A estratégia dos alternativos e o contra-ataque da censura



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(Ilustração: Levi Noli/Revista Berro)

Os alternativos engrenam de vez. A classe média das grandes metrópoles, antes leitora apenas da grande imprensa, passa a consumi-los cada vez mais. Paradoxalmente, o período em que os alternativos pipocam é simultâneo ao aumento da repressão militar, sob a forma agora de um aparelho censório bastante intransigente. 

No entanto, fazendo uma análise mais ampla do contexto social e político à época, podemos citar alguns fatos que contribuíram para essa propagação da imprensa alternativa. De acordo com a historiadora Maria Aparecido de Aquino, em Censura, Imprensa, Estado Autoritário (1968-1978): o exercício do cotidiano da dominação e da resistência : O Estado de São Paulo e Movimento, a disponibilidade, no mercado, de um grande número de jornalistas profissionais qualificados e críticos à repressão do regime e à ausência de liberdade de expressão;  a existência de vozes que haviam perdido seu espaço de manifestação, como os intelectuais, e que enxergavam na imprensa um caminho para a expressão de suas ideias; o empobrecimento, graças à censura, dos conteúdos da imprensa e da televisão, que não mais correspondiam às expectativas da população consumidora, foram fatores decisivos para o crescimento dos alternativos.  

Dessa maneira, entende-se que esse estouro dos alternativos se dá num momento em que a repressão política leva à formação, espontânea até, de uma frente oposicionista, que forma um grande bloco, do qual nascem os mais variados jornais alternativos. Entretanto, o caráter censório do regime não dava descanso

Aquino ressalta que “a censura esteve atenta à diversidade da produção dos vários órgãos de divulgação sobre os quais atuou, variando na defesa do regime autoritário, mas cônscia de seus interesses e, raramente, agindo de modo aleatório ao sabor das influências de caráter esporádico e individual. Sofreu a ação do tempo e reagiu às flutuações internas do Estado”.

Num cenário caótico de repressão em que até jornais da grande imprensa sofriam com esse inimigo, O Estado de S. Paulo, que fora um dos maiores apoiadores do golpe, mas pouco tempo depois retirou seu apoio aos militares, destacou-se pela sua maneira insólita de avisar ao leitor que estava sendo censurado: o diário notabilizou-se pela técnica da substituição. No lugar das matérias censuradas, o jornal punha poemas.

De acordo com Aquino, em um determinado momento, O Estado de S. Paulo passou a publicar Os Lusíadas, de Camões, em “suaves prestações”. Para se ter uma ideia da violenta presença da censura nesses tempos, a obra-prima do escritor português foi publicada duas vezes e meia, tal a quantidade absurda de cortes. O Jornal da Tarde caracterizou-se pela substituição dos cortes por receitas culinárias. O Jornal do Brasil, na seção do tempo, fazia analogias do tipo “clima nebuloso sobre o céu de Brasília”, no intento de burlar e zombar do aparelho repressor. Alguns outros jornais preferiam não substituir as matérias censuradas. Dessa forma, grandes espaços em branco denunciavam que a censura tinha retirado uma matéria daquele espaço.  Para Aquino, as diversas técnicas de substituição acima descritas representaram uma forma inteligente de evidenciar a existência da censura.

Segundo a autora, censuravam-se referências a prisões arbitrárias, maus tratos, torturas, desaparecimento e ao esquema de incomunicabilidade para presos políticos, bem como alusões a partidos clandestinos, críticas ao imperialismo e vetava-se radicalmente o discurso oposicionista. A proibição sistemática da veiculação de notícias que representassem a possibilidade de comoção social, violência, crise, ou seja, elementos que pudessem traduzir uma visão diferente daquela que encara a sociedade livre de tensões e conflitos, condiz com a idéia de que o “regime militar preocupou-se em passar a imagem de um tecido social harmonioso em que a rota da normalidade não pode ser interrompida”. 

Por outro lado, na maioria dos casos, a grande imprensa praticou, embora a contragosto, a autocensura, “acatando as determinações oriundas da Polícia Federal, seja na forma de bilhetinhos, geralmente apócrifos, seja por meio de ordens telefônicas às redações, e censurando internamente determinados assuntos considerados proibidos por essas ordens”, revela Aquino.  Continua a autora: “Os responsáveis pelos periódicos sabiam que o não cumprimento dessas ordens ‘fantasmas’ implicava em represálias, tais como a presença de censores na redação ou a apreensão do material na gráfica e em bancas, o que gerava imensos prejuízos”.

Entretanto, não obstante os jornais da grande imprensa terem enfrentado a censura, esta atuou com muito mais presença e intransigência no que diz respeito aos alternativos, pois, salienta Aquino, “a grande imprensa, pela sua estrutura, concepção e interesses, vinculados a pressões econômicas de seus anunciantes, nunca se preocupou (mesmo em momentos de liberdade de expressão) em veicular determinadas temáticas” como, por exemplo, a crítica ao modelo econômico concentrador de renda e de abertura ao capital externo, aumentando a nossa dívida externa, bem como a denúncia das subalternas condições de vidas das camadas populares.

O que já era ruim podia piorar, e assim aconteceu. Em 26 de janeiro de 1970, o governo apresenta o Decreto-Lei 1.077, que instituía a censura prévia. Os jornais que não capitularam às ordens apócrifas ou aos recadinhos e telefonemas, ou seja, não faziam a autocensura, como castigo receberam esse mais novo tipo de cerceamento.

Dos veículos de comunicação de caráter nacional na grande imprensa apenas O Estado de S. Paulo e o Jornal da Tarde, da família Mesquita; Veja, do grupo Abril; e Tribuna da Imprensa sofreram com a censura prévia. Já entre os alternativos, os que não sofriam com aquela “praga” eram as exceções. “Em relação à imprensa alternativa, diversos foram os órgãos de divulgação submetidos à censura prévia, de modo que o boom alternativo deste momento histórico acaba por se confundir com a própria periodização censória”, sublinha a historiadora. Nas palavras de Bernardo Kucinski em Jornalistas e revolucionários: nos tempos da imprensa alternativa, “o aparelho militar distinguia os jornais alternativos dos demais, perseguindo-os e submetendo os que julgava mais importantes a um regime especial, draconiano, de censura prévia”.

Segundo Aquino, “em um primeiro momento, entre 1968 e 1975, a censura assume um caráter amplo, agindo indistintamente sobre todos os periódicos. De 1968 a 1972 tem-se uma fase inicial em que há uma estruturação da censura, do ponto de vista legal e profissional, e em que o procedimento praticamente se restringe a telefonemas e bilhetes enviados às redações. Na segunda fase (de 1972 a 1975), há uma radicalização da atuação censória, com a institucionalização da censura prévia aos órgãos de divulgação que oferecem resistência. O ano de 1972 marca a radicalização e a instauração da censura prévia”.

A repressão torna-se violenta e intransigente. É aí que surgem os primeiros alternativos de caráter essencialmente político-ativistas: Versus, com uma temática baseada nas teorias de Régis Debray e voltada para o estudo e compreensão da América Latina anti-imperialista e Movimento, o popular e defensor das igualdades democráticas dos brasileiros.

Em que pese essa guinada radical na atividade censória, os militares usavam de táticas diversas para escondê-la. A censura preocupava-se sobremaneira em encobrir qualquer menção à sua existência. “Do ponto de vista da censura, era muito importante ocultar do público a sua própria existência e muito grande a preocupação em não deixar provas que pudessem vir a constituir elementos que implicassem em ações judiciais contra a União”, diz Aquino. Todavia, como já dito, foi exatamente nessa fase de censura prévia e repressão violenta que os alternativos explodiram e espalharam-se por todo o Brasil.

Durante esse período, o mais agudo em termos de aparelhagem censória, “os jornais alternativos se constituíram não em meros símbolos de resistência da sociedade civil ao autoritarismo, ou expressão de um movimento ou uma articulação de resistência: eles eram a própria resistência”, menciona Kucinski.

Nesse contexto de forte repressão, pipocam os jornais alternativos. De acordo com Kucinski, durante os anos de ditadura militar nasceram e morreram cerca de 150 alternativos. No entanto, a grande maioria tinha vida curtíssima. “Do universo de cerca de 150 jornais, um em cada dois não chegava a completar um ano de existência. Vários ficaram apenas nos primeiros dois ou três números”, completa o autor.

O que, à primeira vista, parece ser contraditório é, após rápida análise dos fatos, um fator bastante pertinente. Quanto mais aguda e violenta a ditadura se apresentava, mais jornais alternativos surgiam para atacá-la. “O que identificava toda a imprensa alternativa era a contingência do combate político-ideológico à ditadura, na tradição de lutas por mudanças estruturais e de crítica ortodoxa a um capitalismo periférico e ao imperialismo, dos quais a ditadura era visto como uma representação”, diz Kucinski.  

Em meados dos anos de 1970, os jornais alternativos atingem vendagens substanciais e destronam a grande imprensa, assumindo a dianteira no que concerne à quantidade de público-leitor. O padrão alternativo torna-se dominante. De acordo com Kucinski, no seu apogeu, entre os anos de 1975 e 1977, a imprensa alternativa vendia, em média, até 160 mil exemplares semanais.  A política sempre esteve presente em todo esse processo. A simbiose entre os alternativos e a esquerda brasileira era tão pujante que, até entrar em cena o operariado do ABC, já no final da década de 1970, “a história das esquerdas brasileiras praticamente se confunde com a história da imprensa alternativa”, defende o autor. 

A “grande imprensa”, que transigira ao regime e praticava a autocensura como manual de redação, em determinado momento, sai do estado de letargia que ora se encontrava estimulada por um assassinato que assombrou o país. Após a morte do jornalista Vladimir Herzog, nas instalações do DOI-CODI, em 1975, a imprensa convencional reage com indignação. Tem-se, portanto, uma crise da conivência por parte da grande imprensa ao regime. Dessa crise, surgem De Fato e Coojornal. Contudo, pouco tempo depois dessa renascença crítica, a grande imprensa volta à sua hibernação. Concomitantemente, dá-se a diversificação temática e espacial dos alternativos.

É também nesse período, na metade dos anos de 1970, que começam a surgir os alternativos feministas. Numa época em que no país não estavam disseminadas as idéias da contracultura, “o feminismo ainda era tratado com desdém e chacota, inclusive por O Pasquim, que fazia o gênero do jornal machista como parte de sua postura geral ‘anticlasse média moralista’”, relata Kucinski, bem como associava feminismo à frustração sexual. Nesse contexto, a imprensa alternativa feminista travava uma luta espinhosa contra a sociedade brasileira historicamente machista.

Brasil Mulher, o precursor dos alternativos feministas, foi lançado em dezembro de 1975. De forte tendência marxista, via a luta das mulheres como parte da luta de classes. Em seu primeiro editorial, já demonstrava seu viés esquerdista clássico ao dizer que “não há liberdade para a mulher enquanto não houver liberdade para o ser humano”. Outros feministas como Maria Quitéria, Nós Mulheres e Beijo, que, por diversas vezes atacou O Pasquim por sua linha machista, também tiveram relativa visibilidade. Contudo, nenhum supera Mulherio, o mais duradouro e o mais feminista dos jornais feministas, que nasceu já no final do ciclo alternativo, em 1981, e durou quase dez anos, até 1990.

Pegando carona com os alternativos feministas e com o esplendor da imprensa alternativa em idos de 1970, vicejaram no mesmo período os alternativos regionais. No norte, o Bandeira 3, “um jornal basicamente voltado à classe média politizada e com forte vocação ecológica”, salienta Kucinski, e o Resistência, alternativo do PCdoB, ambos de Belém, foram críticos à ditadura, mas não transmitiam com eficácia o caráter regionalista, embora valorizassem as notícias locais e da região. Nasceu em 1977, em Rio Branco, no Acre, Varadouro, “o jornal das selvas”, como se autoproclamava. Este, defende Kucinski, “conseguiu pelo seu aspecto rústico, despojado, por sua estética de artesanato, expressar um ethos amazônico”.  Varadouro era distribuído nos seringais da região. Entre os que se dispunham a fazer o serviço de distribuição estava Chico Mendes.

Os alternativos regionais espalharam-se rapidamente por todo o Brasil. Posição, em Vitória; Uai, em Minas Gerais; Cidade Livre, de Brasília; Bagaço e Flagrante, no Rio; Paraná Repórter e Viver, de Londrina; Contestado, de Santa Catarina; Domingão, em Ribeirão Preto; Invasão e Boca do Inferno, em Salvador, Chapada do Corisco e Jornal do Povo, em Teresina; O Povão, do Recife; Desafio, de Maceió; e Mutirão, em Fortaleza, são alguns poucos das dezenas de alternativos de caráter regional que surgiram naqueles anos.

De acordo com Kucinski, Mutirão, em Fortaleza, fora lançado em 1977 com uma proposta de ser um jornal de base, colocado à disposição da comunidade sem partidarismo de qualquer espécie. Seu intento era ser “um veículo de denúncia das arbitrariedades cometidas contra a população e também um instrumento eficaz de conhecimento da realidade cearense, sempre tão deturpada e mal tratada pela chamada grande imprensa”, relata Kucinski. “De tamanho um pouco menor que o tablóide e ainda composto a quente, ao contrário da maioria dos alternativos, Mutirão tinha mais a imagem de um jornal comercial interiorano do que de um alternativo”, ressalta o autor. O alternativo cearense, que era controlado por uma facção do PCdoB, viveu sob crise permanente, mas ainda assim durou cinco anos, até 1982, com 34 edições.

De acordo com a historiadora Kátia Azevedo, autora de Mutirão: jornal alternativo do Ceará, “a apatia e a falta de compromisso da grande imprensa cearense com certo tipo de informação proporcionaram as condições necessárias” para a fundação do Mutirão.

A autora destaca ainda que “o objetivo do jornal era lutar pela democratização, tentando fazer um trabalho de crítica objetiva e realista à ditadura. Além desse objetivo, o jornal encampou a luta pela anistia, defendendo os presos políticos, a luta pelos direitos humanos e pela convocação da Assembleia Nacional Constituinte”.   

No período que corresponde à fase de abrandamento da censura prévia, nascem os jornais motivados pela campanha da anistia. Campanha esta que também galvaniza os alternativos que já circulavam. Entre os mais relevantes jornais desta fase temos Repórter e Resistência, que juntamente com O Pasquim, seria um dos mais duradouros jornais alternativos. A censura vai perdendo espaço no contexto do processo de distensão política, que começara em 1975, após substancial derrota do partido governista nas eleições de 1974.

Os três últimos periódicos que ainda restavam sob censura prévia em meados de 1978 eram o convencional combativo Tribuna da Imprensa, bem como os alternativos Movimento e O São Paulo. “Em 8 de junho de 1978, um lacônico comunicado do assessor de imprensa do Planalto, coronel Rubem Ludwig, informou que estava extinta a censura prévia ao jornal Tribuna da Imprensa e aos semanários O São Paulo e Movimento”, lembra Aquino. Com o fim, teoricamente, da censura, os alternativos, como que numa espécie de dependência daquela para pulsar e transgredir, vão perdendo espaço e pujança.  

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A série O jornalismo alternativo na ditadura militar é publicada sistematicamente no #siteberro.

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Clique nos links abaixo para acessar os textos anteriores:

I. O contexto sócio-histórico do nascedouro da imprensa alternativa no Brasil

II. A revolução dos “bichos-grilos”: o nascimento da contracultura

III. O movimento dos direitos civis: as lutas feministas e negras

IV. Sexo, drogas e rock’n’roll: o movimento hippie 

V. Arte corajosa nos trópicos

VI. 1968: o ano da rebelião mundial estudantil

VII. O AI-5 e a resistência da imprensa alternativa

VIII. Os jornais alternativos na vanguarda


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