0 Comentários
Bento chegou ao centro da cidade caminhando estreito, até avistar seus amigos em frente ao Bar no Porão. Acreditara nas palavras da ex-namorada, mas a loucura que lhe parecia essa história, a insensatez de alguém matar o outro por conta de um relacionamento de anos atrás, o fez crer e duvidar. Não lhe faltavam exemplos de casos assim. Não seria o primeiro nem o último, mas a reação de Pablo como Letícia lhe apresentara, extrema, deveria ser mais pelo impacto causado nela do que a verdade proferida por ele. Nunca encontrara o malandro até o dia que este lhe abriu o supercílio, não o conhecia a ponto de julgar sua decisão, mas o próprio fato dele abrir seu supercílio já dizia muita coisa. Ficara o alerta de Letícia, talvez fosse verdade, talvez não.
Em frente ao bar, abraçou Caetano enquanto percorria o entorno procurando olhar alguém que o jurara de morte, beijou Maya e cumprimentou o segurança. Enquanto desciam as escadas ouviu o amigo mencionar curioso o fato de não encontrar Hugo na portaria, mas imaginou que este poderia estar em outro posto e, ao sentir a energia que vinha daquele lugar lotado, onde vivera e amara tantas histórias, varreu seu pensamento para debaixo de uma janela de possibilidades. Era seu bar favorito, conhecia cada sentimento que compunha o ambiente, não seria ali que terminaria sua história, não agora.
Bento mordiscava o canto da unha enquanto olhava atento a mudança no palco. Ainda não avistara Letícia e se perguntava se ela viria para o show da banda que ajudara a formar. Os músicos da primeira deixavam o tablado ainda sob uma pequena onda de aplausos e, nesse momento, passou o atendente servindo cachaça caseira produzida no fundo do quintal.
— Três, por favor. – berrou Caetano.
Bento virou uma dose em um trago e pediu mais uma. Caetano fez o mesmo enquanto Maya mexia na bolsa.
— Aspirina?
Caetano aceitou o remédio e pegou uma para Bento também. Enquanto engolia, junto com um trago na cerveja, Bento viu Letícia caminhando apressada em direção ao fundo do salão enquanto lhe olhava com reprovação.
— Ôxe! O que aconteceu dessa vez? – perguntou Caetano.
Bento contou sobre a visita que recebera algumas horas atrás enquanto percebia o clima pesar sobre os dois. Era como contar uma história distante, que não havia razão de existir pela própria narrativa.
— E você não vai fazer nada? – perguntou Maya.
— Cê tá maluco, bróder! E como pode ficar assim, de boa? – completou Caetano.
— Depois que ela foi embora, eu pesquisei na internet o sobrenome do Pablo, o pai dele era o diretor do presídio do vale. – Bento olhou para Caetano esperando uma reação enquanto dava um gole na cerveja. E como esse não demonstrou nada, continuou – Era ele o diretor quando Hugo estava preso.
Maya não entendeu porra nenhuma.
— E o quê que tem? – perguntou Caetano.
Bento abriu um sorriso como quem esperava pela pergunta.
— O quê que tem… Eu liguei pro Hugo e contei pra ele.
— Como assim gente? Hugo não é o segurança? O quê que tem a ver?
Caetano contou sobre a prisão de Hugo e a injustiça que sofreu no momento antes de ganhar à liberdade.
— E o que ele disse? – perguntou Caetano.
— Nada.
— Como assim, nada?
— No começo ele não disse nada, mas aí eu contei sobre ele querer me matar, que viria aqui hoje atrás de mim e que seria um bom motivo para ele acertar as contas.
— E o que ele disse? – intrometeu Maya.
— Disse para eu ficar tranquilo, que nada aconteceria comigo aqui no bar. – Bento deu um gole na cerveja, como quem dá de ombros – Disse que o pai dele iria pagar pela injustiça ainda essa noite.
— Mas eu não o vi na portaria. – protestou Caetano.
— Eu sei. Ele deve estar em outro lugar.
— E você não vai verificar? – perguntou Maya.
Bento olhou os dois com o copo na metade do caminho para a boca.
— Vai ver se ele está aqui! – berrou Caetano enquanto Bento lhe olhava sem expressão – Vai logo!
Bento deixou o copo sobre a mesa e abriu passagem até o banheiro. O segurança não era Hugo. Entrou meio cismado e, enquanto mijava, considerou suas possibilidades se ele não aparecesse. Talvez estivesse próximo ao balcão. O cara também não seria louco de tentar alguma coisa ali dentro. Talvez se esperasse o dia amanhecer, não encontraria ninguém para o matar. Riu da sua conclusão enquanto lavava as mãos e se olhava no espelho. Saiu do banheiro e caminhou em direção ao caixa, perguntou para o dono se Hugo havia chegado.
— Ele não veio hoje – berrou para se fazer ouvir – Disse que tinha um probleminha pra resolver.
Bento reconsiderou algumas certezas e voltou ao encontro dos seus amigos.
— O que foi? – perguntou Caetano.
— Hugo não veio.
— Quê?
— Seu Osvaldo disse que ele tinha um probleminha pra resolver.
— Probleminha? – estranhou Caetano – Ele disse mesmo que viria?
— Dizer que viria ele não disse, mas me falou pra ficar tranquilo que não aconteceria nada.
Caetano percebeu a preocupação tomando conta do semblante do amigo. Certamente ele não havia contado com essa possibilidade, mas também concordava com a opinião que Pablo não tentaria nada ali dentro.
— Relaxa, bróder. – deu um tapinha no ombro de Bento – Esse cara tá blefando. Ele nem apareceu até agora, vai ver ele nem vem. E se o Hugo falou para não se preocupar, eu confio nele.
— Confia? – Maya estava incrédula – Confiar como? Se foi nesse mesmo bar que ele segurou Bento enquanto o outro fugia? – perguntou a Caetano. Virou-se para Bento e continuou – Se eu fosse você, ficaria bem esperto. Tanto com Pablo, quanto com o Hugo.
— Ele não sabia quem era, Maya. – argumentou Caetano.
— Como não sabia? Eu mesma vi quando ele bateu no Bento. Contei pra vocês. Ele não quis foi botar a mão no playboy, preferiu segurar você! – espetou o dedo no peito de Bento.
Os amigos se entreolharam.
— Que nada Maya, – começou Bento a fim de acalmá-la – eu liguei para ele depois. Ele me disse que, na hora, o intuito dele foi separar a briga. Nem pensou em nada…
— Como não pensou, Bento? – interrompeu a garota – Sério mesmo que acredita nisso? Olha pra mim! Tá vendo minha cor? – Maya encarava Bento nos olhos enquanto apontava para o próprio braço – Tá vendo? É igual a sua, cara! Quem você acha que ele seguraria primeiro?
O clima pesou e Bento deu um trago na cachaça enquanto virava-se para espiar o palco. Letícia acabara de subir para assumir o baixo e sua energia ali em cima aquebrantava todos os seus medos. Recordou-se da primeira vez que a viu tocar, quando ela ainda morava com os pais e teve que cantar o instrumento no volume mínimo do amplificador para não acordá-los, a noite de sexo e todos os outros anos que vieram depois. Pensou em como ela havia se apaixonado por um cara como Pablo e passou o resto do show se reapaixonando por ela.
Com o passar do tempo e o término da apresentação, o clima foi amenizando. Caetano voltara a fazer seus comentários insolentes e os três riram ao lembrar a noite do teatro.
— Do quê vocês estão rindo, hein? – Letícia apareceu esbarrando em Bento enquanto perguntava.
— Desse idiota! – respondeu Caetano apontando para o amigo.
— Sempre! – virou-se para Bento e continuou – Você não me escuta nunca, né?
Ele sorriu.
— Custava ter ficado em casa hoje? Ter ido para qualquer outro lugar?
— E eu perderia você no palco?
— Você nem sabia que eu ia tocar. – protestou.
— E eu não te conheço, né?
Agora foi a vez de Letícia sorrir. Depois virou para Caetano e Maya e perguntou:
— O que esse trouxa aprontou dessa vez?
Maya, entre risadas, contou da ida ao teatro antes de chegarem ao bar no dia em que Pablo bateu em Bento. Contou de como ele havia se misturado aos atores e foi arrastado até o palco para fazer parte da peça. De como fizeram piada com ele e ainda lhe jogaram um copo cheio de sangue fictício na cara. Ficou vermelho e com frio, e assumiu o papel de bobo que lhe deram sem ao menos contestar. E diante dos protestos de Bento, que afirmava que a experiência havia sido legal, Maya teve que concordar que o acontecimento valeu a noite, e que após a peça, o público mais empolgado veio o cumprimentar achando que era ator.
Letícia sorriu e enlaçou Bento em um abraço. Ficou com eles, entre idas e vindas às amigas da banda, para o próximo show.
Ao término da noite, saindo do bar, Letícia comentou sobre o não comparecimento de Pablo. Bento deu de ombros enquanto olhava para o céu, um azul escuro, desbotando nas bordas do horizonte.
— Quer carona? – perguntou Letícia.
Bento negou depois de olhar para os amigos.
— Posso deixar vocês no terminal. – insistiu ela.
Bento agradeceu, mas preferiu seguir com eles até o ponto de ônibus. Letícia despediu-se e entrou no carro acompanhada por uma garota enquanto ele sorria ao vê-la partir.
— Você é apaixonado por ela, né? – perguntou Maya.
— Já fui mais – disse enquanto mantinha o sorriso – mas agora, olhando ela partir, sinto que foi um amor pra vida toda, e só.
Caminharam até a esquina e viraram à direita. Duas ruas depois Caetano virou-se para trás e viu o ônibus vindo.
— Pode ir, bróder. – disse Bento.
— Que nada, nós vamos esperar o seu. – Maya concordou com a cabeça.
— Eu pego qualquer um pro terminal.
Nisso, o ônibus que Bento esperava virou à esquina no final da rua.
— Tranquilo, bróder. Vai lá. – abraçou o amigo em um aconchego apertado e lhe beijou o rosto. Maya abraçou os dois e despediu-se, Caetano a seguiu.
Embarcaram enquanto Bento via o que esperava parado no semáforo. O ônibus arrancou e ouviu-se um barulho de tiro. Bento no chão e, do outro lado da rua, escondido atrás dos carros parados, Hugo filmava tudo.
///
Este conto é o oitavo e último da série “Berros, tragos e aspirinas”, de Arthur Yuka, que foi publicada em episódios semanais.
II: Sem culpa
III: Até que provem o contrário
IV: A última ceia
VI: Tiê
VII: A visita
Caralho!!!!