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Inserida na sociedade civil, uma categoria – ou, melhor, parte dela – merece destaque pela coragem com que lutou diante dos abusos e da violência distribuída à revelia pelo regime militar: a classe jornalística independente. Usando de sua arma maior, a palavra escrita, uma parte dos/as jornalistas protagonizou uma guerra ferrenha durante os anos nefastos de governo militar no país.
Foram os/as jornalistas os/as maiores responsáveis, já desde meados da década de 1960 e por todo os anos de 1970, por denunciar as agruras advindas com a ditadura e toda a sua aparelhagem repressora. O Estado brasileiro, militar e autoritário, logicamente se incomodava com aqueles/as profissionais que não tinham medo de encará-lo. E não tardaria em apressar-se a dar-lhes uma resposta. Esta veio com a implantação do AI-5.
A imprensa convencional, que até aquele momento desempenhava o papel de denunciante do autoritarismo militar, não aguentou a pressão dos generais por muito tempo e rendeu-se pouco tempo depois da implantação do ato. Com o AI-5, “a grande imprensa adapta-se rapidamente à nova situação, demitindo seus jornalistas mais combativos e críticos”, diz Bernardo Kucinski, em Jornalistas e revolucionários: nos tempos da imprensa alternativa. Para o autor, a partir da decretação do AI-5, a grande imprensa passa, então, a omitir-se diante de fatos estarrecedores da ditadura, algo impensável pouco tempo antes.
No entanto, alguns veículos da chamada grande imprensa ainda tentaram dar seu último suspiro de intransigência. Diferentemente dos dias atuais, naqueles anos “Veja se destacava com uma cobertura política relativamente crítica e que constrangia o regime”, pontua Kucinski. Em dezembro de 1969, a equipe política do semanário do grupo Abril, sob a chefia de Raimundo Pereira, que mais tarde fundaria Opinião, publicou duas reportagens-bomba em sequência denunciando a tortura de presos políticos e anunciando a preparação de um dossiê para ser entregue ao general Médici. As reportagens renderam notável repercussão na sociedade civil e ira dos militares. Os grandes jornais de circulação nacional abstiveram-se do conflito e deixaram Veja isolada. “No mês seguinte, a equipe teve que sair da revista. Fechava-se o último grande espaço para um jornalismo crítico”, diz o autor.
Desse episódio em diante, vai consolidando-se na “grande imprensa” os projetos jornalísticos voltados à classe média embevecida e extasiada pelo “milagre econômico” dos anos que viriam, como o Jornal da Tarde e a própria Veja, bem como o projeto de uma televisão hegemônica, do grupo Marinho, a Rede Globo.
É nesse contexto de relativa complacência da imprensa convencional que muitos jornalistas resolvem rebelar-se contra aquela ordem estabelecida, omissa e transigente ao aparelho repressor ditatorial. Surgem, dessa forma, jornais que não se emudeciam, não se intimidavam com a violência militar, não se omitiam de denunciar o tolhimento da liberdade. De acordo com Maria Parecido de Aquino, em Censura, imprensa, Estado autoritário, 1968-78: o exercício cotidiano da dominação e da resistência; O Estado de São Paulo e Movimento, esses jornais se pautavam pela abrangência da cobertura dos fatos, por um jornalismo engajado e pela montagem de uma estrutura interna de co-gestão administrativa e funcional, desvencilhando-se, portanto, da cultura empresarial capitalista da grande maioria dos veículos de imprensa. “Seu desejo é o de informar e procurar a verdade, sem fazer disso um negócio”.
Na contramão da grande imprensa que organiza-se em torno dos princípios liberais, de viés lockeano, estruturando-se como uma empresa capitalista, essa nova imprensa que estava surgindo repudiava o lucro. Caracterizava-se por uma postura de desapego aos valores intrínsecos ao capitalismo como ganância, acúmulo de riqueza e visão estritamente voltada à atividade lucrativa.
Kucinski ressalta que “uma notável aversão àquilo que Weber denominou de ‘espírito capitalista’ foi outro traço marcante e denominador comum de todos os jornais ao longo do ciclo alternativo. Era algo que se originava do imaginário mesmo das esquerdas e da juventude da época, na sua oposição geral, não só ao regime militar, mas ao próprio capitalismo. Movia-os, ao contrário, um espírito anticapitalista. Repudiavam o lucro. Toda acumulação era vista como um roubo, identificada com a ‘acumulação primitiva’ referida por Marx”.
O nascedouro da imprensa alternativa
Não há unanimidade entre autores/as que se debruçaram a estudar e escrever sobre a imprensa alternativa no que diz respeito à sua origem no Brasil precisamente. Para Kucinski, ela surge com Pif-Paf, de Millôr Fernandes, em maio de 1964. Já para Aquino, ela começa em junho de 1969, com a primeira edição de O Pasquim.
Contudo, a falta de um parâmetro que delineie com precisão o momento exato do aparecimento desse tipo de imprensa faz com que os/as autores/as, em que pese suas opiniões, não deem-nas como absolutas. “As opiniões relativas à imprensa alternativa são bastante variadas, diversificando-se quanto ao momento de seu aparecimento no Brasil e quanto às características que a definem e a separam do outro tipo de imprensa”, defende Aquino. Estabelecendo parâmetros precisos ou não, tem-se a certeza de que “o que essa imprensa representou não foi substituído por nenhuma das variadas publicações que se sucederam”, continua a autora.
O que se sabe é que a origem da expressão “alternativa” ocorreu nos Estados Unidos, no começo da década de 1960, onde se criaram nos meios de comunicação diversos veículos independentes, numa tentativa de fugir de relações e vínculos comerciais e políticos com o poder estabelecido. Entretanto, nossa imprensa alternativa dos anos 1960 e 1970 carrega particularidades que a diferenciam da praticada nos Estados Unidos e na Europa. Entre as principais diferenças está o caráter de sua dimensão política “como espaço de rearticulação possível de militantes de partidos clandestinos num ambiente ditatorial”, sublinha Kucinski.
É interessante rememorar que o aparecimento em massa dos alternativos no final da década de 1960 e sua popularização nos anos seguintes não foi um despertar inédito em nossa História. Segundo Kucinski, em mais dois momentos da história da nossa imprensa os alternativos surpreenderam.
O primeiro momento com os pasquins (e daí veio o nome do alternativo de mais sucesso na ditadura: O Pasquim), jornais irreverentes e panfletários do período regencial, que atingiu seu ápice em 1830 com cerca de cinqüenta títulos, e o segundo momento com os jornais operários anarquistas de meio século depois (1880- 1920). Nesse sentido, defende o autor, “a imprensa alternativa dos anos de 1970 pode ser vista como sucessora da imprensa panfletária dos pasquins e da imprensa anarquista, na função social de criação de um espaço público reflexo, contra-hegemônico”.
A imprensa alternativa dos anos de 1960 surge, como vimos anteriormente, principalmente da necessidade de ocupar um espaço de crítica e contestação, deixado em estado de vacância pela relativa conivência da grande imprensa com os militares. Kucinski pontua que ela surge da articulação de duas forças compulsivas: “o desejo das esquerdas de protagonizar as transformações que propunham e a busca, por jornalistas e intelectuais, de espaços alternativos à grande imprensa e à universidade”. Segue o autor: “Em contraste com a complacência da grande imprensa para com a ditadura militar, os jornais alternativos cobravam com veemência a restauração da democracia e do respeito aos direitos humanos e faziam a crítica do modelo econômico”. Ao contrário da grande imprensa, “a alternativa não se pretende neutra, assumindo-se a serviço da defesa de interesses de grupos como, por exemplo, partidos, sindicatos, associações, minorias raciais e sexuais, e mesmo entidades religiosas”, evidencia Aquino.
Dessa maneira, já nascem fazendo muito barulho, esperneando, berrando, e, assim, incomodando bastante os militares. Estes, por sua vez, procuravam exercer sua influência direta sobre todos os setores da sociedade, cooptando áreas estratégicas para atuação de seu aparelho repressor, inclusive a imprensa. Os anos que sucederam o aparecimento dos alternativos ficaram marcados por uma guerra entre dois inimigos que se odiavam: de um lado, a imprensa alternativa, do outro, a incansável e bastante presente censura.
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A série O jornalismo alternativo na ditadura militar é publicada sistematicamente no #siteberro.
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Clique nos links abaixo para acessar os textos anteriores:
I. O contexto sócio-histórico do nascedouro da imprensa alternativa no Brasil
II. A revolução dos “bichos-grilos”: o nascimento da contracultura
III. O movimento dos direitos civis: as lutas feministas e negras
IV. Sexo, drogas e rock’n’roll: o movimento hippie
VI. 1968: o ano da rebelião mundial estudantil
VII. O AI-5 e a resistência da imprensa alternativa