O impeachment e a política: por trás das aparências, decantam as mesmas práticas



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Enquanto a militância chorava o seu impedimento, Dilma “jogava” a política real no Senado (Foto: Agência Senado)

Por Artur Pires

artur@revistaberro.com

“Sob as oposições espetaculares esconde-se a unidade da miséria. A contradição oficial se apresenta como a luta de poderes que são partes da unidade real”.  (Guy Debord, A sociedade do espetáculo)

I

Dilma foi impedida de governar. A agora ex-presidenta e seu partido viram ruir um castelo outrora sustentado por alianças com setores extremamente conservadores da política nacional. Essa não é uma informação irrelevante; na verdade, ela explica quase tudo do que virá a ser discutido nesse texto: Dilma – assim como seu antecessor Lula, e o antecessor deste, FHC, e por aí vai… – governou em parceria umbilical com segmentos historicamente reacionários da sociedade brasileira: as elites industrial, fundiária e empresarial, e o fundamentalismo religioso.

Primeiramente, é pedagógico relembrar alguns dos ex-ministros e ex-ministras da Era Dilma (2011-2016): Kátia Abreu, aquela que disse que “não existem latifúndios no Brasil”; Armando Monteiro, ex-presidente da Confederação Nacional da Indústria (CNI); Eliseu Padilha (Casa Civil), o atual braço-direito de Temer; Paulo Bernardo, que segundo o Ministério Público Federal era o “patrono” de organização criminosa que desviou mais de R$ 100 milhões do erário; Joaquim Levy, um economista de ideias neoliberais; Henrique Alves, também envolvido até o pescoço com delações que o ligam a recebimento de propinas milionárias; Afif Domingos, Gilberto Kassab, Eduardo Braga, Helder Barbalho, Cid Gomes, Edison Lobão, Garibaldi Alves, etc. (Se a leitora e o leitor se interessarem para saber quem são esses personagens, recomendo uma rápida busca no google com os nomes desses ex-ministros de Dilma ao lado da palavra “corrupção”).

Ademais, houve também as alianças em “nome da governabilidade” com Sarney, Renan Calheiros, Collor, Jader Barbalho, Temer (esse era o seu vice, foi inscrito na mesma chapa presidencial, é bom não esquecer), a família Gomes, Paulo Maluf, entre outros. A montagem de ministérios baseada em chantagens partidárias e a prática do fisiologismo – tão comuns nas Eras FHC, Lula e Dilma – não estão separados do modo de governar. Dilma e Temer governam de maneira diferente? Se essa questão for observada a partir da análise do discurso e da performance de tribuna de ambos, pode-se, a priori, dizer que sim, que são água e óleo. Mas, observando a essencialidade da atuação prática, vê-se que o discurso fabricado por marqueteiros profissionais e as encenações performáticas populistas funcionam como meros cosméticos superficiais, palavras inócuas lançadas ao vento…

Na real politik, aquela que é tramada nos gabinetes, nas salas de reunião, nos conchavos a quatro paredes, e que resvala diretamente na vida das pessoas, ambos, Dilma e Temer, jogam o mesmo jogo, operam com as mesmas cartas na manga, governam sob o mesmo modus operandi, servem à mesma não-vida da política convencional. Vamos a alguns bons fatos que comprovam a assertiva.

Estelionato eleitoral

Na campanha para a reeleição em 2014, Dilma prometeu mundos e fundos. Mas as ações práticas ocorreram de forma inversa às promessas:

a) Ao contrário da promessa de conter a inflação e não elevar a taxa básica de juros,houve galopante inflação (quem mais sofre seus efeitos é a população desprivilegiada economicamente, por exemplo, ao comprar a cesta básica), seguida de uma ortodoxa elevação da taxa básica de juros: de 10, 9%, em outubro de 2014, quando foi reeleita, para 14,25%, quando deixou a presidência. A elevação da taxa básica de juros incide diretamente no endividamento das pessoas comuns, pois elevam-se ainda mais as tarifas que os bancos e financeiras sugam da população.

b) Ao contrário da promessa de “reduzir a conta de luz de todos os brasileiros e brasileiras”, houve, de acordo com o IBGE, aumento de 44,75%na energia elétrica. Novamente, quem mais sofre com esse aumento abusivo é a população economicamente vulnerável.

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(Ilustração: Pawel Kuczynski)

c) Ao contrário da promessa de não aumentar impostos,houve aumento nos impostos incidentes sobre gasolina e álcool, o Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) dobrou de 1,5% para 3% para pessoas físicas, o PIS/Confins saltou de 9,25% para 11,75%, e antes de ser afastada, a equipe econômica de Dilma fazia estudos para, pasmem!, tributar a internet. Em contrapartida ao aumento de impostos para a classe trabalhadora, o governo Dilma, nos anos 2014 e 2015, reduziu cerca de R$ 94 bilhões de impostos às empresas, além de dar subsídios a estas via BB e BNDES.

d) Ao contrário da promessa de assegurar direitos trabalhistas, passados apenas 60 dias após vencer a eleição, o governo Dilma aprovou um corte de R$ 18 bilhões em benefícios, no que o governo chamou de “flexibilização” da CLT. Na “flexibilização” de Dilma, aumentou-se de um para seis meses o tempo de trabalho para requerer o seguro-desemprego; reduziu-se os meses de seguro-desemprego recebidos; colocou-se maiores restrições na requisição de pensão por morte; legalizou-se a redução de salários pela primeira vez na história desde que a CLT foi implementada; além do corte em benefícios previdenciários. Enfim, nada muito diferente da chamada “modernização” das leis trabalhistas que Temer pretende implementar. Mas parece que a memória da esquerda institucional é seletiva.

e) Ao contrário da promessa de não cortar investimentos em áreas essenciais, na Educação houve cortes de R$ 10,5 bilhões em 2015 e R$ 6,5 bilhões em 2016 (quando ainda exercia a presidência), que somados resultam em R$ 17 bilhões retirados dos investimentos em educação em um ano e meio. Na Saúde, cortes volumosos na mesma medida: R$ 11,7 bilhões em 2015 e R$ 4,8 bilhões em 2016 (quando ainda exercia a presidência), que somados atingem R$ 16, 5 bilhões de cortes nos investimentos em saúde em um ano e meio. Enfim, nada muito diferente dos cortes que Temer tem adotado. Mas, reitero, parece que a memória da esquerda institucional é seletiva.

Em suma, Dilma praticou estelionato eleitoral com suas/seus eleitoras/es. Infelizmente, no Brasil não há tipificações criminais previstas para políticos/as que praticam estelionato contra seu eleitorado. Isso quer dizer que o/a político/a pode mentir descaradamente durante a campanha eleitoral, prometer coisas que não vai cumprir e nada lhe acontecerá. Dilma mentiu nos debates à reeleição, assim como mentiram Aécio, Marina e demais. O que Dilma não esperava era que fosse ser apanhada na Lei de Responsabilidade Fiscal, uma vez que seus antecessores FHC e Lula também praticaram as mesmas manobras fiscais e nada lhes ocorreu. Ao contrário do seu julgamento no Senado, quando negou, em meados de 2015 o governo Dilma, na figura do então advogado-geral da União, Luís Inácio Adams, admitiu que as tais “pedaladas” ocorreram, mas em “períodos curtos”. Um levantamento estatístico da plataforma multimídia Aos Fatos calculou que não foram poucas vezes nem em períodos curtos que o governo Dilma realizou estas manobras fiscais, mas que a petista “pedalou” 35 vezes mais que FHC e Lula juntos. O julgamento foi claramente político, é verdade, mas se apoiou juridicamente nesse imenso deslize da ex-presidenta. Ao contrário do que grupos petistas disseram, de que as manobras eram para garantir recursos para os programas sociais, a maioria (54,4%) dos recursos oriundos das “pedaladas” subsidiou grandes empresas por meio do Programa de Sustentação do Investimento (PSI) do BNDES, e foi usada para emprestar a empresas do agronegócio, por meio do Banco do Brasil.

Para completar o enredo da tramoia, no fim do processo de impedimento, no afã por poder, Dilma e sua tropa de choque costuraram com Renan Calheiros um mafioso acordo para preservar sua elegibilidade, abrindo brechas regimentais que podem salvaguardar o deputado Eduardo Cunha, que assim como Dilma pode perder o mandato, mas conservar os direitos políticos. Os “interesses” do povo brasileiro passaram longe dessa negociata escusa.

 

II

Práticas de um governo de “direita”

Apresentei acima algumas ações políticas realizadas no governo Dilma que a aproximam das praticadas por partidos como PSDB, PMDB, DEM, entre outros. Cortes de dezenas de bilhões de reais em áreas como saúde e educação, retirada de direitos trabalhistas históricos, aumento abusivo da taxa básica de juros e da energia elétrica, clientelismo, suborno parlamentar (as alianças em “nome da governabilidade”), negociatas com as elites econômicas e políticas… Não é pouca coisa. Mas ainda tem mais. Muito mais.

Ajuste fiscal para pagar banqueiros e outros especuladores financeiros

Dívida BrasilO tal ajuste fiscal de Dilma cortou em áreas essenciais, como Educação, Saúde, Transportes, mas teve imensa benevolência com o pagamento da dívida pública, pagamento este que é feito em grande medida (cerca de 80%) ao capital financeiro: bancos nacionais e internacionais, investidores estrangeiros (entenda-se especuladores), seguradoras e fundos de investimentos. Por exemplo, no ano passado, o governo destinou R$ 962 bilhões para os gastos com a dívida pública, quase a metade de todo o orçamento (42%). Enfatizo: por volta de 80% desses R$ 962 bilhões foram para as mãos de banqueiros, donos de seguradoras e especuladores financeiros (não à toa nos governos petistas os bancos esbanjaram seguidas vezes recordes de lucros). Uma pequena parte (em torno de 15% a 20%) vai para os fundos de pensão e para o pagamento do FGTS, FAT e outros fundos administrados pelo governo. A ex-auditora da Receita Federal, Maria Lucia Fattorelli, uma das principais vozes a favor da auditoria da dívida, diz que “a dívida pública é um mega esquema de corrupção institucionalizado”. O governo do PT teve 13 anos e meio para tacar o dedo na ferida desse “mega esquema de corrupção”. Não só não o fez, como em janeiro de 2016 Dilma vetou texto aprovado em dezembro de 2015 no Congresso Nacional, que estabelecia a realização de uma auditoria da dívida pública. Quais os interesses que moveram a ex-presidenta a vetar tão importante medida? Não seria de “interesse do povo brasileiro” uma auditoria da dívida pública?

As Leis de Dilma: da Copa, das Olimpíadas, Antiterrorismo e de Organizações Criminosas

Você lembra da Lei Geral da Copa? Essa lei, sancionada pela ex-presidenta em seu primeiro mandato, violou inúmeros direitos humanos. Entre suas piores consequências, abriu brechas jurídicas que garantiram a remoção arbitrária de dezenas de milhares de famílias de suas casas para a construção de estádios, alargamento de avenidas, e obras de infraestrutura, bem como no dias de jogos cerceou o direito de ir e vir de pessoas que moravam próximas às arenas. Processo semelhante em relação às remoções de milhares de família e ao cerceamento do livre direito de ir e vir ocorreu com a Lei Geral das Olimpíadas, sancionada também pela ex-mandatária.

Ademais, na Copa das Confederações, em 2013, e na Copa do Mundo, em 2014, o Governo Federal, em apoio às polícias estaduais, encaminhou a Força Nacional de Segurança e o Exército para reprimir violentamente qualquer manifestação, bem como orientou a Polícia Federal a espionar e prender manifestantes que se opuseram à Copa do Mundo e foram às ruas nas manifestações de junho e julho de 2013. Foi uma caça às bruxas! Quem viveu aquela época nas ruas, sabe que aquilo foi um estado arbitrário de exceção, próprio de regimes ditatoriais e fascistas. Temer agora faz a mesma coisa com as manifestações contra seu governo. Mas àquela época era Dilma quem dava as ordens à Força Nacional de Segurança, à PF e ao Exército.

Dilma também aprovou a Lei Antiterrorismo, com alguns vetos, mas sem atacar decisivamente a vaga conceituação do que é “terrorismo” na lei, abrindo precedentes para interpretações judiciais as mais diversas, como aquelas que estigmatizam manifestações, ocupações de terra, etc., ou seja, criminalizam táticas usadas pelos movimentos sociais para reivindicar direitos. Por que Dilma não vetou integralmente a lei? Antes, em 2013, ela tinha sancionado a Lei de Organizações Criminosas, que foi a responsável pela prisão de militantes do MST em agosto desse ano.

Guerra às drogas e encarceramento em massa

De acordo com estudo do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), vinculado ao Ministério da Justiça, nos últimos 14 anos a população carcerária no Brasil aumentou 267%, totalizando atualmente cerca de 622 mil pessoas presas: a quarta maior população carcerária do mundo. As penitenciárias brasileiras são superlotadas e há um déficit de 250 mil vagas. As condições de vida nesses presídios são aterradoras, miseráveis, desumanas. A maioria é composta por jovens negros e pobres. Cerca de 28% das pessoas presas estão enquadradas na lei de drogas atual. Os governos petistas tiveram 13 anos e meio para ousar mudar essa realidade. Deitaram-se eternamente em berço esplêndido e fingiram que a “guerra” não era com eles/as. Quer dizer, escolheram seu lado na “guerra” ao colocarem o Exército nas favelas cariocas para reprimir populações estigmatizadas, usando o álibi fajuto de “acabar com o tráfico”. Ademais, o governo Dilma iniciou a privatização dos presídios brasileiros, como se mudar a gestão de pública para privada desses campos de concentração fosse a solução engenhosa para tão profundo gargalo histórico.

Demarcação de terras indígenas e a complacência com o agronegócio e a mineração

Em relação às terras indígenas, Dilma foi quem menos demarcou desde a redemocratização. Isso mesmo: FHC, Collor, Sarney e Itamar, políticos de “direita”, demarcaram mais que a ex-presidenta, que não quis mexer nessa seara porque muitas demarcações que precisam ser declaradas e homologadas estão em áreas tomadas pelo agronegócio ou pela mineração. A ex-presidenta fugiu da briga contra o grande capital como o diabo foge da cruz, com o perdão do clichê. Aqui cabe dizer que o PT teve 13 anos e meio – e contou por muito tempo com maioria absoluta na Câmara e no Senado para aprovar suas propostas – para fazer uma reforma agrária que radicalmente rompesse com a absurda concentração fundiária brasileira, cuja origem remete às capitanias hereditárias do período colonial. Mas nem Lula tampouco Dilma levaram à frente essa empreitada. Por quê? A resposta pode revelar muita coisa. Na verdade, nos governos petistas, como nos demais, prevaleceu o ataque ao meio ambiente (lembra do Código da Motosserra, ops, Código Florestal?), como a construção de Belo Monte em meio a áreas indígenas e o aumento exponencial do uso de agrotóxico na agricultura.

Onde está a taxação das grandes fortunas?

Por oportuno, vale dizer também que os governos petistas tiveram 13 anos e meio para promover uma reforma tributária que transformasse e invertesse completamente a lógica da tributação no Brasil, onde absurdamente quem menos ganha é proporcionalmente quem mais paga tributo. Tiveram mais de uma década para taxar grandes fortunas, aí de maneira oportunista Dilma falou em taxação de grandes fortunas na sua defesa no Senado. E por que não fez em cinco anos e meio?, inclusive quando tinha ampla maioria no Congresso? A resposta, mais uma vez, revela muita coisa encoberta pelo discurso fabricado por marqueteiros.

Apoio aos grandes meios de comunicação

TV = arma de destruição em massa!A mesma lógica vale para uma reforma nos meios de comunicação que propiciasse uma pluralidade de vozes e de cobertura midiática. Não fizeram em 13 anos e meio. Mas não só: se prepare, leitora e leitor, para não cair da cadeira. De que adianta bradar contra a grande mídia, como Lula e Dilma tanto fazem, quando 70% da verba publicitária do Governo Federal é aplicada nos maiores grupos comunicacionais do país, como Globo, Record, SBT, Abril (que edita Veja), Folha de São Paulo, O Estado de São Paulo, O Globo, etc.? Só a Globo abocanhou quase a metade (R$ 6,2 bilhões) dos R$ 13,9 bilhões de publicidade federal destinados para a televisão nos governos Lula (2003-2010) e no primeiro mandato de Dilma (2011-2014). No mesmo período analisado, na categoria de impressos, o jornal O Globo faturou R$ 213 milhões, a Folha R$ 199 milhões, R$ 186 milhões foram para o Estadão e R$ 130 milhões para o Valor Econômico. Apenas esses quatro veículos faturaram cerca de 35% de toda a verba destinada a impressos. No segmento de revistas semanais, Veja liderou a “mesada” com R$ 370 milhões recebidos nas gestões Lula e Dilma, mais do que o dobro da segunda colocada, a revista Época (R$ 168 milhões). Desse modo, a verborragia de Lula e Dilma contra a “grande mídia” seria uma mera encenação performática?

Dilma: a campeã em privatizações e concessões

Outra ação prática que iguala o governo de Dilma ao de qualquer outro neoliberal foi a escancarada abertura ao capital privado. Recentemente, Temer falou em “privatizar tudo o que for possível”. A esquerda institucional se estrebuchou, se apegando a frases como essa pra dizer: “tá vendo como são diferentes?”. Nenhuma novidade a sanha de Temer por privatização. A diferença é que ele fala abertamente sobre suas práticas conservadoras e neoliberais. Dilma não. A ex-presidenta tentava passar uma imagem de estatista construída por um discurso contra privatizações, mas na prática foi quem mais privatizou em toda a história republicana brasileira. Vamos aos fatos:

a) Dilma vendeu R$ 15 bilhões de blocos do pré-sal a investidores estrangeiros;

b) R$ 160 bilhões em ativos da Petrobras;

c) vendeu a empresas envolvidas na Lava-Jato quatro aeroportos (Viracopos, Brasília, Guarulhos e Galeão) por R$ 45,3 bilhões e colocou mais quatro à venda (os de Fortaleza, Florianópolis, Salvador e Porto Alegre);

d) bem como vendeu, por concessão, 29 hidrelétricas por R$ 17 bilhões.

e) Ademais, em junho de 2015, Dilma anunciou pacote de R$ 198 bilhões em concessões à iniciativa privada de ferrovias (R$ 86 bilhões), rodovias (R$ 66 bilhões), portos (R$ 37 bilhões) e os quatro aeroportos supracitados (R$ 9 bilhões). O pacote de concessões foi elogiado pela revista de ultradireita Veja como um necessário “choque de capitalismo”.

“Nunca na História desse país” tantas privatizações e concessões à iniciativa privada ocorreram, nem com FHC. Temer deve continuar a marcha de privatizações. Mas que a memória da esquerda institucional não seja seletiva.

 

III

As “conquistas” sociais e o marketing de convencimento

Os programas sociais adotados no governo Lula, que foram reproduzidos por Dilma, são a grande arma da qual se vale o petismo para se diferenciar dos governos de “direita”. Aqui cabem algumas contextualizações históricas e geopolíticas para entender a ascensão desses programas com tanto vigor a partir do início dos anos 2000. Após as crises que atingiram países da periferia entre meados dos anos 1990 ao início dos 2000, como a do México em 1994; do leste asiático (Coréia do Sul, Hong Kong, Taiwan, Cingapura, Tailândia, Indonésia, Malásia) em 1997; da Rússia em 1998; do Brasil em 1999; da Turquia em 2000; e da Argentina em 2001, os países em desenvolvimento então começaram a apresentar taxas exponenciais de crescimento econômico, em consonância com a disseminação do neoliberalismo nessas nações (que trouxe mais acesso ao crédito, a bens e a serviços, fazendo girar a economia capitalista). É no esteio dessa guinada do capitalismo financeiro à periferia do sistema que a alavancagem das políticas sociais no Brasil precisa ser entendida, principalmente no que diz respeito a um maior acesso ao crédito bancário, assim como a serviços – como o ingresso em universidades, cursos técnicos e tecnológicos e a adesão a planos de saúde privados – bem como ao acesso a bens, como a aquisição de automóveis, aparelhos  eletrônicos e moradias via programas habitacionais. Todas essas “conquistas” sociais são projetos elaborados pelo capitalismo financeiro, que opera “conquistas” semelhantes, em maior ou menor grau, na China, na Índia, na África do Sul, na Indonésia, no México, na Tailândia, entre outros países periféricos na geopolítica mundial.

Programas de transferência de renda: uma teoria liberal conservadora

Para abordar esses programas, recorro ao que já escrevi sobre o tema: “para falar do Bolsa Família, é interessante entender como surgiu a teoria dos programas de transferência de renda. Ainda na década de 50 do século passado, economistas liberais da Escola de Economia de Chicago, adeptos do livre mercado, como Friedrich Hayek e Milton Friedman, defendiam transferência de renda para as populações excluídas do processo socioeconômico. ‘Existem perdedores. Eles são pobres porque são perdedores e é claro que o Estado não pode ser insensível a isso. Como resolver a questão da pobreza? Oferecendo bolsas para alívio da pobreza, não direito social organizado em torno do trabalho’, dizia Hayek, já naquela época. No início dos anos 1990, o Banco Mundial então orienta os países em desenvolvimento a adotarem programas de transferência de renda para mitigar a pobreza. Com isso, dizia o banco, poderia-se identificar, quantificar e qualificar as/os pobres a partir de cadastros nacionais. Para os banqueiros e teóricos liberais, as bolsas de renda justificavam-se como forma de ter o ‘cadastro’ e ‘identificar’ as populações marginalizadas para domesticar qualquer possível revolta devido à miséria. Portanto, pasmem!, na raiz de programas de transferência de renda, como o Bolsa Família, estão teorias liberais, intrinsecamente capitalistas.

O PSDB foi o primeiro a criar programas de transferência de renda no Brasil. Com os tucanos, surgiram cerca de 12 programas desse tipo, com destaque para Bolsa Alimentação, Bolsa Escola, Auxílio Gás, Brasil Jovem, entre outros. Ao fim do governo FHC, em 31 de dezembro de 2002, cerca de 20 milhões de brasileiras/os eram atendidas/os por políticas assistencialistas. O Bolsa Família, no governo petista, foi a unificação de todos os programas do governo tucano em um só. Em 13 anos e meio no poder, o PT ampliou o cadastro de beneficiárias/os para cerca de 50 milhões. O Bolsa Família, em que pese ter na sua gênese teorias capitalistas e ser um programa paliativo, é atualmente imprescindível, uma vez que leva uma renda mínima a dezenas de milhões de pessoas. Mas, por ser fruto de teses liberais, esconde por trás da aparente benevolência sua face oculta, ou seja, a lógica totalitária de dominação e controle social, uma vez que não liberta, pelo contrário, vigia ainda mais uma grande massa de pessoas cujo principal anseio é não voltar a passar fome. Por tal motivo, é usado escancaradamente para fins eleitoreiros”. Assim, programas de transferência de renda, como o Bolsa Família, são adotados em outros países periféricos, pois é uma demanda do capitalismo para as nações emergentes. Ou seja: não é uma política revolucionária ou exclusiva dos governos brasileiros. E certamente não será abandonada num governo conservador como o de Temer. Por atender a teorizações neoliberais, o programa será ampliado e obviamente usado como barganha eleitoral.

Acesso a serviços educacionais e mercantilização da educação

Outra questão cara à esquerda institucional é o ingresso de pessoas pobres no ensino superior. Mais uma vez essa discussão não está apartada das nuanças que envolvem objetivamente o capitalismo financeiro internacional, que atua em rede e hoje opera em diversas nações emergentes. É importante entender que nessa sua nova fase o modo de produção capitalista se expande aos países “em desenvolvimento” – como o Brasil – e, agora, requer quadros técnicos, quanto mais atomizados melhor, para sua tarefa de manter o macrossistema em pleno funcionamento. Daí o programa federal Pronatec (Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego) e as escolas profissionalizantes. Com os países centrais em crise financeira na primeira década do século XXI, o capitalismo não podia parar de se expandir, e então criou milhões de novas vagas nos mercados da periferia do sistema – e preencheu-os com “colaboradores” com especialidades em funções eminentemente técnicas. Assim, a grande maioria da classe trabalhadora labuta oito horas diárias e gasta em média de duas a três horas por dia nos trajetos casa-trabalho-casa, e quando retorna ao lar ainda precisa fazer as tarefas domésticas (preparar a janta, etc.). Não sobra (quase) nada para viver! O mercado de trabalho moderno conseguiu a proeza de dar uma roupagem fetichista (“emprego de carteira assinada”) à escravidão! Você nunca se perguntou por que programas similares ao Pronatec são tão reverenciados por políticos neoliberais?

Quanto às vagas “superiores”, é inegável que nas universidades públicas houve uma mudança infraestrutural em relação ao sucateamento dos períodos Collor, Itamar e FHC, bem como se aumentou a quantidade de bolsas de graduação e pós-graduação. Foram construídas universidades e institutos federais em cidades interioranas, descentralizando o ensino superior federal. Isso é louvável. Todavia, a matemática é simples: com uma arrecadação de impostos que bateu recordes em anos seguidos, o Executivo esbanjava dinheiro em caixa. E ainda não fez sua obrigação básica, porque mesmo com vultosos recursos orçamentários não despejou 10% do PIB na Educação! Na verdade, segundo estudo da Fundação Getúlio Vargas (FGV), os governos petistas, proporcionalmente (em relação ao PIB),  gastaram menos do que FHC em Educação, Saúde e outras áreas sociais. Sobre isto, a pesquisa das sociólogas Alba Pinho de Carvalho e Eliana Guerra, O Brasil no século XXI nos circuitos da crise do capital: o modelo brasileiro de ajuste no foco da crítica, aprofunda bem melhor a questão. Contudo, vale dizer que a bonança econômica brasileira da década passada não está separada do boom das economias capitalistas emergentes: os BRICS vivenciaram conjuntamente esse mesmo processo. É bem diferente, por exemplo, do período de vacas magras dos anos 1990, período de sucessivas crises nos mercados periféricos. Não estou eximindo de responsabilidade os presidentes do decênio 1990, que para mim foram deploráveis, só estou pontuando que com muito dinheiro em caixa fica mais fácil realizar obras físicas, de cimento, areia e brita.

educacao_mercadoriaPor outro lado, a maioria absoluta das novas vagas no ensino superior surgiu no mercado privado, em faculdades e universidades particulares, via mensalidades “populares” e programas de financiamento estudantil, como o FIES. Funciona assim: o governo financia a classe estudantil a juros modestos (boa parte desses juros irá para banqueiros por meio do pagamento da dívida pública), e esta financia o capital privado, fazendo girar a roda da economia financeira moderna. E aí pululam em todas as esquinas faculdades caça-níqueis. A educação no Brasil passa por notório processo de mercadorização. Entendeu por que Lula e Dilma não estão revolucionando com essas supostas “conquistas” educacionais? Só estão seguindo o fluxo econômico esperado pela “modernização” nos países periféricos. Nesse sentido, pode apostar que o ingresso no ensino superior continuará aumentando, mesmo com governos ditos conservadores. Em verdade, o Brasil vive hoje, sem chance de retrocesso, um processo historicamente anacrônico de universalização do ensino superior aliado à captura da educação pelo setor privado, processo este que já foi vivenciado pelos países centrais (Estados Unidos, Canadá, Reino Unido, França, Alemanha, Itália e Japão) entre as décadas de 1950 e 1970.

Obviamente não há como ser contrário à universalização do ensino. Não é essa a crítica aqui. Mas devemos indagar: que ensino é esse? Ele realmente está preparando uma transformação para as próximas décadas ou assenta-se na petrificação de um modelo autômato, alienante e puramente mercadológico? Não haverá revolução social no Brasil enquanto a educação, seja ela de base ou superior, não for profundamente transformada em sua essência. Hoje, seja nas escolas, faculdades técnicas e nas universidades (com louváveis exceções em alguns cursos de humanas!), o sistema educacional é encarado como mero depositário de conteúdos atomizados. Para verdadeiramente transformar, já diziam mestres como Paulo Freire e Rubem Alves, a educação precisa funcionar como ferramenta que galvanize o pensamento reflexivo, que estimule a tomada de conscientização. O Brasil ainda espera por esse dia…

Saúde como mercadoria e subfinanciamento do SUS

saúde_mercadoriaAinda em relação ao acesso a serviços, é mister ressaltar o exponencial crescimento dos planos de saúde privados. Nos últimos 15 anos pipocaram modalidades “populares” no mercado privado de saúde no Brasil, estimuladas pelo Governo Federal. De 2002 a 2014, foram 12 anos ininterruptos de crescimento do mercado de planos de saúde privados no país. Nos últimos dois anos (2015 e 2016/até junho) houve pequena queda, numa relação direta com o aumento do desemprego. Ainda assim, de 2006 a 2016, o mercado privado de saúde no Brasil abocanhou cerca de 11 milhões e 200 mil pessoas. Imagine os bilhões de reais injetados no mercado financeiro via planos de saúde privados. Não vou nem me aprofundar em relação ao péssimo serviço ofertado por essas operadoras de saúde. Podemos dizer que o acesso a serviços de saúde privados é uma “conquista” social? Se não, por que o acesso a serviços privados de educação é considerado uma “conquista”? É indiscutível, portanto, que a universalização do acesso à saúde e à educação no Brasil tem se dado, majoritariamente, por meio da iniciativa privada, justificando a tese de que não são “conquistas” sociais no sentido marqueteiro, mas causalidades e fenômenos concernentes ao fluxo lucrativo do mercado financeiro mundial.

O SUS, por exemplo, teve aumento de investimentos em relação à década de 1990: a lógica aqui é a mesma para o investimento em educação: com o aumento da arrecadação de impostos sobrou mais dinheiro em caixa. Ainda assim esse investimento nunca chegou perto de atingir os 10% do PIB, luta histórica dos movimentos sociais. E mais uma vez reitero: proporcionalmente (em relação ao PIB), gastou-se menos em Saúde do que na Era FHC, ao contrário do que o marketing faz crer. No último ano e meio de governo Dilma, houve cortes orçamentários de R$ 16,5 bilhões na Saúde. Outra manobra do governo Dilma que é contraditória ao seu discurso estatista foi abrir o mercado nacional para seguradoras estrangeiras. Agora, prepare-se para o maior absurdo: entre as dez maiores economias do mundo, somente Brasil e Estados Unidos gastam mais do seu orçamento em Saúde no setor privado que no público. A Frente Nacional contra a Privatização da Saúde, após estudos realizados em 2013, chegou aos seguintes números:

a) De 2008 a 2012, 57% dos recursos do SUS para procedimentos hospitalares de média e alta complexidade foram investidos na rede privada (filantrópica), contra 43% na rede pública.

b) Na década passada (2001-2010), 74,5% das internações realizadas no setor privado foram custeadas pelo SUS.

c) Atualmente, 55% dos gastos públicos na Saúde são utilizados para pagar a rede privada contratada.

Recentemente, a esquerda institucional estrebuchou-se quando o atual ministro da Saúde de Temer, Ricardo Barros, disse que estava estudando criar um plano de saúde popular para “desafogar o SUS”. Ora, como supraexposto, esse precedente foi aberto no governo Dilma, ao inverter as prioridades e investir a maior parte do orçamento da Saúde no setor privado. A ideia da equipe de Temer é condenável, mas representa tão somente a continuidade de uma política que já vinha sendo implementada em Dilma. É preciso pôr em xeque essa indignação seletiva e maniqueísta. A crítica precisa ser mais profunda e abrangente, fugindo às falsas oposições, para então poder enxergar mais longe e por trás das aparências discursivas e performáticas. Portanto, em que pese investir pesadamente em marketing no “Mais Médicos”, este programa paliativo e barato só acoberta superficialmente o modus operandi dos últimos governos Lula e Dilma: subfinanciamento do SUS e mercantilização da saúde. Nada muito diferente do que faria um governo neoliberal, não é mesmo?

Transformação social ou miséria moral?

consumismoIII
Dignidade é consumir?

Se o acesso a serviços é essencial para a reprodução contínua e cumulativa das condições objetivas do capital para render mais capital, o acesso a bens tem a mesma importância nesse jogo. Não à toa Lula se orgulhava em dizer que tinha gerado 30 milhões de “consumidores”. Nunca foram vendidos tantos eletrodomésticos, eletrônicos e automóveis (motos incluídas) no país quanto nos governos Lula – principalmente – e Dilma. A população antes excluída da lógica do consumo de bens materiais foi lançada a ele, sem uma mediação reflexiva vinda de nenhuma parte (nem do governo, nem do terceiro setor, tampouco da academia – que tem severas dificuldades em chegar às comunidades). Assim, não foi dignidade social o grande legado desse processo, mas um aumento exacerbado do consumismo e da dinâmica de descartabilidade da mercadoria. Essa junção (consumismo + descartabilidade) opera como a pedra filosofal do capitalismo financeiro do século XXI. Será mesmo que essa era a única maneira de levar dignidade e, vá lá, cidadania (mesmo com as profundas ressalvas que tenho com esse termo) às populações marginalizadas? O acesso a bens materiais e simbólicos não poderia ter sido facilitado de um modo que fugisse aos padrões da sociedade do consumo? Dar dignidade a alguém é dar-lhe poder de consumo?

Nas favelas aonde ando há 16 anos, percebi que a parte interna das casas mudou, com televisões novas, geladeiras, fogões, celulares modernos. Algumas até trocaram a taipa ou o madeirite por alvenaria, mas o esgoto continua escoando na frente das calçadas, no posto de saúde faltam profissionais e medicamentos, e as oportunidades de vida continuam as mesmas de vinte anos atrás: os rapazes “escolhem” majoritariamente entre ser servente de pedreiro, trocador de ônibus, frentista, empacotador de supermercado ou “criminoso”; as moças entre ser diarista, empregada doméstica, empacotadora de supermercado, trocadora de ônibus… Que “transformação na vida das pessoas” foi essa? Não seria a miséria moral do consumismo tão nociva à emancipação humana quanto a miséria material?

Os programas habitacionais e sua relação com o capital imobiliário

Ainda com relação ao acesso a bens protagonizado pelos governos Dilma e Lula, o Minha Casa, Minha Vida (MCMV) é a “menina dos olhos”.  Já falei sobre o assunto na 4ª edição da Berro (Minha Casa, Minha Vida: nem tudo o que parece é). A despeito de facilitar o acesso à moradia para famílias economicamente vulneráveis, o MCMV produz isolamento socioespacial e lucros vultosos às empreiteiras. A arquiteta e professora da Universidade de São Paulo (USP) Beatriz Rufino, em colaboração para a revista Berro, disse que “o programa segue o receituário das políticas neoliberais, onde o Estado define como sua tarefa o papel de retirar os entraves burocráticos e criar condições necessárias para atrair o setor privado para atuar na execução da produção de casas”. O geógrafo e professor da Universidade Federal do Ceará (UFC) José Borzacchiello, pontua, na mesma reportagem para a Berro, que o MCMV “afasta cada vez mais o cidadão de seu local de trabalho. Esse consorciamento junta proprietários de terra e grandes incorporadores. A resposta espacial desse processo é a aceleração da especulação imobiliária e o distanciamento da população mais pobre dos centros tradicionais”.

moradias
O déficit habitacional brasileiro cresceu nos últimos 10 anos (Foto: Anderson Barbosa)

Dessa forma, o MCMV é uma solução engenhosa do capitalismo imobiliário para atrair segmentos antes inexplorados e inalcançados pelo mercado: é a moradia sendo transformada em mercadoria, despojada de sua função social. Programas habitacionais como o MCMV ocorrem hoje em outros países periféricos, como México, Colômbia, Venezuela, África do Sul, China, Índia, Indonésia, etc. Em suma, seus efeitos diretos foram o aquecimento do mercado da construção civil – favorecendo grandes empreiteiras – e a disseminação de um processo perverso de especulação imobiliária nas principais cidades brasileiras, que afastou as populações estigmatizadas das áreas centrais. Ok, cerca de três milhões de moradias foram entregues, mas as famílias com renda entre zero e três salários mínimos, que representam 85% do déficit habitacional, são as menos atendidas pelo programa, ao passo que aquelas com rendimentos entre três e dez salários mínimos, que somam apenas 15% do déficit de habitação, são as mais atendidas. Nesse ínterim, o déficit habitacional brasileiro, ao contrário do que se pode imaginar, só cresceu.

Vale uma contextualização histórica aqui: as políticas habitacionais que aliam o estímulo ao capital imobiliário junto à higienização social (ou seja, o processo que empurra populações marginalizadas para áreas distantes dos equipamentos infraestruturais da cidade) foram inicialmente adotadas por França e Inglaterra ainda no final do século XIX. Nos anos 1930, os Estados Unidos usaram a estratégia de construir conjuntos habitacionais como uma das soluções encomendadas pelo mercado para sair da crise de 1929. No pós-2ª Guerra, as políticas habitacionais ganharam vulto nos países centrais, com a reconstrução das cidades devastadas e ocorreram com vigor até o final dos anos 70, nos guetos estadunidenses, por exemplo. Atualmente, essas políticas estão em decadência nas principais potências capitalistas e em franca expansão nas nações em desenvolvimento. Ou seja, a política habitacional adotada pelo capitalismo industrial desde o final do século XIX chega agora, em pleno século XXI e sob a égide do capitalismo financeiro, aos países periféricos com a áurea de “transformação social”.

O MCMV, portanto, não simboliza outra coisa senão a subserviência aos ditames do capital imobiliário nacional e internacional. Não se está aqui criticando a construção de casas para as populações mais pobres, mas sim aonde elas estão sendo construídas e que grupos empresariais estão enchendo os bolsos com essas construções. Outro ponto é que o MCMV não é nada “revolucionário” ou “transformador”, como querem apregoar, mas, como historicamente analisado, um programa profundamente conservador, que tem sua gênese e conceituação no capitalismo de um século e meio atrás. Você sabia que a Odebrecht, a OAS, a Queiroz Galvão e a Andrade Gutiérrez, empreiteiras ligadas à corrupção na Lava-Jato, são quatro das construtoras oficiais do MCMV? Consegue enxergar aí alguma relação entre esse fato e o que foi dito anteriormente sobre programas habitacionais e sua relação intrínseca com o modo de produção capitalista?

 

IV

“Inclusões enganadoras” e o jogo de faz-de-conta

Em síntese, as tais “conquistas” sociais da última década, ou seja, o acesso ao crédito bancário (especialmente via programas de transferência de renda), ao consumismo, a bens materiais e a serviços (educacionais e de saúde, em sua maioria privados) são fenômenos causais concernentes à expansão capitalista nos países periféricos. Estes mesmos fenômenos ocorrem, em maior ou menor grau, em nações “emergentes” como China, Índia, Indonésia, México, Rússia, Tailândia, África do Sul, etc. A bem da verdade, estas consequências teriam ocorrido com Lula, com Dilma, com FHC ou Aécio, porque era só seguir o receituário da lógica financeira.

Nessas “inclusões enganadoras”, diz o sociólogo José de Souza Martins, “o pobre aderiu ao mundo que o fez pobre”. Ainda segundo ele, o pobre continuará estigmatizado e vulnerável socioeconomicamente, mas uma vez lançado superficialmente no mundo do consumo e do acesso aos serviços, se acreditará incluído socialmente. São mudanças de perspectiva, mas não transformações sociais. As “inclusões enganadoras” não libertam nem emancipam, mas contribuem para a legitimação de um sistema que criou a não-vida, a reificação do espírito, na qual as relações sociais entre as pessoas transformam-se em produto, e portanto em relação entre coisas consumidoras.

dilma e aécioA crítica radical precisa ser feita nessa medida a todos os governos, que sem exceção colaboram ao jogo inanimado do capital. A dicotomia partidária entre “esquerda” e “direita” esconde a unidade da miséria moral da política tradicional. É sempre uma luta dos de cima contra os de cima, como disse Bourdieu, onde a militância funciona tão somente como massa de manobra. O golpe real nos é dado a cada dois anos, quando vendem a ilusão (por meio de jingles e marketing eleitoral) de que o voto é uma “arma de mudança”. A democracia representativa, no seu modelo atual, é uma invenção burguesa por excelência. As decisões que de fato vão impactar na vida das pessoas são tomadas por colarinhos brancos e tailleurs em salas de reunião e gabinetes executivos. O jogo é jogado pelos/as “representantes”, não pelos representados/as. O eleitorado é “café-com-leite”; pensa que joga, mas é só de faz-de-conta! Por que então não criamos um outro jogo?

“Estas reflexões podem ser rotuladas de bonitas, mas política e socialmente inviáveis por aqueles que acham a autoridade, o partido, o Estado, o poder enfim, o mestre da transformação social”. (Roberto Freire, Utopia e Paixão)

PS: Agora, separe 20 minutinhos do seu dia para ver esses dois vídeos que diferenciam perfeitamente um “governo representativo” de uma democracia. O que chamamos de “democracia” é um termo que foi forjado historicamente, mas o “governo representativo” é o contrário de uma verdadeira democracia. Os vídeo são super didáticos!

I. Vivemos em democracias?

 

II. Como funciona uma verdadeira democracia?


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