Ana quem?



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Ilustração: Rafaella

Joana Bê

Deitada no escuro, Ana fazia pequenos balanços das pequenas decisões do dia. Desde muito cedo – e como a maioria das pessoas – escutava sua família (em especial sua madrinha) dizer que nossas escolhas nos definem. Nesse exato momento, Ana tenta entender como ter tomado chá ou como não ter atendido aquele telefonema a definia. Quase sorria displicente, mas o que pensava não tinha tanta força para mexer tantos músculos faciais. Era só uma sombra de desdém.

Nesse movimento de retroceder ao dia, mexendo no celular onde se lia “2 chamadas não atendidas”, Ana pensava nas pequenas decisões, nas “grandes e poderosas escolhas” da vida. Escolheu limpar a mensagem do visor.

Mexeu um pouco mais no celular. Correndo os dedos por entre os números, desenhou uma seqüência quase que automática. A memória de um número antigo correu rapidinho nas teclas e uma nova combinação aparecia no visor – uma combinação que ela nem tinha mais na agenda.

Ana pensou se ainda seria esse o número. Talvez fosse, mas o certo é que não importava muito se era ou não. Mesmo que a voz do outro lado continuasse a soar como antes, não havia mais palavras que se encaixassem. Apagou os números tranquilamente, se mexeu um pouco no escuro, se levantou para ir ao banheiro e ao mijar, com sua calcinha lilás com branco no meio das canelas, pensou em algo meio incômodo.

Voltou um pouco apressada para o escuro, subiu na cama, criou um raio de luz apertando novamente as teclas do seu celular fajuto e discou. Talvez ainda fosse o mesmo.

Chama, chama, chama, chama, chama, chama, “alô”.

Ana prende a respiração. Ainda era o mesmo número. Naquela hora, Ana mergulha no imenso buraco onde ecoava os conselhos da madrinha, um buraco que se abria como um poço abaixo dela, escuro e úmido. Finalmente, e não mais quase-sorrindo, Ana entendeu. Não era simplesmente a escolha do chá que era importante, não era a escolha de não atender a chamada do amigo, não era a escolha de ir ao parque na quarta que a definia. O que a definia em boa parte era o café que ela não tomou por conta do chá, a festinha que deixará de ir por causa da ligação perdida e, principalmente, era aquela voz no telefone que continuava a atender no mesmo número que a definia.

Compreendeu que, muito possivelmente, era a soma de todas as coisas que não foi e de todas as pessoas deixadas pra trás que a definia. As perdas a faziam ser Ana que deitava no escuro e levantava a ponta dos pés ao estar sentada na privada. Ana era o digitar de um número perdido na lembrança, esquecido após tantas pequenas escolhas feitas. Ana era certo desdém, certo quase-sorriso.

Aquela voz do outro lado da linha era Ana.

“Alô”, ele continuava. “Quem é?”

Ana tentava recordar quanta coisa havia deixado pra trás, quanta gente perdida no tempo e no espaço… “Quem ocupou o lugar de fulano?! Por quê?! Quando comecei a pensar que não existia canto na minha vida pra todo mundo que me cruza?!”, pensava de forma acelerada e se gostando menos a cada segundo que corria.

“Alô! Quem é?!”

Ana não sabia responder.

Escolheu o não-sorrir.

Joana Bê é historiadora, acredita em luta de classes, mas não acha astrologia besteira


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