Batismos de morte e o ethos do trabalho nas relações criminais (parte II)



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(Ilustração: Uli Batista)

Vamos continuar analisando os batismos nas facções e a dinâmica do trabalho nas relações criminais. 

Os casos de muitos jovens que se batizaram em facções  nos últimos seis, sete anos no Ceará mostra que esse processo ocorreu de maneira capilarizada em muitas periferias de todo o Estado. Houve uma adesão em massa de muitos jovens que, anteriormente, desenvolviam as relações criminais apenas como maneiras pragmáticas de conseguir um dinheiro fácil; muitos não depositavam nas práticas delitivas um fim último; pelo contrário, paralelamente a estas práticas empreendiam muitos “bicos”, apoiavam-se nas redes da informalidade e faziam duplas jornadas de trabalho: por exemplo, um turno nas atividades criminais e outras seis ou oito horas em um subemprego do mercado de trabalho capitalista.

Russo, 34 anos, adicto em crack e que trabalha com pequenos assaltos e furtos, me contou que, na mesma época, trabalhava como repositor de “hortifruti” em um supermercado e paralelamente “roubava na sugesta”.  A prática criminal aparece aqui como acessória à atividade profissional de “carteira assinada”, como Russo enfatizou.

O “batismo” a uma dessas facções vem, então, para alterar esse cenário de amadorismo criminal; o batismo reveste essa tomada de decisão como um poderoso e representativo “rito de passagem”, como diz Van Gennep, no qual a forma diletante, espontânea e desprendida de antes, agora transmuta-se em profissionalismo criminal.

Assim, surge nas periferias um repaginado ethos do trabalho nas relações criminais, algo que, dentro da configuração da criminalidade favelada cearense, era pouquíssimo desenvolvido, de uma maneira geral. Obviamente que a expansão dos limites de atuação para fora dos domínios territoriais – uma limitação de ação social que era comum às quadrilhas locais – é um fator a ser também considerado, uma vez que “enquanto as gangues e quadrilhas de traficantes se moviam em territórios estáticos, no qual cada grupo dominava seu pedaço, matando sem mexer no pedaço do outro, as facções invadem, matam, ocupam e expulsam moradores de suas casas”, analisa o sociólogo Luiz Fábio Paiva, em Aqui não tem gangue, tem facção”: As transformações sociais do crime em Fortaleza

Outra variável que não se pode negligenciar nesse contexto é o acesso a armas potentes como fuzis e metralhadores, algo que até então não era recorrente entre os “criminosos” do Estado.

Entretanto, na minha análise, o novo ethos do trabalho (divisão social de tarefas, funções a cumprir, organização em setores, estatutos, “tributos” a pagar, etc.) representa a principal força de atração simbólica e o liame fundamental com as condições sociais objetivas de uma novidade que então explica os batismos em massa nas facções.

O “bandido” se arvora como um funcionário com tarefas a cumprir, estatutos a obedecer e taxas a pagar – com exceção. Essa ética do mundo do trabalho, que visa à rentabilidade máxima na gestão dos ilegalismos e a contenção avaliativa dos riscos intrínsecos aos negócios, tem no PCC seu maior expoente. Carolina Grillo, em Coisas da Vida no Crime: Tráfico e roubo em favelas cariocas, analisa essa imitação do mundo do trabalho capitalista por parte dos agentes da criminalidade favelada: “Excluídos do mercado, situados na base da dominação de classe, às margens dos centros de poder […] os traficantes favelados recriam ao seu modo as formas com as quais entram em contato, mas que lhes são até certo ponto alheias e fetichizadas. Eles reinventam a empresa capitalista e o Estado a partir do lugar periférico que ocupam na constituição original dessas entidades, jogando com inversões de poder e acionando processos concomitantes de identificação e distanciamento. Tudo sem perder a sua formação em bandos”.

A antropóloga Jânia Aquino, autora de Príncipes e castelos de areia: performance e liminaridade no universo dos grandes roubos, comenta que se surpreendeu com o fato dos assaltantes de empresas transportadoras de dinheiro incorporarem a dimensão do trabalho às suas práticas criminais. A autora sublinha que expressões faladas pelos assaltantes como “ele é um cara que trabalha direito”, “eu tava viajando pra tirar um serviço”, “eu gostei muito de trabalhar com ele”, “naquela parada nós trabalhamos dobrado” denotam a construção de uma subjetividade que empresta às práticas de roubos milionários o revestimento de uma “profissão”, com “obrigações” e “encargos”. Vale ressaltar que a pesquisa etnográfica de Aquino foi desenvolvida com “bandidos” que não moravam nas favelas, e empreendiam outra qualidade de práticas delitivas.

Entretanto, dentro desse fenômeno de adesão em massa de uma juventude marginalizada à eficácia simbólica das facções via ethos do trabalho, foi perceptível o aumento generalizado do quantitativo de mulheres nessa nova configuração. As mulheres assumiram, em alguns territórios, funções importantes nas relações criminais, tanto nas dinâmicas do tráfico de drogas quanto na comunicação estratégica entre os presídios e os territórios locais. Não estou dizendo aqui que, antes da capilaridade das facções no Ceará, o gênero feminino era completamente alheio ao envolvimento nas práticas delitivas. O que saliento é que a quantidade de mulheres envolvidas diretamente com agenciamentos criminais nas favelas cearenses cresceu de maneira notória nos últimos três anos. Se antes as mulheres eram vistas como vulneráveis dentro das relações criminais, e muitas vezes a simples presença delas e de crianças em alguns locais impedia moralmente que um tiroteio entre quadrilhas rivais se iniciasse, hoje pipocam casos na imprensa cearense e nas redes sociais em que mulheres são espancadas, torturadas e mortas por integrarem facções rivais às de seus algozes. Às vezes, elas podem ser executadas apenas por serem parentes de algum faccionado. Em outros casos, muitas garotas estão sendo expulsas e, no limite, assassinadas, apenas por envolverem-se afetiva e sexualmente com alguém de um território “inimigo”. Tenho um relato sobre isso.

Dona Rosália trabalha como doméstica na casa de uma ex-companheira minha. Dona Rosália mora no Bom Jardim, um bairro periférico da zona oeste de Fortaleza. A neta de dona Rosália, Daniela, de 16 anos, que morava com a avó, enamorou-se de um garoto que morava a algumas ruas de sua casa. No entanto, entre estas ruas, há uma fronteira invisível que segrega dois territórios dominados por facções rivais. Daniela não encampa práticas criminais. Certo dia, quando voltava da casa do namorado, e já tendo cruzado de volta a fronteira para o seu território, foi interceptada por membros da facção local. Eles a ameaçaram, e disseram-lhe que se ela fosse novamente vista indo ao território rival seria “decretada”. Um dos tios de Daniela, que é envolvido com as relações criminais no bairro, foi conversar com os jovens que a ameaçaram, pedindo-lhes prudência. Chegaram ao consenso de que o mais sensato para a garota era que ela fosse “espirrada” do bairro. Daniela hoje não mora mais com a avó, mas com uma tia, em outro bairro distante de sua antiga casa. 

Voltando ao contexto dos batismos em larga escala, há também a outra faceta. Conversei com praticantes criminais que, numa leitura avaliativa, entendiam o ingresso nestas facções como um “um caminho sem volta”. Camaleão não quis se filiar. Conversei com ele ainda durante o armistício, no começo de 2016: “Já vieram uns e outros aqui [na bocada] falar comigo, mas num tô nem vendo não, porque no dia que quebrar a união…”. Parecia prever o que estaria por vir. 

Raposão conta sobre as maneiras de sair, caso o membro se arrependa: “Tu entra numa organização dessa, tu só tem três maneiras de sair: uma é morrendo, a outra é se você for se entregar a Jesus e for um servo de Deus fervoroso. Você vai ser investigado, se realmente você saiu porque tá servindo a Deus ou se tá se escondendo atrás da Bíblia. Se isso acontecer, você morre também. Mas se você realmente se entregar a Jesus ou se você chegar pro conselho geral, final do sistema, e dizer “eu não quero mais fazer parte do crime, eu quero ser banido do crime, eu quero ser cidadão agora”, você pode, entendeu? Mas também você não pode se envolver com mais nada relacionado ao crime”.

No caso das máfias napolitanas e sicilianas, essa opção não existe. Uma vez membro, eternamente membro. Embora Raposão tenha elencado três opções de saída das facções, penso que a terceira é muito improvável. Soa mais como oratória do que como possibilidade concreta, uma vez que as inimizades contraídas nas relações criminais não desaparecem com o pedido de banimento. A segunda é verossímil; antes de “chegada” das facções, há relatos de “ex-bandidos” no Grande Tancredo Neves (GTN) que deixaram as quadrilhas criminais e tornaram-se evangélicos, sendo então eximidos dos confrontos durante as muitas “guerras” pelo domínio dos territórios do complexo. 

Os textos de Patrícia Birman e Carly Machado, A violência dos justos: evangélicos, mídia e periferias da metrópole, e outro de Carly Machado, Pentecostalismo e o sofrimento do (ex-)bandido: testemunhos, mediações, modos de subjetivação e projetos de cidadania nas periferias, abordam a questão do pentecostalismo nas favelas. As autoras sublinham que o “ex-bandido” reconstrói sua subjetividade a partir da persona potente do “resgatado”, o que lhe dá um papel de destaque dentro da igreja, que explora a “fama” e o “sofrimento” do ex-bandido para demarcar a força da “salvação” pelo evangelho. Ele torna-se, então, personagem-símbolo dos cultos evangélicos: sua reconfiguração de trajetória vira um arquétipo ideal. O ex-bandido é aquele que conseguiu “vencer as trevas”. Ademais, ele passa a ser um canal de mediação entre a igreja e o “mundo do crime”. A esse conjunto de práticas encampadas pelas igrejas Carly Machado denomina “dispositivo pentecostal para lidar com o sofrimento através do contornamento da vitimização”.

Muitos destes ex-bandidos deixaram a atividade criminal após um “livramento”. O livramento é a categoria nativa que os agentes criminais favelados empregam em suas falas para dar conta de um episódio em que escaparam milagrosamente da iminência quase certa de morrer. Foram muitos os relatos que ouvi em campo acerca de livramentos os mais diversos. Russo, 34 anos, que trabalha com pequenos roubos a transeuntes, o famoso “ladrão de galinha”, me contou que na época da “guerra” entre Vila Cazumba e Tancredo Neves levou um tiro no estômago e só não morreu porque “Deus me deu um livramento”. Papagaio me mostrava suas cicatrizes de balas e cortes de faca, e salientava, convicto, de que todas elas tinham sido “livramentos”, o que sinalizava, segundo ele, que Deus teria uma “missão” na sua vida.

Trazendo um exemplo da cultura pop, no clássico Pulp Fiction, de Quentin Tarantino, o homicida profissional Jules (Samuel L. Jackson) decide abandonar as práticas criminais pouco tempo depois de um “livramento” em que ele e seu parceiro Vincent (John Travolta) escapam “milagrosamente” de uma tentativa de assassinato. O roteiro do filme sugere que Jules opta pela saída do “crime” após refletir sobre o atentado que sofrera, inclusive se debruçando sobre uma passagem da Bíblia – Ezequiel 25:17[5] – que costumeiramente recitava antes de matar seus desafetos.

Porém, voltando à empiria, geralmente em diálogo com a categoria “livramento” surge a categoria “vivedor”. Ser vivedor é estar abençoado por Deus, é ter o “corpo fechado” contra a morte. João, um varejista das drogas e assaltante com quem conversei, me contava dos cinco atentados que sofrera, para em seguida completar: “O nêgo é vivedor, pivete!”, se orgulhava, batendo no peito. O contrário do vivedor é o morredor, aquele que, inversamente, está exposto às intempéries mortais das relações criminais porque não tem o corpo interditado às maldades do “inimigo”.

A religiosidade, embora não praticada fervorosamente, é algo muito presente nos “bandidos” com quem conversei. Todos diziam acreditar piamente em Deus. O ateísmo praticamente inexiste nas favelas. Raposão me disse que acredita “demais” em Deus. Pergunto o que ele acha que essa divindade pensa acerca de suas ações: “Eu penso assim, cara, que às vezes que já escapei de atentado da polícia, de atentado de inimigo, principalmente essa última vez que fui preso agora, não tem como eu ter escapado sem ter sido Deus que disse assim: ‘Você não vai morrer hoje’. Não tem, véi. E apesar de eu ser falho com ele, eu tenho uma ligação muito forte com Deus, esse mérito aí eu não tiro dele jamais. Eu tô vivo até hoje só porque Deus quer e eu sei que ele tem algum propósito na minha vida, entendeu? E é como eu venho falando sempre nas minhas orações: ‘Meus Deus, eu vou dar só uma tacada boa, vou pagar o restim dessas minhas dívidas, comprar uma casinha, uma coisinha, me estabilizar e vou me sair do mundo do crime’. Vou voltar a trabalhar porque eu tenho capacidade”.

Entretanto, a primeira alternativa enfatizada por Raposão em relação a sair das facções é aquela que geralmente ocorre na dinâmica das relações criminais. Estas pessoas, após aderirem a um desses grupos, só deixam de fazer parte deles quando morrem. Os batismos, nesse sentido, conduzem quase sempre à morte.

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A série Antropologia do crime no Ceará é publicada semanalmente no #siteberro. Clique nos links abaixo para acessar os textos anteriores. 

artur@revistaberro.com / revistaberro@revistaberro.com

i. A dimensão ética na pesquisa de campo

ii. Pesquisando o “mundo do crime” e inserindo-se no “campo”

iii. Grande Tancredo Neves: formação dos territórios

iv. As relações sociais das camadas populares

v. A feira como arte da oralidade popular

vi. O favelês cearense

vii. Estabelecidos e outsiders: a favela dentro da favela

viii“Trabalhadores” e “bandidos”: entre separações e aproximações

ix. Sistema de relações sociais do crime: uma rede de ações criminais hierárquicas

x. “O dinheiro fala mais alto, [com ele] se torna mais fácil de fazer justiça”: A violência do aparelho judiciário

xi. “Não confio na polícia”: A relação de descrença entre a classe trabalhadora e os policiais

xii. A economia da corrupção que move a relação entre polícia e “bandidos”

xiii. “O crime nunca vai acabar por causa da polícia”: a participação policial decisiva nas relações criminais

xiv. Tecnopolítica da punição: A função econômica do encarceramento

xv. Estado punitivo-penal e a produção social da delinquência

xvi“Cadeia é uma máquina de fazer bandido”

xvii. A “escolha” é uma escolha? Compreendendo o ingresso nas relações criminais

xviii. Consumo, dinheiro e sexo: a tríade hedonista da carreira criminal

xix. Traumas, complexos e a luta por reconhecimento (parte I)

xx. Traumas, complexos e a luta por reconhecimento (parte II)

xxi. “Fura até o colete dos homi”: As armas como símbolo dominante

xxii. Os códigos morais da criminalidade favelada (parte I)

xxiii. Os códigos morais da criminalidade favelada (parte II) 

xxiv. “Mãezinha”: uma categoria local que põe em suspensão o ethos violento

xxv. “Pirangueiro”, “cabueta”, “boca de prata”, “corre de ganso”, “atrasa lado”: compreendendo algumas categorias negativadas da moralidade criminal 

xxvi. “O crack veio pra acabar com tudo”: o noia como um “zé ninguém”

xxvii. “Você conquista o respeito, você num impõe”: A liderança nas relações criminais 

xxviii. As “brigas de trono”: as disputas pelo comando territorial

xxix. Socialidade juvenil periférica em Fortaleza dos anos 1990/2000: Dos bailes funks às quadrilhas do tráfico

xxx. Crônica de uma guerra entre quadrilhas de “traficantes”

xxxi. O costume guerreiro da criminalidade pobre

xxxii. Traficante é aquele que nem pega na droga

xxxiii. O assaltante como um nômade das práticas criminais

xxxiv. “O cara num nasceu pra viver no crime o resto da vida não”

xxxv. Uma tentativa de diálogo entre a “vida nua” e a crueldade

xxxvi. A eficácia simbólica das facções

xxxvii. O contexto sócio-histórico e operacional das facções no Ceará

xxxviii. Guardiões do Estado: uma facção cearense com pretensões nacionais

xxxix. Esse negócio de gangue acabou-se: considerações sobre a paz

xl. Batismos de morte e o ethos do trabalho nas relações criminais (parte I)


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