O Brasil precisa democratizar as comunicações



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Helena Martins

Em outubro de 2013, a Argentina deu um passo histórico rumo à democratização das comunicações. Depois de quatro anos de batalhas judiciais, a Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual, conhecida como Ley de Medios, foi considerada completamente constitucional pela Corte Suprema do país. A proposta, fruto da elaboração de movimentos, ativistas e organizações sociais, divide o espectro eletromagnético de forma equânime entre entes públicos, privados e privados sem fins lucrativos. Com isso, meios vinculados às universidades, comunidades e aos povos originários, entre outros grupos, poderão, finalmente, ocupar espaço importante no sistema de comunicações. Uma mudança que poderá significar a ruptura com o lugar marginal destinada aos meios não comerciais, historicamente, em toda a América Latina.

Conforme afirmou, em 2012, o rela­tor da ONU para a Liber­dade de Opinião e de Expressão, Frank La Rue, a lei argentina é avançada e deve ser tomada como modelo para outros países. É o que esperam os movimentos que pautam a democratização dos meios e a defesa do direito à comunicação, no Brasil. Organizados em torno da campanha “Para Expressar a Liberdade”, esses grupos coletam assinaturas em apoio ao Projeto de Lei de Iniciativa Popular da Mídia Democrática, que propõe, dentre outras medidas, o incentivo ao sistema público e comunitário de comunicação e a criação de mecanismos para impedir a concentração da propriedade dos meios e a formação de monopólios midiáticos, por meio da proibição da propriedade cruzada e da distribuição de verbas publicitárias.

A proposta atende à reivindicação da sociedade, que quer uma mídia mais plural e democrática. De acordo com pesquisa realizada pela Fundação Perseu Abramo, em maio deste ano, após serem informados de que a maior parte dos meios de comunicação no Brasil pertence ou é controlada por cerca de dez famílias, 40% dos entrevistados avaliaram que isso é ruim para o país. Para 35% dos que participaram a estudo, os meios costumam defender os interesses dos seus próprios donos. E 32% acreditam que eles defendem os que têm mais dinheiro. Já pesquisa realizada pelo Data Popular e Instituto Patrícia Galvão, em setembro, mostrou que 84% dos entrevistados acham que o corpo da mulher é usado para promover a venda de produtos, e 58%, que as propagandas de TV mostram a mulher como um objeto sexual. Contrariando os discursos que pregam a liberdade das empresas veicularem o que bem entenderem, o estudo revela que 70% defendem punição aos responsáveis por propagandas ofensivas. Outra análise realizada por aquelas organizações aponta que a forma como está estruturada a propriedade dos meios de comunicação do país também incomoda 63% dos pesquisados, que são contrários à posse de emissoras de rádio ou TV por políticos.

Outro fator também faz com que mudanças no setor sejam urgentes: o novo cenário desenhado pelas mudanças no sistema de comunicações. A disseminação das tecnologias de informação e comunicação – cuja importância talvez as denúncias de espionagens e a presença constante de smartphones e redes sociais em nossas vidas tenham ajudado a elucidar – mudaram a forma como a sociedade se organiza. Essas mudanças interferem diretamente na vida de todos nós – e, vale ressaltar, em nossa democracia. Isso porque esse segmento é, hoje, um setor de ponta da economia e também um dos componentes da estruturação do que somos, do que pensamos e de como nos relacionamos com os outros.

Banner da campanha pela democratização da comunicação
Banner da campanha pela democratização da comunicação

Muito do que nossa sociedade será, ao longo do século XXI, dependerá das escolhas que Estado e cidadãos tomarem no campo das comunicações. Se for transformada em uma arena democrática, a mídia poderá contribuir com o debate público e a garantia de direitos. Do contrário, se tornará, ainda mais, uma alavanca a serviço do capital. Essa é uma disputa que se desenrola aqui e agora. Por um lado, a internet e outras teconologias mostram sua potência ao possibilitar a organização de protestos e a diversificação das vozes que chegam a um público amplo, muitas das quais, inclusive, colocam em questão a mídia tradicional. Por outro lado, nos últimos dez anos, a convergência midiática foi acompanhada por um aumento da concentração da propriedade dos meios e, consequentemente, do poderia econômico e cultural de seus detentores. Isso para não falarmos nas iniciativas de controle da internet , do estabelecimento de mecanismos de censura ou da intensificação da defesa do direito autoral, que restringe o uso de conteúdos diversos.

Apesar das reivindicações e da importância do setor para a sociedade e para a democracia brasileira, o que temos visto no país é preocupante. O Governo Federal mantém-se calado quando o assunto é a democratização da comunicação e, por outro lado, movimenta-se ao encontro das empresas de telecomunicações e mantém intocável o poder do setor de radiodifusão, como a Rede Globo. As poucas iniciativas do Ministério das Comunicações em termos de regulação do setor não passam de mudanças administrativas fragmentadas. Já alterações mais profundas estão sendo levadas a cabo com pouco ou nenhum debate público, a exemplo da discussão em torno do uso da faixa dos 700MHz. Para favorecer as telecomunicações, por exemplo, o governo pretende liberar a faixa dos 700MHz para a banda larga móvel, o que pode fazer com que emissoras como a TV Senado, TV Câmara, emissoras educativas e, inclusive, a TV Brasil corram o risco de ficar sem espaço no espectro com o fim das transmissões analógicas. O que poderá significar a interrupção da nossa caminhada rumo à constituição de um sistema público de comunicação, bem como de diversas iniciativas de comunicação comunitária.

O Brasil tem papel fundamental no debate sobre as comunicações. Os rumos que seguirá diante da convergência e dos diversos interesses em jogo no campo das comunicações devem influenciar políticas desenvolvidas em países que compõem o Mercosul e também o BRICS (Brasil, Índia, China, Rússia e África do Sul). Se o governo não se movimenta – ou, pior, caminha no sentido de tratar a comunicação como negócio e não como direito -, as organizações e movimentos sociais fazem a sua parte e lutam pela democratização das comunicações, seja por meio do exercício cotidiano da radiodifusão comunitária, da produção de revistas, jornais e fanzines ou da mobilização para que uma nova lei geral que regule o setor seja discutida com a sociedade e aprovada no Congresso Nacional. Iniciativas como essas podem mudar o rumo da história, fazendo com que ela seja muito mais diversa cultural e politicamente do que o que vimos até aqui.

Helena Martins é jornalista e integrante do Intervozes


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