Desconstruindo o mito do paraíso racial brasileiro



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Não seria exagero afirmar que o mito do paraíso racial contribui até os dias de hoje para negar à maioria da população brasileira uma igualdade de oportunidades. Gilberto Freyre, um dos mais conhecidos sociólogos brasileiros, ajudou a sustentá-lo em seu Casa-Grande & Senzala (1933) com a tese de que o Brasil era “um país excepcional por ter sido capaz de engendrar a mais perfeita fórmula de equilíbrio de todos aqueles antagonismos mediante a mistura física e cultural de diversos povos desde tempos coloniais”.

A imagem da ausência de preconceitos e da alegada harmonia racial no Brasil permitiu o prolongamento da escravidão no país. Não à toa o Brasil foi a última nação das Américas a libertar seus negros. Dentro do contexto de incentivo à imigração, a áurea criada de uma terra sem preconceitos e de povo cordial servia como mensagem tranquilizadora aos europeus que vinham em massa trabalhar por estas bandas do Atlântico.

De início, o mito do paraíso racial brasileiro contribuiu para afastar de vez a idéia de abolição, uma vez que estas teses serviam de combate à propaganda abolicionista e também para não permitir que as autoridades políticas agissem diante das ameaças à propriedade de escravos. Num segundo momento, “imigrantistas e abolicionistas convergiram para a imagem de uma sociedade escravista sem racismo, onde o negro e o mestiço, uma vez livres, viveriam em pé de igualdade com o branco, sem restrições legais e nos costumes” (Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites do século XIX, Célia Marinho de Azevedo).

Numa terceira etapa desse processo de construção do mito, os próprios abolicionistas, endossando o que já diziam os emancipacionistas e imigrantistas, e fazendo papel de advogados do diabo – no caso, dos escravocratas -, se encarregaram de dar vazão à idéia de um país racialmente sem conflitos. O pernambucano Joaquim Nabuco, um dos mais lembrados abolicionistas brasileiros, foi mais um a defender a imagem de um país sem preconceitos raciais. “Por serem simpáticos às propostas imigrantistas ou simplesmente por se preocuparem em manter a direção e o controle do movimento abolicionista para assegurar a paz e a continuidade dos interesses capitalistas, o fato é que os abolicionistas contribuíram grandemente para produzir nesta época a imagem do paraíso racial brasileiro” (Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites do século XIX, Célia Marinho de Azevedo).

Este mito percorreu todo o Brasil Colônia, adentrou os períodos regencial e imperial, continuou na fase republicana e ainda hoje convive com o imaginário coletivo da sociedade brasileira, cuja maior parte acredita mesmo que no Brasil não há racismo, que somos um país onde todos têm direitos e oportunidades iguais. Essa maneira deturpada de enxergar a realidade objetiva traz desdobramentos negativos à população negra do país. O mito da democracia racial é uma grande falácia sustentada historicamente pela elite, apoiada por setores conservadores da sociedade, com o único objetivo de manter o estado das coisas do jeitinho como está, ou seja, com a população negra excluída e negligenciada dos processos sociais, educacionais e políticos do país.

Em resumo, o mito do paraíso racial brasileiro foi uma das “criações” mais prejudiciais, em toda a história brasileira, à luta e ao combate contra o racismo, uma vez que, a partir do pressuposto de que não há divisão de “raças” no país, não se atacam as raízes e a espinha dorsal do preconceito racial.

*Esse texto faz parte da série Consciência Negra: a questão racial, que foi publicada em novembro de 2014 na Revista Berro. Veja abaixo todos os outros textos da série: 

A construção social da “raça” negra

Ciência a serviço da escravidão

Abolicionistas: lobos em pele de cordeiro

O protagonismo negro no processo de abolição

O “black power” sai às ruas

Por que o racismo ainda persiste?

Cotas raciais: combatendo a desigualdade de cor


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