1968: o ano da rebelião mundial estudantil



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(Ilustração: Levi Noli/Revista Berro)

Ainda contextualizando sobre o terreno histórico onde vicejou o jornalismo alternativo na ditadura civil-militar brasileira, seguimos analisando o cenário político-cultural da época, antes de entrar propriamente nas ações encampadas por estes jornais.

Não sou historiador, mas penso que a historiografia deveria considerar 1968 como o marco inicial de uma nova modernidade. É notório que parte relevante dos movimentos políticos e culturais, da ecologia à crítica ao consumismo, passando pelo feminismo, movimentos de conscientização negra, organizações dos direitos LGBTQIA+, não-governamentais e defensoras dos direitos humanos, brotou naquele ano com uma saliência talvez nunca antes vista. Viscerais manifestações políticas, sexuais, comportamentais e éticas surgiram em seus 12 meses.

Filósofos/as, sociólogos/as e intelectuais olham para 1968 sem saber, de modo definitivo e conclusivo, o que se passava na mente daquela geração que se entregou tão passionalmente a uma luta que, até hoje, não se tem precisão concreta dos seus reais objetivos. A geração de 1968, defende Zuenir Ventura em 1968: O ano que não terminou, “experimentou os limites de todos os horizontes: políticos, sexuais, comportamentais, existenciais, sonhando em aproximá-los todos. Era uma juventude que se acreditava política e achava que tudo devia se submeter ao político: o amor, o sexo, a cultura, o comportamento”. 

O mais impressionante é que em uma época décadas antes do que viria a ser o mundo globalizado e hiperconectado do século XXI, ocorreu uma combustão generalizada e espontânea de rebeldia mundo afora, tendo como denominador comum a necessidade em contrariar a ordem pré-estabelecida. Esses nervos à flor da pele em nível global não foram forçadamente combinados, simplesmente aconteceram. E é exatamente nessa espontaneidade mundial que reside o mito de 1968, uma vez que a dimensão mundial das manifestações não fora combinada ou organizada. 

Um setor social destacou-se e logo assumiu a vanguarda das manifestações, passeatas, ocupações de prédios e praças e sit-ins pelo mundo todo: o movimento estudantil. Isto talvez explique o fato da frase “não confie em ninguém com mais de 30 anos” tornar-se tão corriqueira naquele ano na boca de jovens ao redor do planeta. “A maioria das pessoas que chegaram em campi universitários em meados da década de 1960 tinha um profundo ressentimento e desconfiança de qualquer tipo de autoridade. As pessoas em posições de autoridade em qualquer parte não mereciam confiança”, sublinha Mark Kurlansky, em 1968 – O ano que abalou o mundo

Manifestações contestatórias espalhavam-se pelo mundo ordinariamente. Na América Latina, as reivindicações eram mais políticas; na Europa e nos Estados Unidos, onde a contracultura já demonstrava maior pujança do que em terras latino-americanas, o corpo estudantil reivindicava transformações comportamentais, influenciado pelo movimento dos direitos civis. “As universidades das cidades francesas, italianas, alemãs e espanholas mal funcionavam. Em junho, violentos confrontos entre estudantes e policiais irromperam no Rio de Janeiro, em Buenos Aires e Montevidéu e no Equador e Chile. Em 6 de agosto, uma manifestação estudantil no Rio foi cancelada quando apareceram 1.500 soldados de infantaria e policiais, com 13 tanques leves, 40 veículos blindados e oito jipes com metralhadoras”, lembra Kurlansky.  

As manifestações estudantis tornaram-se tão populares e comuns a ponto de o diário nova-iorquino The New York Times lançar mão de um editorial pontuando que “o tumulto, o sit-in e a manifestação são a moda da vanguarda nos campi do mundo, este ano. Provar a alienação da sociedade é estar in em universidades tão distantes quanto Tóquio, Roma, Cairo e Rio de Janeiro”. 

Obviamente, se nem a polícia com cassetetes e armas e, em alguns países, como o Brasil e México, com ordens “para matar”, conseguiam esfriar o movimento estudantil, não seriam editoriais de jornais conservadores que iriam arrefecer a luta daquele movimento. Em abril de 1968, os estudantes da Universidade de Columbia, em Nova Iorque, liderados por Mark Rudd, ocuparam cinco prédios da instituição e a fecharam. “Na primavera de 68, as manifestações universitárias tinham virado um acontecimento tão corriqueiro nos Estados Unidos que até estudantes de escolas secundárias e dos últimos anos do ginásio aderiram às manifestações”, pontua Kurlansky. 

Naquele ano, o mundo estava em combustão. De acordo com Kurlansky, na Itália, os estudantes protestavam contra instalações inadequadas no campus da Universidade de Roma; na Alemanha, liderados por Rudi Dutscke – Rudi, o Vermelho –, o mais velho dos líderes estudantis alemães, os estudantes se reuniam para discutir questões alemãs, principalmente condizentes com a educação universitária e a infra-estrutura das universidades; na Espanha, os manifestantes protestavam contra a ditadura fascista de Francisco Franco; no Japão, protestavam violentamente contra a presença de militares americanos em seu território; no Reino Unido, os estudantes, que começaram protestando contra a Guerra do Vietnã, logo depois passaram para questões nacionais, como verbas para a educação e o controle das universidades. 

O maio francês 

Se analisarmos com profundidade o que ocorreu na França naquelas quatro semanas incendiárias de maio de 1968 podemos apontar que ali houve uma guerra, protagonizada entre estudantes e policiais, entre operários e governo, entre a sociedade e o establishment. Como compreender o que ocorreu naquele mês nas ruas de Paris? Como explicar aquela fúria, que começou com os estudantes, mas depois espalhou-se por setores civis, operários, sindicais, enfim, para a população francesa?

Segundo Kurlansky, é de impressionar porque a França passava por um período de crescimento econômico e o país estava em paz desde o fim da guerra na Argélia. Aproveitando a bonança econômica que a França vivia nos anos de 1960, um número cada vez maior da população obtinha educação superior. No entanto, esse número crescente de universitários/as não foi acompanhado por melhorias na infraestrutura das universidades tampouco por uma reforma concreta do ensino superior francês. Esses fatores, apesar de aparentemente banais, seriam os combustíveis para o incendiário maio de 1968 na França.

As universidades francesas estavam apinhadas de estudantes. De 1958 a 1968, a população universitária saltou de 175 mil para incríveis 530 mil, o dobro do número de estudantes que tinha a Grã-Bretanha, por exemplo. Somente a Universidade de Paris concentrava 160 mil estudantes. Foi por isso que quando começaram as manifestações, as causas estudantis atraíram uma massiva participação

Outro fator que contribuiu para a revolta da juventude francesa foi o rígido sistema de ensino na França. A universidade francesa era uma absoluta autocracia, com as decisões sendo tomadas sempre de forma engessada e hierárquica. O corpo estudantil francês não decidia nada sobre os rumos da universidade. 

Associando os fatores que podem ter gerado o maio francês, percebemos que muitos deles estavam obscurecidos pela prosperidade econômica que passava a França naqueles anos de 1960, mas que, somados e em iminente combustão, poderiam paralisar um país inteiro, como ocorreu.

De acordo com Kurlansky, “escondidos dentro desta sociedade entediada, demasiado abarrotada, complacente, havia elementos quase despercebidos – uma juventude radicalizada, com um líder geriátrico desesperançadamente antiquado, universidades superpovoadas, operários irados, um repentino consumismo escravizando alguns e enjoando outros, agudas diferenças entre gerações e talvez até o tédio, em si – que, quando colocados juntos, podiam ser explosivos”. 

E realmente explodiram. Em 2 de maio, a Universidade de Paris, na tentativa de esvaziar o movimento estudantil, ordenou seu líder Cohn-Bendit a comparecer a uma junta disciplinar. (Bendit, mais conhecido historicamente como “Dani, Le Rouge”, teve papel crucial nas semanas seguintes nas barricadas daquele mês na França). Foi o estopim para irar o corpo estudantil de Nanterre, que decidiu interromper as aulas para protestar contra essa medida. O Ministério da Educação decidiu extraordinariamente fechar a universidade. Como diz o ditado, o tiro saiu pela culatra. As ações estudantis, antes restritas a Nanterre, no subúrbio, deslocaram-se para o centro de Paris. A multidão de estudantes de Nanterre rumou em direção a Paris, para a Sorbonne. Depois desse começo agitado, a escalada foi contínua. 

As manifestações nas ruas cresciam exponencialmente. E serviram para unir uma sociedade marcadamente estratificada. “Pela primeira vez, naquela sociedade rígida, formal, do século XIX, todos conversavam com todos”, diz Kurlansky. Essa interação entre setores sociais impulsionou sobremaneira o maio parisiense. Em 13 de maio, os sindicatos orquestraram conjuntamente uma greve geral. A França parou. Enquanto o movimento estudantil realizava suas manifestações nas universidades e próximo aos campi, dez milhões de operários entraram em greve, as lojas de alimentos se esvaziavam, o trânsito sufocou, e o lixo se amontoava por Paris e nas principais cidades francesas

Na tentativa de conter o ímpeto das manifestações, De Gaulle apresentou um pacote de medidas que satisfazia as demandas operárias, inclusive com um robusto aumento salarial de trinta e cinco por cento. Algumas das demandas dos estudantes também foram contempladas: as universidades passariam por uma sensível reforma estrutural, bem como na relação docente-discente, tornando-se levemente mais democrática. Com estas medidas, o presidente conseguiu arrefecer o movimento e despontou novamente como “salvador da pátria”.

Estava decretado o fim do mês mais agitado da história da sociedade moderna francesa. Ainda hoje, maio de 68 é o maior movimento de massa da história da Europa desde a segunda metade do século XX. Contudo, como bem pontuou Kurlansky, “o resultado foi reforma, não revolução”, como sonhavam os/as estudantes. Incrivelmente, apesar da violenta repressão policial, apenas três pessoas morreram durante os trinta e um dias daquele insólito mês. 

A luta estudantil brasileira

O Brasil, logicamente, não ficaria de fora desse turbilhão de rebeldia do ano de 1968. Passeatas foram realizadas com imensa participação popular, tendo como vanguarda a classe média urbana, capitaneada pelo movimento estudantil, endossada por artistas, intelectuais e religiosos/as. De acordo com Zuenir Ventura, “ “é provável que os estudantes inscritos nas escolas e faculdades brasileiras de 66 a 68 tenham passado mais tempo na rua do que nas salas de aula. De 66 até 68, quando se tornaram habituais os choques com a polícia, a população das grandes cidades se acostumou àquela espécie de guerra campal que todas as semanas, quando não todos os dias, opunha as pedras dos estudantes aos cassetetes, balas e bombas de gás da PM. A correria dos jovens na contramão dos carros – uma inovação estratégica daquele ano  –, o cheiro de gás lacrimogêneo, o coro de ‘Abaixo a ditadura’ pareciam incorporados à paisagem urbana daqueles tempos”.        

E foi em um desses confrontos com os policiais que tombou morto com um tiro no peito, em 28 de março de 1968, no restaurante universitário do Calabouço, no Rio de Janeiro, o estudante Edson Luís de Lima Souto. A morte de Edson foi a primeira de um estudante pela ditadura e, por isso, representou o início das grandes mobilizações e passeatas estudantis naquele ano. Esse episódio é bastante significativo em termos históricos, pois “pode-se dizer que tudo começou ali, foi o primeiro incidente que sensibilizou a opinião pública para a luta do movimento estudantil. Como cinicamente lembrava a direita, ‘era o cadáver que faltava’”, ressalta Ventura. Aquele óbito comoveu a sociedade civil brasileira a tal ponto que 50 mil pessoas acompanharam emocionadas o cortejo do corpo do secundarista ao cemitério São João Batista. A insatisfação com o governo agora não era apenas estudantil, mas de toda uma sociedade igualmente indignada e revoltada com a forma brutal como o jovem havia sido morto.

Nas semanas que sucederam a morte de Edson Luís, foi lugar-comum o confronto entre polícia e estudantes nas ruas. Manifestações que se encontravam em estado de iminência fora do eixo Rio-São Paulo explodiram por todo o Brasil.

“Em Fortaleza, o Serviço de Informações dos Estados Unidos, o USIS, era destruído por manifestantes; em Recife, 2 mil universitários realizavam uma passeata proibida; em Belém, estudantes eram retirados à força da universidade, fechada pelo reitor; em Natal, uma greve paralisava todas as faculdades; em Maceió, protestos; na Bahia, um estudante ferido por um policial revoltava a população; em Brasília, a universidade permanecia ocupada pelos estudantes cercada pela polícia; em Minas, três estudantes eram baleados, um policial gravemente ferido por um paralelepípedo e um carro oficial incendiado; em São Luís, os muros amanheceram pichados : ‘O Brasil é o novo Vietnã’. Em Goiânia, um policial civil invadiu a Catedral Metropolitana, onde se reuniam estudantes, e feriu a bala dois deles”, elenca o autor de 1968: O que fizemos de nós.

Entretanto, o pior estava por vir. No final de junho, durante os dias 19, 20 e 21, quando o governo Costa e Silva temia que se repetisse aqui o maio francês, as ruas do Rio de Janeiro pareciam muito com a Paris das barricadas, principalmente no dia 21, que depois ficaria conhecido por “sexta-feira sangrenta”. As ruas da capital fluminense eram verdadeiros cenários de guerra, com excitantes batalhas campais. De acordo com Ventura, a sexta-feira, 21 de junho, no Rio de Janeiro, talvez tenha causado mais feridos do que as barricadas de Paris no mês de maio todo. Durante os 21 anos de ditadura militar, “foi o que mais se pareceu com uma insurreição popular”, lembra Ventura. O balanço da “guerra” registrou “23 pessoas baleadas, 4 mortas, 35 soldados feridos a pau e pedra, 6 intoxicados e 15 espancados pela polícia. No DOPS, à noite, amontoavam-se cerca de mil presos”.

Os militares perderam de vez a batalha pela conquista da opinião pública nos dias 19, 20 e, principalmente, no sangrento 21 de junho. A morte de Edson Luís havia sido o estopim à medida que a “sexta-feira sangrenta” representaria a implantação, ainda que momentânea e fugaz, do ódio ao governo pela classe média, ocasionado pela cobertura audaciosa de jornais como o Correio da Manhã e Jornal do Brasil, ou pela experiência própria de quem viveu as barricadas. “As manifestações estudantis emocionavam a classe média, o que forçava a imprensa convencional a manter seus espaços abertos à cobertura crítica da repressão”,  pontua Bernardo Kucinski, em Jornalistas e revolucionários: nos tempos da imprensa alternativa

Após o torpor inicial promovido pelas batalhas campais da “sexta-feira sangrenta”, intelectuais, jornalistas e artistas começaram a se mobilizar para dar um alento à sociedade. Depois de muita articulação política, os negociantes, capitaneados pelo intelectual Hélio Pellegrino e pelo poeta Ferreira Gullar, convenceram o então governador do Estado da Guanabara (atual Rio de Janeiro), Negrão de Lima, a permitir uma passeata sem a presença da polícia nas ruas. A participação popular na marcha coletiva do dia 26 de junho foi massiva a tal ponto que o evento ficou conhecido como a Passeata dos Cem Mil. Esta, certamente, marcou o epicentro da luta estudantil no Brasil durante o regime militar.

Entretanto, o movimento estudantil que no segundo semestre de 1968 ganhava uma pujança nunca antes vista com o apoio de parte da classe média, de um setor da mídia – sobretudo dos impressos –  e de diversos setores da esfera sindical, armou sua própria arapuca. Ao realizar o XXX Congresso da UNE (União Nacional dos Estudantes), organização à época clandestina, mais de mil estudantes se reuniram em Ibiúna, interior de São Paulo, e deram um doce na boca do aparato repressor militar. De acordo com Ventura, o Congresso da UNE foi mais que um erro estratégico, foi um “ato politicamente suicida. Não se conhece uma organização capaz de reunir cerca de mil pessoas clandestinamente”.

Na manhã chuvosa de sábado, 12 de outubro, a repressão invadiu o congresso estudantil, prendendo 920 estudantes e suas principais lideranças. Foram precisos nove ônibus, cinco caminhões, um microônibus, duas Kombi e uma Rural Willys para embarcar todos os estudantes presos. Entre eles, seus destacados líderes – Luís Travassos, José Dirceu e Franklin Martins. Foi o início do fim das grandes manifestações estudantis populares.

“Com suas principais lideranças na cadeia, o ME estertorava. Iam longe os tempos em que era capaz de colocar 100 mil pessoas na rua, ou mesmo 150 mil como no dia 4 de julho. […] Não eram mais movimentos de massa, mas agitações promovidas por piquetes estudantis que não sensibilizavam nem a própria classe, nem a população – ao contrário, atemorizavam”, afirma Ventura. 

1968 foi realmente um ano diferente. Segundo Ventura, pode-se amar ou odiar aquele ano, o que não se pode é expulsá-lo da história por capricho, mesmo porque ele se recusa a sair à força. Já Kurlansky traz à tona a velha luta de classes de Marx em sua análise. O autor de 1968 – O ano que abalou o mundo conclui que uma das grandes lições que podemos carregar daqueles doze meses explosivos foi que “quando as pessoas tentam mudar o mundo, outras pessoas que estão interessadas por uma questão de direitos adquiridos em manter o mundo como está, não se deterão diante de nada para silenciá-las”. 

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A série O jornalismo alternativo na ditadura militar é publicada sistematicamente no #siteberro.

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Clique nos links abaixo para acessar os textos anteriores:

I. O contexto sócio-histórico do nascedouro da imprensa alternativa no Brasil

II. A revolução dos “bichos-grilos”: o nascimento da contracultura

III. O movimento dos direitos civis: as lutas feministas e negras

IV. Sexo, drogas e rock’n’roll: o movimento hippie 

V. Arte corajosa nos trópicos


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