Torcidas organizadas: resistência e fôlego com muito amor e paixão*



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Kinzin

(Foto-montagem: Kinzin, a partir de fotos de reprodução da internet e de Domicio Pinheiro, do arquivo histórico do Jornal dos Sports) 

Antes de introduzir o texto sobre as torcidas organizadas brasileiras, gostaria de lembrar que a ideia que me instigou a escrever essa seção sobre futebol aqui na Berro é tentar dar um outro olhar para o tema, não procurar vê-lo como 90% da grande mídia costuma mostrá-lo, não quero fazer nada próximo do oba-oba nem do puxa-saquismo e também não quero recair sobre lugares-comuns esquerdistas que costumam ver o futebol apenas como um mero “ópio do povo” (sim, ainda hoje muitas pessoas têm essa visão rasa, felizmente o quadro parece mudar positivamente). Quero sim ter uma posição crítica, que possa enxergar toda a sujeira presente nesse espaço, assim como também prefiro vê-lo como uma manifestação cultural e social marcadamente presente na cultura do povo brasileiro e que ressignifica os nossos modos de enxergar o mundo.

No final do século XIX e início do XX o futebol chega ao Brasil através de um brasileiro filho de ingleses, Charles Miller, que trouxe as regras e material da Inglaterra para o nosso país e organizou uma partida entre aristocratas paulistas e imigrantes. E assim foi o futebol em seu início por aqui, um local destinado aos homens poderosos desfrutarem momentos de lazer. Os jogadores costumavam encontrar-se nos clubes de elite (naquele momento crescia a prática associacionista no país e era prestigioso fazer parte desses espaços de sociabilidade) para a prática do esporte. Na virada do século surgiram as primeiras resistências a esse tipo de situação: “ora, mas se os barões podem praticar o jogo deles por que nós não podemos?” E assim surgiram as peladas, variação do esporte que era praticada nas várzeas e com muita popularidade nas classes operárias.

As ligas, antes amadoras e que só se profissionalizaram a partir dos anos 20, consistiam em campeonatos entre os clubes já supracitados. Inicialmente, só pessoas de classes sociais abastadas podiam participar, mas com o tempo isso mudou, principalmente graças aos torneios organizados pela várzea. Com o surgimento de vários jogadores com potencial nos campos da periferia e a necessidade de títulos por parte de clubes de elite, esses passaram a aceitar jogadores de várzea, uns de forma mais acelerada, outros de forma mais gradual, processo que também apressou a profissionalização da prática.

Com todas essas partidas, antes chamadas matches – palavra oriunda do inglês -, os clubes atraíam pessoas para assisti-las, se no início eram só os associados e os mais próximos que se interessavam, com o tempo o futebol se popularizou e passou a ser o esporte mais importante desses espaços, suplantando a vela, que era o preferido até então. A imprensa noticiava as partidas e a população de uma forma geral passava a nutrir simpatia por um clube e a criar rivalidade com outros. O histórico fundacional (Palmeiras como um time dos imigrantes italianos paulistas e uma pequena burguesia e Corinthians como o time de classes operárias e do povão) ou até mesmo um jantar comemorativo de título preparado para um time e festejado por outro (marco inicial da existência da querela entre Ceará e Fortaleza) são motivos para que haja uma identificação com cada agremiação.

E o crescimento de adeptos foi tamanho que durante a década de 1940 torcedores se juntavam para incentivar o seu time de forma coordenada. Com gritos de apoio, bandinhas de música e bandeiras, surgiam as charangas, primeiras formas de torcida presentes na cultura futebolística brasileira. Estas eram marcadas pela figura de um líder ou chefe, que costumeiramente tinha ligações com as diretorias dos clubes, as quais poderiam interferir totalmente nas charangas se assim quisessem, e daquelas recebiam incentivos financeiros para promover a festa nos jogos da equipe. Até mesmo viagens das charangas poderiam ser bancadas pelos dirigentes.

As torcidas organizadas

No final da década de 1960, durante o apogeu da ditadura civil-militar brasileira, surge uma nova forma de ser parte do jogo do futebol. Agora, os torcedores não queriam apenas incentivar o seu time, mas também queriam ter voz ativa perante as atitudes duvidosas de muitos cartolas, que viam no futebol apenas uma forma de enriquecimento fácil. As organizadas surgem com a proposta de praticarem uma oposição aos desmandos dos clubes e de ter uma criticidade quando preciso. Além disso, com novos cânticos e gás, além de uma padronização nunca vista, estas passam a adquirir um grande apelo popular nas arquibancadas. Por fim, se existe algum outro fator preponderante para o surgimento e fortalecimento desses espaços, este é a liberdade política e democrática que as torcidas tinham como local de sociabilidade, já que, embora vivêssemos numa ditadura, nestes espaços todos podiam ter suas ideias, e não seriam repreendidos caso estas batessem de frente com o governo da época.

Com a chegada dos anos 1980 e 1990 a violência passou a crescer vertiginosamente nas grandes capitais brasileiras. Juntamente com essa alta, também eram elevados os níveis de desigualdade e má distribuição de renda, que permanecem até hoje, provocando com que muitos fiquem com muito pouco e pouquíssimos fiquem com um absurdo. Se muitos têm e outros não têm, a chance de termos índices de violência alta é maior, pois a mídia e o capitalismo comercial tentam conseguir com que mais pessoas consumam, e quem não tem aquele valor para consumir pode tentá-lo fazer de outras maneiras. Tudo isso foi dito para que chegássemos até este questionamento: se uma sociedade tem uma índole de violência e desigualdade, no esporte, que é a gênese do brasileiro, ela terá muitas possibilidades de também ser assim, não é?

As torcidas organizadas, assim como os bailes funks, as galeras hip-hop e as gangues, passaram a ter muita significação para a juventude do final dos anos 1980 e 1990. Aqueles eram um dos poucos espaços destinados para a sociabilidade desses jovens, que sem perspectiva nenhuma de um futuro não obscuro, utilizavam esses ambientes como forma de possibilidade de fuga da invisibilidade social a que estavam submetidos. Em um mundo desigual e que os obriga a comprar, que os deseja a isso, eles buscavam através de uma negação violenta mostrar: “estamos aqui”, “a gente existe”. E isso se manifestou em diversos contextos: desde o fortalecimento do rap com suas letras engajadas politicamente e que buscavam dar autonomia para esses indivíduos, até mesmo nas brigas de gangues e de torcidas e sua corporalidade expressiva de uma violência positivada.

Em dias de jogos importantes, como em clássicos, por diversas cidades Brasil afora, se torna difícil para quem não entende das dinâmicas das torcidas organizadas decifrar todos aqueles códigos. Enquanto uns gritam o nome de seus bairros e tentam representar as suas galeras, a sua comunidade, outros picham a cidade e demarcam o seu espaço e outros ainda brigam ferozmente com meninos de outro bairro por conta de alguma rixa antiga que ainda não foi encerrada. Esse é o outro lado das torcidas organizadas que muitas vezes só nos é mostrado como algo chocante, mas não se procura entender os contextos de cada situação. Não estou fazendo vista grossa e muito menos buscando que se valorize a violência, mas sim mostrando que esses gritos não podem ser simplesmente calados, como se tenta fazer muitas vezes.

É inegável observar que as torcidas fazem um espetáculo inigualável nos estádios. É também digno de nota que em jogos nos quais elas não vão por algum motivo, seja ele proibicionista ou qualquer outro, a dinâmica é diferente. A festa proporcionada por essas organizações é vista, aplaudida e copiada mundialmente, e costumam incentivar os seus clubes e levá-los a resultados muitas vezes impossíveis. Contudo, o lado da violência pesa demais contra essas instituições e muito já se falou em bani-las do futebol brasileiro, por conta de suas ligações com esses comportamentos.

O questionamento que eu desejo fazer é: o problema dessa violência no futebol brasileiro é culpa exclusivamente das torcidas ou dividiremos a culpa admitindo que elas estão inseridas numa sociedade injusta e que corrobora para essas atitudes? Será que extingui-las fará com que esses sujeitos, que vivem sob a influência da violência a que são submetidos em todos os momentos, mudem de atitude e desloquem essa potência de destrutivo-criativa para outros campos ou não seria melhor que se melhorasse a educação dos seus níveis mais básicos até os avançados e se dessem oportunidades reais para esses jovens?

Posiciono-me permanentemente contra o fim das organizadas, por tudo que essas representam, representaram e representarão. As T.O.’s sempre foram um espaço de rebeldia no futebol brasileiro e hoje com tantas modernidades que a cada dia descaracterizam o esporte, elas funcionam como uma forma de respiro num instante de falta de ar. Creio que, sim, precisam ser discutidas medidas que as mudem e que essas acompanhem um processo de melhoria educacional e profissional para os jovens da periferia. Sem isso, tudo será só balela.

Referências:

AZEVEDO, Nirez de. História do Campeonato Cearense de Futebol. Fortaleza: Equatorial Produções, 2002. 416 p.

DAMO, Arlei Sander. Para o que der e vier: o pertencimento clubístico no futebol brasileiro a partir do Grêmio Foot-ball Porto Alegrense e seus torcedores. Porto Alegre: UFRS, 1998.

DIÓGENES, Glória. Itinerários de corpos juvenis: o baile, o jogo e o tatame. 2 ed. São Paulo: Annablume, 2003. 226p.

SOBREIRA FILHO, Joaquim. “Jogo de uma só torcida”: Os diferentes discursos sobre a polêmica envolvendo torcida única em um clássico-rei no ano de 2012. 2014. 113 f. Monografia (Graduação) – Curso de Publicidade e Propaganda, UFC, Fortaleza, 2014.

* O texto faz parte da série “Futebol e rebeldia. Veja outra: 

Futebol e rebeldia

Kinzin é amante dos mais variados tipos de músicas possíveis e das boleiragens cotidianas da vida, não necessariamente nessa ordem


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