Edifício Master: um documentário sobre você



5 Comentários



(Foto: Divulgação)

Antes de apresentar o filme (Edifício Master/2002), é imprescindível apresentar o diretor. Eduardo Coutinho é o guru do documentário brasileiro. Guru mesmo, com toda a carga mística da palavra. Transcende o patamar de mestre cinematográfico para se especializar na leitura de almas. Alcança o âmago dos entrevistados como se residisse nele. Representa um contexto macro da realidade em depoimentos fragmentados dela, como se a sua própria percepção fosse um contínuo diálogo entre grande-angulares que leem o mundo e teleobjetivas que o escrevem.

Sua maestria reside numa hipersensibilidade para identificar potencial no objeto de pesquisa, na empatia que causa no objeto permitindo que a fala seja livre e não manipulada e em uma busca por sincronizar o impacto do relato que permanece na montagem com a veracidade do relato feito diante da câmera, concedendo o tempo necessário para que esse objetivo seja alcançado.

Diminuindo a pagação de pau (merecida!) e assumindo um caráter mais informativo: quem é o Coutinho além de um cara muito foda? Além de ter trabalhado nos tempos áureos do Globo Repórter, em meados dos anos 70, abrindo espaço na televisão brasileira para médias documentários com influência nítida do cinema-verdade francês de Jean Rouch (socioetnografia, retrato fidedigno da realidade antropológica como ela é, etc.), Coutinho foi o cara que fez o marcante (!) “Cabra Marcado Pra Morrer”. Inicialmente uma ficção que retratava a vida de João Pedro Teixeira, líder paraibano de ligas camponesas assassinado em uma manifestação, e que após as filmagens serem interrompidas em 1964 pelos militares, que estavam noiando que era uma produção comunista cubana, o projeto foi retomado 17 anos depois no formato de documentário com depoimentos dos camponeses que participaram do protesto.

Transitando entre a Boca do Lixo, a favela, o sertão e retratando todos os universos que constitui esse país continental, Coutinho chega à classe média. Mais especificamente, a classe média-baixa carioca de Copacabana. E aumentando mais ainda o zoom do maps, Edifício Master: “a uma esquina da praia, 276 apartamentos conjugados, uns 500 moradores, 12 andares, 23 apartamentos por andar”, como é anunciado nos primeiros minutos do documentário na inconfundível voz do mestre. De toda essa galera, Coutinho sintetiza a atmosfera do edifício (e da classe média; e do Brasil; e da humanidade) em 37 depoimentos recolhidos em um árduo e intenso trabalho de produção. Durante três semanas a equipe se alojou em um dos apartamentos se empenhando na pesquisa prévia e imergindo no universo dos moradores. Enfrentaram algumas dificuldades na saga em busca de depoimentos frutíferos, em que a hipersensibilidade de Coutinho exigia não só apenas relatos pontuais, mas que a expressividade (além da verbal) do entrevistado fosse significativa e empática.* Sem pauta, mas apenas com a premissa da questão: “por que você veio morar aqui?”, Coutinho consegue desvendar histórias de vida plurais, diversas, ímpares, mas que constituem fragmentos da mais genuína e ampla identificação com o outro, fugindo assim do tema da alteridade que é tão batido nos documentários brasileiros.

Quem tá ali somos nós, nossos pais, nossos avós, nossos vizinhos. O que se explora é a nossa projeção e não a nossa compaixão. Todos nós temos histórias que são tão particulares como universais. Os depoimentos registrados com uma câmera fixa, asséptica, fechada, sem filtros e recursos que poderiam desviar o foco são extraídos sutilmente por um Coutinho mais terapeuta do que cineasta. Passando pelo síndico moralista, o casal conflituoso que briga diante da câmera, o outro casal de velhinhos que se conheceu por anúncios no jornal, a adolescente que foi estudar na capital e ainda tá meio perdida, os meninos do projeto musical bizarro e pretensioso, as irmãs coroas interdependentes e caretonas, a jovem insegura e problemática, a menina que engravidou e foi expulsa de casa, a prostituta que topou brincar de assumir o personagem dela mesma e até o velhinho solitário que conclama com o escasso ar de seus pulmões: “I DID IT MY WAY!”.

E o que faz com que Edifício Master seja tão especial se esses temas tratados estão espalhados pelos quatro cantos? A pergunta é retórica e a resposta é óbvia: a sensibilidade de captação de Eduardo Coutinho. A exposição das escolhas de vida de cada um, em lugar do julgamento pré-concebido. A sutil abordagem política que passa longe do panfletário. A busca pela estética e não pela cosmética. A busca pela subjetividade e não pela verdade. A busca pela universalização das particularidades. E por fim, o encontro. O encontro que mostra nos planos finais que transitam de janela para janela que todos (nós) fazem(os) parte da mesma unidade fragmentada e solitária, sem saber.

*Pra quem ficar abismado e tiver interesse sobre o processo criativo e produtivo do Edifício Master pode conferir uma espécie de making-off filmado pela Beth Formaggini, produtora do documentário. Chama-se “Coutinho.doc – Apartamento 608”.

///

Gabi Trindade é meio pernambucana, meio cearense, faz meio jornalismo e meio audiovisual


Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *