Tiê



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(Ilustração: Lara Albuquerque)

“Caralho mané, se me contassem que tu teve que ficar quinze dias de cama só porque tomou um tapinha na cara eu não iria acreditar, tá ligado?” Caetano dispensou a mão estendida de Bento e o puxou em um abraço. “Porra, Bentinho, mó vacilo o que aquele cara fez contigo, sabia?” Bento olhou Caetano como quem avalia o quanto o outro está chapado, não disse nada, apenas bancou o sorriso, no passo que Caetano continuou, “Aê, só tomando muita aspirina pra dar conta, né nada?” E os dois caíram na gargalhada.

— Caralho, Caetano, tu é muito sacana. Só você pra arrumar uma garota viciada em aspirina.

— Ela é massa, né?

— Sua cara!

— Não é viciada não, mané. A garota sabe das coisas. Aspirina é tudo!

— Sei.

— Brô, tu não tá ligado. Aspirina serve pra uma pá de coisa.

— Só não ajuda com a dor de cabeça, né?

— Aí Maya, Bentinho não acredita nas qualidades da aspirina não, conta pra ele.

Maya acabara de chegar com três garrafas de cervejas, deu uma e um beijo em Bento e respondeu: “Eu não, se ele não quer acreditar, problema é dele”. Pegou a mochila que estava no pé de Caetano, jogou nas costas e saiu andando. Caetano foi atrás falando com Bento: “Cê tá maluco, mané. Serve pra espinha, pra caspa, cabelo, calo, pra limpar aquelas manchas de desodorante tudo que cê tem nas camisa que usa pra trabalhar.”. Estavam a caminho de uma escola onde Maya faria, junto com outros grafiteiros, uma intervenção em um muro de cem metros.

Bento voltou da padaria da esquina com algumas latas de cerveja e entregou uma a Caetano. Sentados do outro lado da rua, admiravam o trabalho no muro.

— Cara, mas o que aconteceu, afinal? Como você sabe que era o namorado da Letícia?

— Eu liguei para o Hugo, ele me contou que eles estavam juntos.

— Sério? Não entendo a Letícia ficar com um cara desses, brô.

— Pois é – Bento deu um trago na cerveja – mas ela não poderia adivinhar também, né? 

— Uai, brô. Mas quanto tempo eles estão juntos? Já não dava para saber que o cara é um prego?

— Sei lá, irmão. Se fosse fácil não teríamos um índice tão alto de feminicídio no país. – Maya vinha atravessando a rua e os dois levantaram, Bento continuou – Depois que falei com o Hugo, minha preocupação é com ela, pois se ele é escroto ao ponto de sentir ciuminho de um relacionamento que terminou há mais de dois anos, o que ele pode fazer com ela, por qualquer motivo, é o que me preocupa.

— Foda…

Maya pegou a cerveja da mão de Caetano e deu um belo de um gole. Sorriu. Caetano pegou outra na sacola, abriu e Maya pegou da mão dele, outro gole. Depois deu um beijo nele. Os três riram.

— Bora tomar mais algumas naquele buteco lá do Centro?

— Mas você não vai terminar o desenho? – perguntou Caetano.

— Já terminei, jacu. Agora os meninos vão dar o acabamento. – Maya pegou a mochila do chão e atravessou a rua para despedir-se dos demais.

— Ela é massa mesmo. – disse Bento rindo de Caetano.

— Estou amando essa mulher! 

No bar do centro da cidade, sentados à mesa na calçada, os três curtiam os últimos raios de sol enquanto esperavam algumas amigas de Maya que moravam no prédio da esquina. Ela as havia convidado na esperança de tomar um banho na casa delas antes de irem para o Ovelha Negra, um inferninho que haviam combinado de passar à noite. Caetano era só paixão e achava o máximo tudo que Maya sugeria, Bento estava cansado, beberam durante todo o dia, mas como não havia nada mais interessante para a noite de sábado, se divertia com os dois.

Quando Carol chegou, Bento e Caetano jogavam sinuca no fundo do bar. Ela sugeriu a Maya que subisse para o apartamento e bebessem lá enquanto esperavam a hora de sair. Maya gostou da ideia e pediu a conta ao garçom, pagou e foi chamar os meninos.

No apartamento havia tantas possibilidades que Bento sentiu-se meio deslocado. Pessoas que jamais havia visto preenchiam cada espaço da sala. Maya e Caetano sentaram na rede, havia um casal sentado à mesa escolhendo a próxima música, uma garota indo e voltando da cozinha com cervejas, outro casal no quarto, um carinha meio estranho sentado na ponta do sofá, duas garotas juntas na janela, outra no banho e mais algumas pessoas que foram ao mercado comprar mais cervejas. Bento sentou-se na outra ponta do sofá, pegou uma cerveja que lhe ofereceram, deu um gole e viu a sala o convidando para dançar. Pensou que já havia bebido demais e deixou a cerveja de lado. Não seria ele o primeiro a dar vexame. A galera estava apenas começando, quanto tempo mais levaria para que todos ficassem bêbados como ele? Aceitou um baseado que lhe ofereceram e deu uma tragada leve, apenas para sentir a fumaça. Animou-se com o fumo, outra tragada, essa mais forte, capotou. Deixou-se derreter no sofá depois de entregar o baseado para o próximo.

Uma fila de formigas que desciam pela parede e faziam caminho nas costas do sofá, começaram a subir pelo ombro de Bento e entraram em sua boca…

— Vou fazer um café. – Bento ouvia uma voz vinda de algum lugar que não conseguia identificar – Alguém quer café?

— Eu quero! – Bento gritou em um tom acima do que esperava, e percebeu que havia dormido de boca aberta na frente de todos. Olhou em volta e a garota que estava no banho o encarava.

— Quer café? – ela sorriu.

— Por favor.

— Alguém mais quer café? – ninguém se manifestou e ela foi para a cozinha.

Depois de tomar o café Bento acompanhou os demais com destino ao Ovelha Negra. A garota que o preparara não estava animada em sair e foi preciso um pedido coletivo para que ela resolvesse acompanhá-los, menos de Bento, que desviou o olhar quando percebeu que ela buscava nele uma afirmação para que aceitasse o convite. E apesar da indiferença dele, fez questão de esperá-la na saída do condomínio, seguiram juntos no final da fila, como quem espera pela privacidade para conhecer o outro melhor.

O bar estava fechado ao público, uma festa particular impedia a entrada de estranhos. Resolveram continuar a noite no Bar da Telminha, logo ao lado, e Bento decidiu ir embora. Era tarde, e o caminho longo até sua casa ampliava o desânimo de esticar a noite.

— Qual é, bróder. Fica com a gente. – pediu Caetano.

— Cara, eu estou cansado, com sono e você conhece a peleja que eu vou enfrentar para chegar em casa.

— Eu falei com Maya, nós vamos dormir na casa das meninas, amanhã tu vai embora.

— Sei não, brô. A Maya conhece as meninas, ninguém me convidou e daqui a pouco não tem mais ônibus. Minha cabeça está explodindo, não sei se vai rolar.

— E a Tiê? Vai embora e deixar a menina sozinha?

Bento e Tiê eram os únicos que estavam sós, os casais já haviam se ajeitado em volta da mesa e apenas uma cadeira estava vaga ao lado de Maya.

— Ela é linda, né?

— E Maya me disse que ela está na sua.

Bento sorriu e olhou para ela que ajeitava uma cadeira ao seu lado que o garçom acabara de trazer.

— Não falei? – disse Caetano. – Toma uma aspirina que passa.

Os dois riram e Bento seguiu em direção a Tiê. Ela sorriu um sorriso amplo e aconchegante. Ele estendeu a mão, num gesto de quem convida para dançar. Ela segurou e levantou da cadeira em direção aos seus braços, girou sob seus cuidados e o viu sentando em seu lugar com um sorriso descarado e permissivo.

— Ou! – protestou

— Quê?

— Você roubou meu lugar!

— Achei que estava guardando para mim. – Bento a envolveu em sua amorosidade e puxou a cadeira ao lado para que ela sentasse.

— Você tem o sorriso da Marília Pêra. – disse para ela.

Mas neste instante, como naqueles momentos em que todos silenciam e nossa voz reverbera por todos os cantos, trazendo para si toda atenção do lugar, os demais que estavam na mesa voltaram-se para Tiê. Aquele sorriso aberto e caloroso deu lugar à timidez e sua face tornou-se rubra.

— É verdade! – concordou Maya.

— E o melhor é que está aqui. – completou Bento.

A noite continuou entre goles de cachaça, risadas e cerveja gelada. Quando voltaram ao apartamento, quando já não encontramos disposição para discordância, argumentação ou resistência, quando apenas nos permitimos consentir, com intuito de fechar os olhos e só reabrir no dia seguinte, Tiê se dispôs a fazer as contas de quantos corpos preencheriam quais camas.

— Maya e Caetano irão dormir na rede, vocês dois no colchão aqui no chão, vocês duas já estão no sofá, Carol no quarto dela com o namorado, a Jéssica já está no quarto e – olhando para Bento, como quem reserva a melhor parte da comida para o final da refeição – bem, no meu quarto só há uma cama de solteiro…

— Pra mim está ótimo! – disse Bento já se dirigindo para o quarto de Tiê, ouvindo atrás de si apenas as risadas de quem ficou para trás.

Enquanto tirava o casaco, percebeu a presença dela o envolvendo com os braços. Virou-se e se beijaram pela primeira vez e, depois de um sorriso condescendente, permitiram-se despir e deitaram na cama com a cumplicidade de quem esperava por este momento desde a hora do café.

/// 

Este conto é o sexto da série “Berros, tragos e aspirinas”, de Arthur Yuka, que está sendo publicada em episódios semanais.

I: Barba ensopada de sangue

II:Sem culpa

III: Até que provem o contrário

IV: A última ceia

V: Letícia não sabe decidir


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