Abolicionistas: lobos em pele de cordeiro



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Além do mito do paraíso racial, que se encontra presente na sociedade brasileira até hoje, há ainda uma outra mitificação que foi mantida por muitas décadas pela história tradicional:  a de que os abolicionistas brasileiros eram homogeneamente “bonzinhos” e salvaram os negros das agruras da escravidão, cabendo a estes últimos o mero papel de agentes passivos no processo abolicionista. Mentira! Essa visão distorcida dos fatos históricos esteve presente por muito tempo, inclusive entre os próprios historiadores.

Uma outra versão, a da História Social, defende que os abolicionistas estavam preocupados mais com a economia do país do que com qualquer outra coisa. Na visão deles, a escravidão deveria acabar; contudo, muito mais por razões econômicas do que por questões humanitárias. Eles queriam garantir que, ainda assim com a abolição, os interesses dos senhores donos de escravos fossem preservados. Dessa forma, na percepção abolicionista, a eliminação da condição de escravo não implicava em uma luta pelos direitos civis dos negros, e menos ainda em uma distribuição diferente do poder político-social.

À época, dois temas foram fundamentais e recorrentes nos discursos abolicionistas: o desequilíbrio social e racial de uma sociedade escravista e a não lucratividade da escravidão. “Os abolicionistas brasileiros tendiam mais a enfatizar a necessidade de ultrapassar o atraso e alcançar progresso nacional do que a promover qualquer política de reparação voltada para os ex-escravos e seus descendentes” (Abolicionismo: Estados Unidos e Brasil, uma história comparada – século XIX, Célia Marinho de Azevedo).

Por trás da bandeira de ideais nobres iluministas, escondia-se a real intenção abolicionista de preservar os privilégios da elite fazendeira. Sua visão economicista não se importava com o futuro do negro liberto, mas sim com o desenvolvimento e o “progresso” do país nos moldes das nações européias. A abolição da escravatura era apenas o pano de fundo do projeto abolicionista, que visava primordialmente a inserção do Brasil no capitalismo industrial.

Para se entender todo o pragmatismo das posturas abolicionistas, é necessário analisar como e em quais circunstâncias surgiu esse movimento no Brasil. O abolicionismo no Brasil, que começa a se enraizar entre intelectuais e políticos brasileiros por volta da década de 1860,  surge a partir de um grande movimento a nível mundial contrário à escravidão, influenciado pelas idéias iluministas. O abolicionismo surge quase como uma consequência inevitável de todo esse contexto social. Contudo, os abolicionistas brasileiros sempre deixaram claro que a sua intenção não era revolucionária, mas tão-somente reformista.

No período de efervescência do movimento contra a escravidão, até mesmo os fazendeiros proprietários de escravos, percebendo a oportunidade que a situação ensejava, iniciam um processo de conceder alforrias. No entanto, encoberta pela aparente sensibilidade humanitária, o que se escondia era uma estratégia cruel de aprisionamento disfarçado. A idéia, maquiavelicamente pensada, era convencer os escravos de que a alforria necessariamente passava pela obediência e fidelidade ao senhor. Dessa forma, “a concentração do poder de alforria exclusivamente nas mãos dos senhores fazia parte de uma ampla estratégia de produção de dependentes, de transformação de escravos em negros libertos ainda fiéis e submissos a seus antigos proprietários” (A construção social da cor, José D´Assunção Barros).

Assim, fica evidente que os abolicionistas, considerados por um corrente da historiografia tradicional como revolucionários em sua luta contra a escravidão e o racismo, surgiram, na verdade, a partir de um movimento popular contra a escravidão que brotou espontaneamente das ruas – movimento este influenciado por mudanças e transformações internacionais – e fizeram apenas o papel de porta-vozes de um processo de transição, que tinha em seu bojo como principais objetivos a manutenção do estado das coisas e a consequente entrada do Brasil no mundo capitalista. “A falta de uma profundidade moral explicava porque os abolicionistas puderam atacar o privilégio e a injustiça, mas, ao mesmo tempo, foram incapazes de visualizar o futuro do país sobre uma nova base, incluindo-se medidas sociais que beneficiassem os libertos” (Abolicionismo: Estados Unidos e Brasil, uma história comparada – século XIX, Célia Marinho de Azevedo).

*Esse texto faz parte da série Consciência Negra: a questão racial, que foi publicada em novembro de 2014 na Revista Berro. Veja abaixo todos os outros textos da série: 

A construção social da “raça” negra

Ciência a serviço da escravidão

Desconstruindo o mito do paraíso racial brasileiro

O protagonismo negro no processo de abolição

O “black power” sai às ruas

Por que o racismo ainda persiste?

Cotas raciais: combatendo a desigualdade de cor


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