Arte corajosa nos trópicos



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(Ilustração: Levi Noli/Revista Berro)

De antemão, vamos reafirmar esta questão: é inescapável salientar que não há como falar sobre a imprensa alternativa no Brasil dos anos 1960, em plena ditadura civil-militar, sem pensar suas contextualizações históricas, ou seja, este tipo de mídia de resistência surge a partir de uma configuração político-cultural específica.  No artigo de hoje, vamos abordar parte das manifestações e das correntes artísticas que emergiram naquele momento.    

A arte dos anos de 1960 foi uma grande aliada dos movimentos de contestação que varreram o mundo naqueles anos. A música, as artes plásticas, o cinema, a literatura e o teatro emprestaram ao mundo artistas corajosos/as e compromissados/as politicamente, que faziam uso de sua arte, muitas vezes, para também protestar contra aquela sociedade unidimensional, acrítica. 

No Brasil, devido à ditadura, o meio artístico e cultural foi castrado em seu exercício pleno. No entanto, muitos/as atores/atrizes, cantores/as, poetas, teatrólogos/as e cineastas lutaram bravamente, com sua arte e coragem, contra a censura vigente. Pujantes canções, peças, poesias e filmes vieram à tona pelas bocas e mentes de audazes artistas. De acordo com Zuenir Ventura, em 1968: O ano que não terminou, “em 68 seria assim: a arte não podia viver sem a política, e a presença desta tornava o casamento suspeito”.

No campo cinematográfico, o Cinema Novo foi um movimento brasileiro influenciado pelo neorrealismo italiano e pela “nouvelle vague” francesa. As propostas desse novo cinema nacional eram desvencilhar-se das chanchadas e produzir filmes voltados à realidade brasileira, com temas geralmente ligados ao subdesenvolvimento do país. O movimento trazia nomes como Joaquim Pedro, Cacá Diegues, Leon Hirszman, Joaquim Pedro de Andrade, Nelson Pereira dos Santos e, claro, o famigerado Glauber Rocha, de Terra em Transe e O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro

Após ganhar vários prêmios internacionais, o grande desafio do Cinema Novo era conquistar o público interno, que não consumia o cinema nacional para além das pornochanchadas. De fato, conseguiram maior penetração de audiência numa classe média ávida por novidades. Quem à época, dentro de círculos classe-medianos, não gostasse dos filmes de Glauber Rocha era visto como “alienado”. Vindo de fora, mas nem por isso menos apreciadas, as películas do cineasta francês Jean-Luc Godard eram consumidas vorazmente pelos jovens  cult da época.

No entanto, o cinema, como dito, era muito restrito a uma vanguarda intelectual, ficava muito distante ainda de atingir uma parcela significativa da população. Porém, “mais do que indústria, muito mais do que divertimento ou fenômeno de consumo, o cinema era, para a jovem vanguarda que o fazia e que o consumia, uma aventura experimental de linguagem e de ação política”, relata Ventura. 

Por outro lado, popular mesmo era a música. “Os ídolos da juventude da época não eram televisivos, mas musicais, ainda que ajudados pela TV: Roberto Carlos, para os alienados; Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, para a faixa participante; e, vindo avassaladoramente de fora, os Beatles”, sublinha o autor de 1968: O ano que não terminou.

A música popular brasileira esteve na vanguarda da contestação e enfrentamento à ditadura. Artistas como Chico, Vinícius, Tom Jobim, Geraldo Vandré; os tropicalistas Caetano, Gil, Tom Zé; Rita Lee (que chegou a ser presa enquanto estava grávida!), Elis Regina e outras, compuseram e interpretaram diversas canções de protesto, a maioria delas com críticas veladas ao regime, que passavam despercebidas pelos censores.

Os festivais de música estavam entre os principais acontecimentos culturais do ano. Canções como Sabiá; Alegria, Alegria; É proibido proibir; Pra não Dizer que não Falei das Flores; Domingo no Parque; Roda Viva e muitas outras memoráveis foram apresentadas ao público durante estes eventos. “Em poucos momentos de sua história a música popular brasileira reuniu talentos tão extraordinários quanto na década de 60, em especial nos anos 67-68. Alguns dos nossos melhores compositores ainda atuais surgiram ou se formaram naquela época”, pontua Zuenir Ventura, em 1968: O que fizemos de nós

Não tanto popularizado quanto a música, mas tão combativo quanto, o teatro brasileiro foi um dos mais audazes meios artísticos utilizados para incomodar a ditadura. Peças corajosas foram produzidas nesta época. Entre estas, uma desponta como a mais perseguida e subversiva, Roda Viva, de José Celso Martinez Corrêa, inspirada na música homônima de Chico Buarque. “José Celso procurava romper com a timidez artesanal do teatro, ‘tão distante do arrojo estético do Cinema Novo’. Assim, usando o texto de Chico como pretexto, José Celso construiu um espetáculo de duas horas e meia de duração – o marco mais radical do tropicalismo e o símbolo da perseguição a que esteve exposta a arte naqueles tempos. No palco, esse enredo tão pouco subversivo transformou-se numa encenação revolucionária. Talvez nunca os palcos nacionais tenham assistido a uma explosão visual, sonora e gestual tão virulenta como esta que inaugurou no Brasil o ‘Teatro da Agressão’, ou ‘Teatro da Grossura’, ou ‘Teatro da Porrada’”, ressalta Ventura. 

Os tropicalistas, na música representados por Caetano, Gil e Tom Zé; no cinema, por Glauber Rocha; na pintura e nas artes plásticas, por Hélio Oiticica; e no teatro, por Zé Celso, “achavam que o absurdo brasileiro só poderia ser devolvido artisticamente pelo choque de elementos dramáticos antagônicos encenados sob a forma de paródia. O resultado, hipertrofiado, revelava a realidade como o realismo era incapaz de fazê-lo”, defende o autor. A peça Roda Viva incomodava pela crueza e pela virulência, tornando-se a “mais inconveniente, exasperante e agressiva expressão teatral” daqueles tempos. 

Em tempos de censura, não tardaria para Roda Viva ser considerada subversiva pelos agentes do regime. A peça, que estreara no Rio de Janeiro no começo de 1968, foi, no início de outubro, quando estava sendo encenada em Porto Alegre, proibida de exibição em todo o território nacional, após uma portaria distribuída pelo Departamento de Polícia Federal

Neste sentido, ao longo daqueles anos, parte significativa do meio artístico acompanhou, lado a lado com o combativo movimento estudantil e parte da sociedade civil engajada, as intempéries políticas pelas quais passava o país.  Os/as artistas – do cinema, da música, do teatro, da pintura, da literatura – não se esquivaram da luta, fazendo uso da melhor arma que podiam através de sua arte: a transgressão.  

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A série O jornalismo alternativo na ditadura militar é publicada sistematicamente no #siteberro.

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Clique nos links abaixo para acessar os textos anteriores:

I. O contexto sócio-histórico do nascedouro da imprensa alternativa no Brasil

II. A revolução dos “bichos-grilos”: o nascimento da contracultura

III. O movimento dos direitos civis: as lutas feministas e negras

IV. Sexo, drogas e rock’n’roll: o movimento hippie 


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