu, né”. Aí o policial me puxou, deu um chute nas minhas costas, na minha barriga e no meu ovo, pegou outro lorim que tinha feito a fuga e esbagaçou ele também de peia, aí trancaram nós dois, molharam o chão todim e mandaram nós passar a noite todinha de pé. Lá no 30º [DP] também do mesmo jeito: peia, peia, peia… No 30º, o almoço era arroz, feijão, cuscuz e macarrão com mortadela, mas só que dentro da comida vinha um bolão assim de cabelo ó… e uma ponta de agulha pra gente morrer engasgado! A vida do crime é louca! Eu vi [a agulha] umas duas vezes. “Ei galera quem chegou agora, os toque aí pros novato pra catar a comida, que tem agulha pra gente morrer aqui e num tem socorro não”. Tinha preso com tuberculose, com virose, e eles davam uns comprimido assim ó: jogava os comprimido. Na minha cela chegou a ter 13, e só cabia 7. O almoço entra 10h30 e a janta entrava 3 e meia. Num tinha café da manhã, só isso! Aí num dia chegou o inspetor chefe, querendo falar com a gente. “Vou liberar merenda pra vocês hoje”. Aí liberou o pacaio [tabaco artesanal] e o cigarro. Aí nos outros dias num veio não. Aí uns dois dias depois, ele volta. “Eita, é o inspetor, veio liberar o café”. “Taqui o café de vocês, pow”, deu foi um tiro na cela, nós tivemos que se abaixar. Ficou só um bolão de pólvora assim dentro da cela, aí mandou eu o [Y] e o [Z] ficar nu dentro da cela, depois no pátio, aí passamo meia hora lá no sol. Tu é doido, eu voltei bem maguim da cadeia mah.[Quando conversamos, Papagaio tinha saído há oito dias do presídio]. Uns cara hoje me chamaram pra roubar uma lotérica, mas num vou não. Se eu for preso, sabe o que quê dá? Quebra de regime. Quebra de regime eu fico seis meses trancado. Depois de seis meses, que eu fico na CPPL [presídio], né, aí eu vou lá pra Pacatuba, no semiaberto, aí fico quatro anos puxado pelo pé [com tornozeleira eletrônica], compensa?”.
Noutro momento da conversa, Papagaio discorre sobre as “leis” internas dos presidiários, os códigos morais e de convivência que existem neste espaço social.
— Quando é cabueta [alcaguete] a negada mata mesmo, quer nem saber, é?
— Mata… maata! O cara escolhe pra morrer: ou o cara morre por coquetel – eles pegam uma ruma de droga, mistura com café – ou o cara morre de cossoco [arma artesanal que se assemelha a um objeto cortante e perfurante], ou morre enforcado, aí o cara escolhe.
— Mas isso aí varia de cadeia pra cadeia, né não?
— Todas as cadeias, todos os presídios.
— Mas como é que vai saber quem tá falando a verdade, tu ou ele. Se ele disser “não, esse bicho aí tá mentindo”.
— Tem que provar o bagüi [bagulho]… o bagüi é o cara que tá preso porque ele cabuetou. E quem tá preso também tem um bocado de testemunha que ele é cabueta, mas se uma pessoa só der a voz… O cara vê quando o cara é cabueta, o cara é noia mah, todo noia é cabueta. Aí tendo oito na minha cela e os oito ouvindo eu falar que ele é cabueta, então tem oito do meu lado, contra só ele. Aí pronto, ele num tem pra onde correr.
Nas conversas com os interlocutores, as experiências narradas acerca das histórias vivenciadas nas prisões me pareceram muitas vezes ainda mais impressionantes do que as que eu já tinha visto em filmes ou lido em revistas, jornais e livros. Talvez porque houvesse ali, nesse encontro, uma escuta atenta e compreensiva.
As cenas de tortura, desumanização, insalubridade e escatologia que eram contadas me inquietavam internamente, produziam em mim certo grau de estresse e agitação mental, e me fizeram dar pausas estratégicas de uma ou duas semanas entre uma entrevista e outra para poder digerir e elaborar psicologicamente toda a densidade e sofrimento daquelas narrativas.
Parece-me demasiadamente óbvio o fracasso da prisão em sua dimensão humanitária. É difícil, muito difícil, encontrar alguém disposto a questionar essa evidência, mesmo entre aqueles que a administram e a gerenciam. No entanto, desde o sistema de pensamento dos segmentos populares, passando pelos setores médios e abastados, pelos intelectuais da academia, e chegando às “autoridades” do estatismo, nunca se pensa em desinvestir do sistema penitenciário e adotar outro paradigma penal, mas incansavelmente se propõe a reformá-lo. Análise muito válida de Foucault: há quase dois séculos, o sistema prisional vem sendo receitado como seu próprio remédio: a insistente repetição das técnicas penitenciárias surge como único modo para consertar seu fracasso perene. A “reforma” do sistema penitenciário é contemporânea de sua própria fundação; reformar a prisão é o imprescindível programa administrativo do sistema prisional.
No entanto, se a obviedade do seu “fracasso” rasga nossos olhos de tão cristalina, por que e como o sistema penitenciário se mantém como, nas palavras de Foucault, “detestável solução, de que não se pode abrir mão?” Ora, voltamos à questão central: porque, ao produzir uma delinquência útil aos jogos socioeconômicos da ordem hegemônica, se converte como parte fundamental do sistema de relações sociais do crime. Para a estrutura em rede desse sistema, a prisão não é um “fracasso”; pelo contrário, ela cumpre obstinadamente com a sua funcionalidade dentro das relações criminais.
Em Vigiar e punir, Foucault descreve os suplícios brutais aos quais eram submetidos os condenados nos séculos XVII e XVIII na Europa, principalmente na França. São relatos de castigos absurdamente cruéis e sádicos. A prisão então surge, entre o final do século XVIII e o início dos Oitocentos, como punição “civilizada”. O que pensarão as gerações futuras, talvez do século XXII, acerca dos “suplícios brutais” aos quais estão submetidos os condenados nos atuais presídios “modernos” do século XXI?
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A série “Antropologia do crime no Ceará” é publicada semanalmente no #siteberro. Veja abaixo os textos anteriores.
i. A dimensão ética na pesquisa de campo
ii. Pesquisando o “mundo do crime” e inserindo-se no “campo”
iii. Grande Tancredo Neves: formação dos territórios
iv. As relações sociais das camadas populares
v. A feira como arte da oralidade popular
vii. Estabelecidos e outsiders: a favela dentro da favela
viii. “Trabalhadores” e “bandidos”: entre separações e aproximações
ix. Sistema de relações sociais do crime: uma rede de ações criminais hierárquicas
xi. “Não confio na polícia”: A relação de descrença entre a classe trabalhadora e os policiais
xii. A economia da corrupção que move a relação entre polícia e “bandidos”
xiv. Tecnopolítica da punição: A função econômica do encarceramento
xv. Estado punitivo-penal e a produção social da delinquência
E preciso sim confrontar o senso comum do punitivismo ao mesmo tempo que dialogamos com as demandas por protecao e integridade que resultam da totalidade da opressao machista, racista, de classe e LGBTfobica, oferecendo alternativas pautadas dentro de uma justica restaurativa e reparadora e que afirme a responsabilizacao de agressores (ou penalizacao nao-punitiva) com reabilitacao de estuprador e bandido que realmente evite reincidencia. Ate porque se existe uma maquina de fazer estuprador e bandido, essa e a prisao de hoje no Brasil. Existe um antipunitivismo empatico que foca na reparacao pra vitima e diminuicao social daquela violencia ao combater a reincidencia e ao promover socializacao e educacao anti-opressora.