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Seriam as áreas comuns das favelas mais vivas do que nos bairros classe-medianos e “nobres”? Pessoas, cachorros, gatos, porcos, galinhas, jumentos e burros transitam pelas suas ruas e vielas labirínticas. Caminhar por seus logradouros é experimentar uma outra relação com a cidade. A rua é uma extensão de suas casas, estas geralmente diminutas, desconfortáveis, sem janelas laterais ou frontais, calorentas. Em alguns becos, abre-se a casa e já se esbarra com a porta do vizinho ou da vizinha da frente. A rua, portanto, tem uma dimensão não apenas social, mas funcional na favela, serve como um alargamento dessas moradias precárias e apertadas.
As pessoas varrem as calçadas, capinam e limpam os caminhos por onde escoam os esgotos sem tratamento hidrossanitário. São práticas sociais típicas da favela, que não se verificam em bairros classe-medianos. Sem romantizar, há também quem jogue lixo nos logradouros e algumas áreas do local se transformam em lixões. É insólito pensar que no Japão, uma sociedade de profundas diferenças socioculturais em relação à brasileira, esse fenômeno se repete. Em pesquisa realizada no início dos anos de 1990 nas rôji, vielas da velha cidade baixa de Tóquio, a antropóloga francesa Claire Gallian afirmava que “o limite entre o público e o privado não é claro e o espaço da rua parece simplesmente prolongar o espaço doméstico que se encontra ao ‘rés do chão’”.
Dessa forma, mesmo sujeitas às contingências da violência, as pessoas não se encastelam em seus locais domiciliares. A socialidade favelada, conceito que criei na pesquisa que dá corpo a esta série de artigos, é como um comportamento criativo por sobrevivência econômica e dignidade espiritual praticado pelas pessoas da favela. É uma resistência tática e fugidia à completa assimilação por relações sociais mediadas pela violência; é uma capacidade incorporada de resiliência astuta diante da violência do tráfico, dos tiroteios, dos assaltos e roubos, das frequentes mortes de amigos(as), parentes e vizinhos(as), mas também é uma ginga, um “jogo de cintura” estético-social frente à violência militar e simbólica do estatismo e dos meios hegemônicos empresariais.
Ainda que casas com grades nas portas e janelas já seja um cenário recorrente, as práticas populares de sair às ruas e ocupá-las ostensivamente dizem muito mais. É aqui que, paradoxalmente às taxas epidêmicas de homicídios, as ruas são mais ocupadas, crianças brincam de bila, de bola e de soltar raia; pessoas conversam despretensiosamente com as cadeiras postas em frente às casas, o “balé de calçada” do qual fala Jane Jacobs, em Morte e vida nas grandes cidades, acontece constantemente: “Uma rua viva sempre tem tantos usuários quanto meros espectadores” diz a urbanista.
Uma pessoa, que não pratica atividades criminais e mora no Tancredo Neves há 30 anos, me dizia que “é um bairro em que as pessoas estão na rua. Você vê, literalmente, a população”. O que tu mais gosta daqui?, pergunto-lhe. “O que eu mais gosto é a sensação de que, ao mesmo tempo em que ele parece ser inseguro, ele é seguro pra mim. Então, eu posso chegar qualquer horário, posso chegar 2 horas [da madrugada], abro meu portão… Nunca me aconteceu nada. Isso já faz 30 anos e não é [somente] a rua que eu moro. Então, o que eu mais gosto é isso, de me sentir seguro em um local que não é seguro”.
Do outro lado do Grande Tancredo Neves, na Cidade dos Funcionários, bairro classe-mediano onde o complexo está em parte situado, a arquitetura do medo predomina. Os enclaves fortificados, com muros altos, cercas elétricas, câmeras e agentes de vigilância são uma produção urbanística típica dos segmentos dominantes: esta arquitetura estimula o bilionário crescimento das indústrias de “segurança” privada e eletrônica (com toda sua parafernália), bem como os capitais imobiliário e financeiro, uma vez que também ativa a demanda por autossegregação em condomínios residenciais exclusivos à la Alphaville, ilhas habitacionais, bolhas de isolamento fabricadas pelo pânico à interação com as classes populares e que têm sua mais fiel tradução nos discursos paranoicos de “medo da pobreza” e nos projetos arquitetônicos panópticos: guaritas centrais elevadas e dispositivos de vigilância por toda parte: o “Big Brother” de George Orwell; 1984 está acontecendo agora, no século XXI. Nesta reocupação capitalista do espaço, “o homem civilizado trocou um tanto de felicidade por um tanto de segurança”, comenta Freud, no seu clássico O mal-estar na civilização, palavras que ainda hoje continuam de acordo com a marcha do processo civilizador.
Os moradores desses arquipélagos residenciais não mais se integram às dinâmicas da cidade como corresponsáveis pela produção sociopolítica do espaço, mas, ao contrário, são dóceis e voluntários prisioneiros da ilusão de uma vida sem conflitos ou “contaminações”, ordenada como uma planilha burocrática, estéril e “segura”. É como diz o rapper Rincon Sapiência, na canção A volta pra casa, “[veem] perigo em todos os lados, quanto mais dinheiro, vivem mais isolados, a violência na cidade tem se espalhado, se isola mais ainda quem tem um carro blindado”.
Em The edge and the center: gated communities and the discourse of urban fear (sem edição em português, mas numa tradução livre seria algo como A periferia e o centro: condomínios fechados e o discurso do medo urbano), a antropóloga estadunidense Setha Low observa que esta dinâmica do medo e da autossegregação é uma configuração das camadas médias e altas em nível global. A autora toma exemplos empíricos nas cidades de Nova Iorque e Santo Antônio, nos Estados Unidos. Para tal discurso de medo, a estereotipação da delinquência em um tipo social específico – o morador pobre de periferia – é cada vez mais necessária à caminhada triunfal e de “progresso” do sistema cultural e socioeconômico dominante.
De volta às ruas do GTN, a maioria de sua configuração social consiste em famílias matrifocais, nas quais as mães e avós – como donas-de-casa – cuidam dos afazeres domésticos e da “criação” dos filhos, filhas, netos e netas, enquanto os pais se lançam à cata de empregos, geralmente precarizados e superexplorados, nas subcategorias formal e informal do mercado de trabalho capitalista: são frentistas, carpinteiros, marceneiros, lixeiros, serventes, pedreiros, pintores (“letristas”), entregadores, mototaxistas, metalúrgicos, serralheiros, ferreiros, borracheiros, garçons, eletricistas, caminhoneiros, motoristas de ônibus ou topiques, cobradores, policiais, lavadores de veículos, porteiros, mecânicos, “lancheiros”, feirantes, “barraqueiros”, caixas de supermercado, camelôs, “flanelinhas”, embaladores, etc. As mães, quando trabalham fora dos seus lares, geralmente conseguem ocupações “caseiras” em domicílios das camadas médias e altas: diaristas, domésticas, cozinheiras, babás, lavadoras e engomadoras de roupas, etc.
Diante de uma ordem dominante – pública e privada – que impõe condições limitantes à possibilidade de ascensão social, ainda que sua narrativa tente convencer do contrário, quase todos os descendentes dessas famílias, por consequência, seguem algumas destas profissões citadas, subempregos das relações capitalistas de trabalho. William Foote Whyte, em sua obra clássica Sociedade de esquina: A estrutura social de uma área urbana pobre e degradada, publicada ainda nos anos 1930, vivenciou situação semelhante durante sua pesquisa antropológica em Cornerville, nome fictício para um subúrbio de Boston, nos Estados Unidos, formado por famílias de imigrantes italianos. Segundo o autor, a sociedade moderna “atribui grande valor à mobilidade social. De acordo com a tradição, o trabalhador começa de baixo e, pela inteligência e o trabalho árduo, sobe a escada do sucesso. É difícil para o homem de Cornerville colocar o pé nessa escada, nem que seja no degrau mais baixo”. Está evidente que os instrumentos, meios e recursos dos poderios estatais e dos segmentos empresariais hegemônicos emperram as possibilidades à universalidade de garantias e direitos e não oferecem condições igualitárias de participação no jogo das oportunidades civis e socioeconômicas.
Voltando às andanças pelo GTN, caminhando pelas ruas do território, avisto crianças, quase sempre descalças, que jogam bila, soltam raia, chutam bola, sobem em árvores, e emulam armas imaginárias para brincar de polícia e ladrão: nesta brincadeira, especificamente, usam de expressões que reproduzem fielmente o léxico criminal. Elas gozam de uma situação paradoxal: ao tempo em que, diferente das crianças de outras camadas sociais – estas sempre muito “protegidas” pelas estruturas familiares –, vivem a liberdade de ir e vir pelas ruas e becos da favela a qualquer hora; por outro lado, têm que se contentar com uma existência social que não vai muito além disso. Aprendem desde muito cedo qual o seu lugar. Mas também por isso abusam – com as mais diversas arteirices e traquinagens – como podem desse lugar. Tenho como uma das hipóteses da pesquisa que as crianças são a categoria social que mais aplica dribles na sociabilidade violenta ao dar vazão a maneiras criativas e espontâneas de socialidade.
Os adolescentes, por sua vez, ocupam as esquinas em bandos: bonés na “ponta do crânio”, bermuda de marcas de surfe, de tactel ou veludo, havaianas ou kenner no pé, “laços” de prata no pescoço, bike incrementada com guidão alto, cabelos oxigenados em épocas específicas, como o carnaval, mas na maioria do ano bem rebaixados ou raspados com listas divisórias que podem formar palavras, símbolos ou tão-somente demarcar um corte: é o ethos da juventude masculina favelada. Falam um socioleto particularíssimo: o favelês cearense, uma oralidade riquíssima em inventividade e semântica, que vou aprofundar aqui na série em um dos próximos textos.
Observando as esquinas com os jovens, eles estão quase sempre pelas calçadas “trocando ideia”; como muitas das amizades se estruturaram ainda na infância, eles têm muitas histórias compartilhadas e muita intimidade para conversar ou, por alguns momentos, ficar apenas na companhia silenciosa dos amigos, “viajando”, “passando a lombra”. Suas casas funcionam apenas como um lugar de repouso e atendimento às necessidades fisiológicas; a rua é seu lugar por excelência, a rua é sua casa.
Em outra favela de Fortaleza, em pesquisa intitulada Guerra, mundão e consideração: uma etnografia das relações sociais dos jovens no Serviluz, o sociólogo Leonardo Sá defende que “as rodas [de conversas] são microespaços públicos de expressão e de comunicação face a face que estruturam a experiência das ações coletivas dos jovens, dão visibilidade pública ao ato de conversar e, portanto, alimentam o funcionamento da esfera pública popular juvenil de produção de opinião pública alternativa e de notícia não-hegemônica sobre eventos e assuntos, considerados relevantes para eles e por eles. As rodas pautam a agenda pública dos jovens do bairro. […] São zonas de autonomia relativa dos pensamentos, das organizações e das interações juvenis”.
A socialidade das mulheres é menos experimentada em “bandos” nas ruas e esquinas do que a dos rapazes, embora seja uma inverdade dizer que elas também não andam em grupos. Os grupos de jovens mulheres podem ser percebidos mais facilmente na circulação em frente às escolas, e principalmente nos finais de semanas nos clubes de “forró da favela”. Entretanto, diferente dos homens, elas permanecem em casa por mais momentos ao longo do dia, porque muitas vezes estão encarregadas dos afazeres domésticos, competências marcadamente femininas na organização social da favela.
Algumas das mulheres de mais idade, quase sempre formidáveis cozinheiras pelos muitos anos de prática, além de donas-de-casa, montam carrinhos de lanche, com bolos, salgados, vatapá, creme de galinha, e toda uma ruma de doces e guloseimas para vender em frente suas casas. As donas-de-casa que não são microempreendedoras consomem o pouco tempo livre que têm assistindo a programações televisivas ou indo a cultos (o pentecostalismo se expande a larga escala nos bairros periféricos em todo o país), e são menos frequentes suas participações em uma “socialidade da rua”, a exceção das cadeiras plásticas ou de balanço colocadas nas calçadas no final da tarde, quando o sol equatorial de Fortaleza é mais ameno.
Os homens adultos e mais velhos, quando não estão nos bares, bodegas e churrasquinhos, também põem nas calçadas suas cadeiras de balanço feitas de ferro e envolvidas em plástico resistente, com molas para facilitar o balançar. Quando estão em pares, desandam a jogar dominó e dama sobre banquetas de madeira. Quando a sós, em silêncios meditativos, tomam tento ao balançado envolvente e confortável de suas cadeiras, acompanhados de um final de tarde que alaranja o céu, ou da estrela d’alva, quando o sol já repousou – um costume das tradições sertanejas que ainda permanece presente em muitas favelas de Fortaleza. Mas estar só nas ruas das periferias é uma possibilidade não muito corriqueira.
Logo se aproximam as redes comunitárias de vizinhança e a conversa corre às soltas, desembestada, cheia de piadas, fofocas, elipses: uma arte oratória que atualiza sentidos coletivos afins das camadas pobres. Essa oralidade constantemente compartilhada robustece sentimentos comunitários e morais de identidade, confiança e pertença territorial.
As redes de vizinhança são processos de subjetivação-objetivação que, ao partilharem esquemas semânticos afins, acionam muitas vezes mecanismos solidários de atenção e cuidado aos demais moradores e moradoras, e, dessa forma, operam como extensões dos vínculos e circuitos familiares. São verdadeiros parentescos simbólicos, ou, nos termos do antropólogo Michel Agier, parentescos espirituais ou de consideração. Por isto, é comum que vizinhos e vizinhas compartilhem, em diversos momentos, a criação dos filhos e filhas uns dos outros(as).
Outra particularidade destes espaços e, como no caso dos parentescos simbólicos, bastante incomum às camadas médias e altas dos núcleos urbanos, é a dilatação do núcleo familiar. Em casas um pouco maiores ou em “puxadinhos”, há uma ampliação da matriz nuclear das famílias, e num mesmo local convivem pais e mães, filhos(as), avós, tios(as), primos(as), agregados(as) etc.
São famílias matricentradas, cuja figura da “vozinha” exerce um papel central nas dimensões moral e material, bem como na busca por estabilidade afetiva e emocional. Como ocorre uma alta incidência de gravidez precoce entre as jovens do GTN, muitas avós tomam a frente na “criação” dos netos e netas.
Recordo que nas vezes em que fui “fazer campo” no posto de saúde Maria de Lourdes Ribeiro Jereissati, no Tancredo Neves, o principal e mais numeroso público-alvo atendido era de jovens gestantes ou com bebês de colo. As futuras ou recentes mães inflacionavam o local. Surgiam aos “magotes”, uma atrás da outra. Muitas, pela aparência, não tinham ainda dezoito anos.
As redes coletivas de vizinhança não são homogêneas, ou seja, não são relações estáticas ausentes de conflitos, discordâncias, simpatias, aversões, indiferenças e boatarias; pelo contrário, existem a partir de dicotomias e ambiguidades conviviais que as ligam e as separam, num vai e vem dialético que constrói caminhos de sociabilidade. Uma pretensa monocromia nas ações inter-relacionais “viola o fluxo real e a variabilidade da cena social humana”, diz Victor Turner, em Dramas, campos e metáforas: ação simbólica na sociedade humana.
Em outras palavras, pensar uma vida social sem conflitos é uma mitificação ingênua que traz em seu bojo a adoção de uma perspectiva que põe em relação direta e causal duas categorias sociológicas divergentes: “conflito” e “anomia”. Analisar o conflito como anômico tem servido historicamente às estratégias do poderio estatal para legitimar sua coerção social sobre populações historicamente marginalizadas. Como disse há muito tempo o sociólogo alemão Simmel, não há sociedade “onde correntes convergentes e divergentes não estão inseparavelmente entrelaçadas. Um grupo absolutamente centrípeto e harmonioso, uma ‘união’ pura não só é empiricamente irreal, como não poderia mostrar um processo de vida real”. Para este autor, o conflito social funciona como principal catalisador do processo de sociação. Seguindo na mesma linha, James Scott, em A dominação e a arte da resistência, considera que a solidariedade entre as populações oprimidas se dá, paradoxalmente, devido aos diferentes graus de conflito no qual elas se envolvem mutuamente. De acordo com este autor, para além de representar uma debilidade interacional, são símbolos de uma vigilância ativa e atuante, que preserva, recria e reforça a unidade grupal.
Na realidade do GTN, em muitos casos, numa mesma rua o sagrado e o profano se entremeiam e se repelem simultaneamente. Bares e igrejas neopentecostais, parede com parede, ou um de frente ao outro, é uma cena que se repete facilmente nas andanças pelo complexo. Bêbados nas portas das igrejas; pastores que tentam “salvar almas” nos botecos regados a cachaça; vizinhança que discute por conta de um som ligado às alturas ou de um carro estacionado na frente do portão alheio; brigas em bares por questões ligadas a traições conjugais, ou porque um torce para o Fortaleza, e a outra, para o Ceará; vizinhas que deixam de se falar porque uma soube que a outra andava fuxicando dela na feira; mulheres que entram em desacordo sobre a imposição de limites às crianças nas calçadas; amigos que rompem relações porque um descobriu que o outro ficou com sua “paquera” no forró… Cenas de uma sociabilidade dinâmica e conflituosa das camadas populares.
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A série “Antropologia do crime no Ceará” é publicada semanalmente no #siteberro. Veja abaixo os textos anteriores.
i. A dimensão ética na pesquisa de campo
ii. Pesquisando o “mundo do crime” e inserindo-se no “campo”
iii. Grande Tancredo Neves: formação dos territórios
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