Letícia não sabe decidir



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(Ilustração: Lara Albuquerque)

Letícia mexia com a colher o café que ainda não entrara em contato com a água quente. O cheiro que perfumava sua memória lhe trazia a mãe, que sempre lhe dizia para não enfiar a colher no coador para não rasgar o papel. Lembrou-se de Bento lhe dizendo, enquanto repetia o mesmo gesto, tempos atrás, que também se lembrava da mãe dela nessa situação. Levantou os olhos e viu Pablo encostado no vão da porta entre a cozinha e a copa. Pensou em quanto clichê era lhe ver ali de calça jeans e sorriso largo, com a barriga parecendo uma barra de chocolate, era bobo, mas funcionava. Sorriu olhando para baixo, como quem entrega sem querer dar, e esperou o abraço por trás. Funcionava também, sempre. Com ele e com todos. Depois era só virar o pescoço e esperar pelo beijo e a mordiscada. Mas Pablo preferiu o cheiro do café e advertiu que ela poderia rasgar o coador se o continuasse mexendo com a colher. Ela soltou a cabeça em seu peito e se deixou abraçar enquanto pensava em como chegara até ali, nos braços daquele homem que era quase uma coleção de lugares-comuns da subversão, uma espécie de clichê dos anticlichês. Um tipo cada vez mais comum, sempre exaltando o quão reconstruído e único era, todos iguais.

Serviu duas xícaras, pegou uma e recostou na beira do fogão, ao lado da janela. Ele pegou a segunda e aproximou-se para espiar o sol, que lhe pareceu meio rouco e sem ânimo para esquentar o dia. Sentiu a mão dela em seu ombro e em seguida a cabeça pesando sobre, olharam-se. Ele, afundando em seus olhos, percebeu que haviam mudado de cor. Agora tinha ali um verde, mas não totalmente, e ia invadindo o espaço castanho e, com a luz direta do sol, eram como duas nuvens de fumaça colorida misturando-se. Pablo com a boca meio aberta, ainda sem conseguir expressar sua admiração, aproximou-se um pouco mais. Ela apertou os lábios e formou uma covinha no cantinho deles, outro charme, sabia que funcionaria, ele derreteu-se todo. Girou sobre o calcanhar e ficou de frente para ela, abaixou-se para beijá-la e aproveitou o momento para deixar a xícara sobre o fogão. Em um beijo confortável, daqueles que nos fazem querer mais por não haver lugar melhor pra ir, ela pulou e laçou a cintura dele com as pernas. Firmes. Poderia soltar-lhe o braço que continuariam na mesma posição. E foi o que fez, depois de outro beijo, esse apertado, os abriu, segurando-se apenas com as pernas. Ele com os braços soltos atrás das costas, as pernas firmes no chão, afundou os lábios no pescoço dela. Clichê. Ela pensou enquanto imaginava a posição que o fotógrafo deveria ficar para enquadrar aquela cena. Ele murmurou qualquer coisa sobre encontrarem-se à noite e ela, afastando o romantismo para o qual aquela situação estava caminhando, pulou de seu colo e mencionou qualquer coisa sobre uma festa estranha na casa de uma amiga. Ele esperou a necessidade de uma resposta morrer, caminhou em sua direção e era visível o volume por baixo de sua calça, chegou primeiro, ela sentiu no quadril. Depois foram encostando os corpos. Olhou bem de mansinho nos olhos dela e disse que precisava passar um tempo observando aquelas íris multicolores. Sugeriu um jantar. Ela riu alto, balançou a cabeça e retirou o pão dormido do forninho.

— Quer?

Ele fingiu sensibilidade por ela ter ignorado seu pedido. No fundo ela se divertia com a imagem distorcida que ele fazia de si mesmo. Parecia um menino crescido que levantava o queixo para enfrentar um mundo que não existia, um mundo de fantasias onde ele sempre era o protagonista. Às vezes acabava por incentivar essa postura, vítima daquele afeto que nos torna complacentes com quem amamos, sorria internamente de sua ignorância sobre si: “Que bonitinho!”, pensava enquanto transbordava de amor. E logo em seguida dizia para si mesma, “Droga! Estou gostando desse cara!”.

— Vai querer pão? Está quentinho! – ofereceu enquanto dava uma mordida.

Ele deslizou sobre seu corpo e escorreu sob seus pés, submisso e determinado. Ajoelhou-se em sua frente enquanto tirava sua calcinha. Ela travou, sem saber se o interrompia porque ele poderia atrasá-la ou se o deixaria atrasá-la para não interrompê-lo. A língua molhada, bem de-va-ga-ri-nho. Ela apertou os punhos da blusa com as palmas das mãos e sorriu com um grunhido. Ele também.

Enquanto esperava por Pablo no balcão, relembrava os fatos que ele havia narrado sobre seu último relacionamento. Na verdade, único. Ele a conheceu durante os anos de escola e estava tão certo que casariam e construiriam uma família juntos que, quando ela se descobriu amando outra mulher, ele não soube o que fazer. Foi a grande tragédia de sua vida até ali. Letícia comparou a experiência dele com o fanatismo religioso e ele, embora nunca tivesse pensado naquilo sob essa ótica, percebeu que encaixava como uma luva. Ele era tão crente que sua vida amorosa estava resolvida, que fez daquilo uma muleta e, para todas suas escolhas, a primeira consideração era seu relacionamento. A relação tornou-se o fim e não mais o meio. Ele tinha uma namorada para manter o relacionamento, ao invés de se relacionar com a mulher que escolhera para estar ao lado. Era isso. E Pablo animou-se quando entendeu a comparação. Assim como alguns religiosos, a experiência com o divino deixou de ser o motivo, o fim, dando lugar aos dogmas e tudo que envolve a crença. Logo, são levados a dependerem daquilo e seus rituais, dando tanta importância em como e onde relacionar-se com o divino que esquecem que o divino está em todo lugar. E essa crença não pode ser sacudida, a não ser por um grande choque que, caso ocorra, resulta em uma disrupção mental bastante completa. Quando a base dogmatizada da religião é retirada, sentem-se incompletos, incapazes, pois os músculos que deveriam estar trabalhando deram espaço para a facilidade das muletas. Pablo havia endeusado sua namorada a colocando em um pedestal que, quando ela fez questão de descer, retirou a base dele. E embora ele tenha contado que tudo correu bem, Letícia imaginava como ele havia lidado com essa situação tão desestabilizadora. Afinal, era como Jesus descer da cruz para um cristão.

Pediu uma cerveja ao garçom e se perguntou se fizera o certo em trocar a festa da amiga para estar ali, então pensou no quanto havia se envolvido e até onde se permitiria chegar. Era bom estar com ele, mas sentia um desnível, como aquele taco sobressalente ao piso, normalmente próximo à porta de entrada, que procuramos evitar quando queremos passar despercebido, em algum lugar nele haveria um espinho que a machucaria sem volta. Não seria capaz de dizer se era a beleza, a voz tão alta e forte, com suas demonstrações de interesse calculadas, ou sua autoestima, a dela, pois a dele era tão segura que a diminuía. Sentia-se atraída, mas não segura. Aguçada em descobrir qual era daquele cara, mas com aquela voz encucada que, depois que a merda acontece dizemos, eu devia ter me escutado.

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Este conto é o quinto da série “Berros, tragos e aspirinas”, de Arthur Yuka, que está sendo publicada em episódios semanais.

I: Barba ensopada de sangue

II: Sem culpa

III: Até que provem o contrário

IV: A última ceia


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