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(foto: Daniel Firmino)
Entrevistar Talles é poder acessar uma pessoa biblioteca. Conhecedor das histórias dos lugares onde morou, confabulista de sua própria existência: “a casa da minha vó era uma grande maloca indígena. Era um terreno grande onde os filhos iam constituindo famílias e iam construindo casas próximas à casa dela”. Com olhar sensível direcionado ao bairro onde viveu uma parte de sua adolescência e onde vive atualmente, Talles reconta sua trajetória imersa também na formação do bairro Curió.
Antes dos trinta anos, Talles já havia morado em muitos bairros de Fortaleza. A sua história tem início na Maraponga, bairro localizado na região sudoeste da capital cearense. Lá onde o poeta foi criado em seus primeiros anos. Foi nesse bairro que Talles fala sobre o grande terreno no qual sua avó construiu outras moradias para familiares. A construção do bairro Curió foi através da luta que sua mãe esteve presente ativamente, motivo pelo qual o jovem foi criado por quem ele considera sua segunda mãe, a Maria José.
A avó do então menino Talles foi sua primeira referência no que considera ser seu arcabouço afetivo para seu gosto pela literatura:
“Desde os meus dez anos eu já estava apaixonado pela leitura, mas assim, ninguém tinha livro na minha casa. Meu gosto pela literatura tem a ver com a oralidade, amar pela palavra, que veio da minha vó, que era uma grande contadora de histórias, uma grande cronista da vida das pessoas na Maraponga”.
Se muda, de início, a contragosto. Aos 13 anos, o recém formado bairro Curió não fazia parte das aspirações do jovem. Mesmo assim esteve presente nas mediações de leitura, ajudando sua mãe no fortalecimento do bairro que tomava forma de gente. Seu gosto pela arte e pela cultura tomava forma, crescia junto com o bairro. Praticando a atividade com grupo de idosos, logo sentiu a necessidade de não só mediar as leituras.
“Aqui no Curió tinha uma escola e nessa escola eu montei o jornal. Participei de um edital de jovens talentos e passei. Eu fui descobrindo nesse lugar que eu não gostava uma coisa que eu amava, que era a arte e a cultura”.
Após esse primeiro período, Talles teve uma discussão com seus familiares e saiu de casa, “e aí que começa uma verdadeira odisseia por Fortaleza”, segundo as palavras do próprio. Dormiu a primeira noite na rua e um dia após a discussão uma amiga o convidou para morar um tempo em sua casa, sob a permissão de sua mãe. Ela morava com a mãe e a companheira de sua matriarca, a tia Andreia e a tia Delma, respectivamente. A partir desse momento, Talles se muda com sua nova família.
“Conjunto Ceará, Caucaia, Cearazinho, tudo ali por aquela região” (oeste de Fortaleza), pontua ele sobre as mudanças de residências que a cada cinco meses se estabelecia como necessidade, o que configurou também um período de instabilidade na vida de Talles. O poeta lembra com pesar do período que trabalhou na Contax. Ter aspirações artísticas e manter uma rotina de trabalho compulsório configurou um difícil momento para sua saúde mental.
Apesar dos percalços com o primeiro emprego, ele compreendeu saindo do trabalho que queria se envolver mais com literatura. Antes de entrar na Universidade Federal do Ceará, ele conheceu o Templo da Poesia, um coletivo de poetas que organizava saraus e outras atividades para fazer a poesia e a literatura chegar às pessoas. Talles fala com carinho e admiração de Reginaldo Farias, um dos integrantes fundadores do coletivo que atua na cidade desde o final da primeira década dos anos 2000. Com sede no Centro da capital cearense, na rua Barão de Aratanha, o Templo da Poesia é considerado por Talles como seminal ao movimento de saraus que atuam na cidade e cuja existência é o principal escopo deste trabalho.
Outro coletivo cujas ações Talles considera ulteriores aos saraus nas quebradas de Fortaleza é o Espaço Cultural Tito de Alencar, o ESCUTA. Com sede na Comunidade do Pici, o coletivo apresentava espetáculos de teatro de rua, musicais, brincadeiras de reisado, sendo todas as atividades voltadas para a própria comunidade.
Com a bagagem acumulada durante o período em que frequentou o Templo da Poesia, ele retorna ao Curió para morar com sua mãe, a manicure e mediadora cultural Rita Cássia. É entre as cores de esmaltes que Talles Azigon começa a visualizar uma biblioteca livre onde morava com sua mãe. Com o embrião das ações que tinha presenciado no campo da literatura, ele superou a desconfiança da mãe e decidiu dar forma a uma alternativa para a comunidade.
A Biblioteca Livro Livre Curió atua no bairro desde 2018, hoje ocupa a Casa Avoa. Segundo Talles, tem ajudado a relação de pertença dos jovens, despertando a alteridade em quem a frequenta. A Folha Curió, jornal com notícias sobre o bairro é produzido na Livro Livre. A mesma biblioteca promove também oficinas e projetos de leitura como o Leitura na Floresta, que acontece na reserva florestal do Curió.
São cinco anos de Livro Livre e contando. Não só para o bairro, mas a biblioteca é um precedente para toda a cidade.
Talles conta que “têm muitos jovens daqui que entraram em contato com a biblioteca e têm outra posição diante da vida, diante do mundo. Essa vontade de pesquisar o Curió, de reafirmar o Curió, de compartilhar o Curió. Eu acho que só isso assim, amigo, só nisso, a gente já merecia um milhão de dólares para continuar fazendo mais coisas incríveis, porque a nossa biblioteca fez o que muitos governos com mil funcionários não conseguem”.
Os desejos de Talles estão escritos também. Ele é o autor das três edições do livro de poemas Saral. Maroriginal e Três Golpes d’Água são os outros pontos das reticências que montam a carreira artística do poeta. A Biblioteca Livro Livre Curió é uma das alternativas mais relevantes para uma Fortaleza inchada. A capital viciada de rolês nos mesmos lugares ainda não criou o hábito de frequentar a periferia.
O sarau livre no Curió é um respiro poético que vai muito além da Fortaleza politiqueira, da matéria cota de jornal. Enquanto essa cidade fica nas repetições, indo uma vez perdida na quebrada, sem permanecer, Talles e os moradores do Curió reinventam suas vidas através da literatura.
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A série Artelaria de quebrada é publicada semanalmente no #siteberro. Clique nos links abaixo para acessar os textos anteriores.
jernesto@revistaberro.com / revistaberro@revistaberro.com
i. Artelaria de quebrada: poetas e saraus de periferia
ii. “Eu não posso deixar que meu amigo que foi morto no dia do sarau morra de novo”
iii. “Eu boto tanta fé nesses corre, que a galera começa a meter fé também”