A construção social da “raça” negra



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(Pintura: Debret)

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Para entender a questão racial no Brasil, é importante analisar como se deu o processo de construção social da “raça” negra por estas bandas do Atlântico. De início, vale deixa claro que, em termos biológicos, a cor da pele é determinada pela quantidade e tipo do pigmento melanina presente na pele, e que sua variação é controlada por apenas quatro a seis genes entre os cerca de 25 mil que temos. Ou seja, o número de genes que determinam a cor da pele é bastante insignificante diante da totalidade. Trocando em miúdos, a cor da pele é um mínimo detalhe na nossa formação genética. Mas, em algum momento histórico, foi colocada como algo de relevo.

Desde os primeiros anos do tráfico negreiro, os lucros dos traficantes europeus com a atividade eram vultosos. O comércio de pessoas vindas da África tinha se mostrado muito eficaz, do ponto de vista de mão-de-obra para as lavouras de cana-de-açúcar, e altamente rentável, sob o prisma econômico. Os negros e negras vinham principalmente do centro-oeste africano, de regiões onde hoje se localizam o Sudão, Angola, Guiné e o Congo, e pertenciam, principalmente, a dois grupos étnicos: sudaneses (nagôs) e bantos.

Nesses primeiros anos no Brasil, os/as escravos/as trazidos da África não se reconheciam como “negros/as” tampouco vislumbravam o continente africano de forma homogênea, como uma coisa só; o sentimento de pertença era atrelado às suas regiões de origem específicas, ou seja, se reconheciam enquanto bantos, sudaneses (nagôs), zulus, mas não como africanos/as.

Entre os séculos XVI e XIX (1600 e 1900), os habitantes das muitas regiões africanas não se percebiam em absoluto como ‘negros’. “‘Negros’ foi de algum modo uma construção ‘branca’, já que os povos africanos enxergavam a si mesmos como pertencentes a grupos étnicos bem diferenciados e em certos casos reciprocamente hostis. Para que uma parte da população brasileira pudesse passar a se ver como negra foi preciso que o africano trazido ao Brasil enquanto escravo deixasse de enxergar a si mesmo como zulu, mandinga ou nuer”, afirma  José D´Assunção Barros, no seu livro A construção social da cor. Processo similar ocorreu com a homogeneização indígena – também construída pelos brancos “caraíbas” -, uma vez que aqueles não se reconheciam como “índios”, mas enquanto kariris, tremembés, guaranis, pataxós, etc.

Assim, a construção social do negro foi engendrada a partir da igualização – ou da indiferenciação – de uma série de outras diferenças étnicas que demarcavam as identidades locais no continente africano. A noção de um continente africano homogêneo e uno foi, portanto, uma construção europeia. As macrorregiões africanas carregam características étnicas e culturais bem diversas. Complementa Barros, na mesma obra supracitada: “Quem pela primeira vez avaliou estes povos a partir de uma identidade étnica e continental enquadrada em um lugar único foi o próprio homem ‘branco’ europeu, já que esta questão não se colocava então para os ‘negros africanos’ da época”.

Para os colonizadores, desconsiderar as diferenças internas entre as regiões africanas e, portanto, a complexidade de etnias que o “continente africano” representava era, de certa maneira, uma forma de mostrar o desprezo do europeu com a diversidade cultural dos povos africanos. A fórmula simplista – e racista – estava pronta: enquadrar um grande continente para uma grande e única categoria de negros.

Aos invasores e traficantes de escravos portugueses e de outras nações europeias interessava dar vazão e difundir a noção de uma África selvagem, de um negro atrasado cultural e socialmente. Assim, essa visão eurocêntrica do continente e dos povos africanos começou a fazer parte do imaginário coletivo, dando estímulo ao tráfico negreiro e à exploração de uma nova força de trabalho submetida às mais degradantes condições, com as devidas bênçãos da Igreja Católica.

“Construir a ideia do ‘negro’ como realidade que transcende todas as etnias, que as supera ou mesmo as cancela, era precisamente o procedimento-chave.  O negro passou a ser visto como uma realidade única e monolítica, e com o tempo foi levado a enxergar a si mesmo também desta maneira. Assim, a desconstrução da diversidade de etnias negras e das realidades culturais africanas, mergulhando-as dentro de uma grande raça localizada em um espaço geográfico único e imaginariamente homogêneo e a simultânea visão desta parte da humanidade como ‘inferior’, ao mesmo tempo em que se encarava o continente africano como lugar exterior à ‘civilização’, constitui o fundo ideológico da montagem do sistema escravista no Brasil”, pontua Barros.

Após construírem socialmente o conceito de “raça” negra e de um continente africano homogeneizado, desnudo de diferenças tribais e étnicas e dotado de uma unicidade ímpar, cabia agora aos colonizadores europeus, para efeito de justificar sua dominação e exploração sobre os negros, atestarem “cientificamente” a inferioridade desta mesma “raça”.

*Esse texto faz parte da série Consciência Negra: a questão racial, que foi publicada em novembro de 2014 na Revista Berro. Abaixo, veja todos os demais textos da série:

Ciência a serviço da escravidão

Desconstruindo o mito do paraíso racial brasileiro

Abolicionistas: lobos em pele de cordeiro

O protagonismo negro no processo de abolição

O “black power” sai às ruas

Por que o racismo ainda persiste?

Cotas raciais: combatendo a desigualdade de cor


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