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Nos becos, nas praças, nas avenidas, nos interiores de bairros descentralizados da capital ouve-se poesia. Seja Racionais tocando na caixa de som em um barraco lá na favela da Verdes Mares, ou seja nas rimas saídas da voz de uma criança que se inicia no mundo da criação em uma rua do Curió, mas também nos saraus poéticos nas periferias de Fortaleza. As feridas sociais dão o tom como denúncia e não como lamento. As Palavras arranjadas como poemas são o troco das balas de pólvora que exterminam parte de uma população que quer viver.
Pra quem já ouviu falar no Sarau da B1, no Sarau do Corpo Sem Órgãos e no Sarau do Papôco, também se envereda através de nomes como Baticum, Argentina Castro, Samuel Denker e tanta gente que acredita na arte como instrumento transformador de pessoas, dentre outras propostas espalhadas pelas periferias que atravessam Fortaleza, as lamentações dão espaço às denúncias de assassinatos da juventude periférica.
O corpo é importante se fazer presente nesses espaços, porque o corpo também faz parte desse Movimento. Levar olhos, ouvidos e garganta a lugares nas periferias de Fortaleza que são marcados pelo afeto e a amizade nos dias de realização desses eventos, onde a poesia não pede socorro, onde ela é mais uma criação dentre tantas outras que se aglutinam nos espaços dos saraus.
Vamos lá, periferia sempre foi lugar onde brota arte de variadas expressões. Se o seu Zé levantou um “puxadinho” em cima da sua casa pra sua filha que está grávida, seu Zé, além de artista, é arquiteto. Sem prêmio, sem reconhecimento, sem escritório, seu Zé é artista, sim. Se dona Dina teve um marido covarde, que foi embora e a deixou com três filhos pra criar e dona Dina costurou, trabalhou em casa de madame, trabalhou com o que conseguiu pra levar o alimento para as crianças, dona Dina é uma malabarista da vida e é também artista… sem prêmio, sem busto e sem medalha. Esses lugares – as periferias – nunca deixaram de produzir arte e essa matéria é só um pequeno recorte sobre o que é feito em lugares onde a produção artística não chama a atenção da audiência.
Nesse contexto, o movimento de saraus nas periferias não nasce por acaso. A espontaneidade desses movimentos encontra nesse campo a pulsão necessária pro fazer artístico criando altas maneiras de expressão com voz e potência para requerer uma outra perspectiva para o povo da periferia. São agitações culturais que desengasgam a falta de reconhecimento do papel transformador que a arte pode ter na vida das pessoas. Propostas autogestionadas que mobilizam pessoas e ocupam as ruas sem fins lucrativos.
Música, poesia, performance, teatro, batalhas de rap, breakdance, malabares, palhaçarias… os espaços se multiplicaram mantendo algo raro nas cenas artísticas da cidade: o abraço a muitas expressões que queiram se somar nesses locais. Não existe sarau sem “nós”.
A peleja da voz do dono com a dona da voz
Alto número de mortes violentas, ruas com problemas de pavimentação, falta de saneamento básico são problemas sérios, porém não mais latentes do que a intensidade de vida que se vê por lá. Existe o outro lado que, por algum motivo, não é tão acessado pelos meios tradicionais de comunicação. Em Fortaleza, somando o tempo que as emissoras de televisão locais concedem para programas policialescos, temos mais de oito horas diárias de programação quase exclusivamente sobre violência, sendo boa parte dos crimes acontecidos em periferias. Lamentos, mães chorando mais uma vida perdida, expondo uma periferia que tá sempre pedindo socorro, incentivando, de certa forma, uma imagem deturpada sobre a realidade de uma população que reinventa sua vida no decorrer dos dias.
O lúdico que escapa às lentes da abordagem midiática se observa na força de quem pega seus busões cotidianamente pra ganhar o pão, fazendo girar a roda da cidade enquanto cidadãos de bem(ns) tratam de estigmatizar quem vem dos nossos Jangurussus, Bonjardins, Conjuntos Cearás e Curiós. Fato esse que também faz parte do conteúdo dos poemas ditos ao microfone, vozes que denunciam o descaso do Estado para com o espaço onde vivem. O fazer poético de agitadoras e agitadores culturais que fortalecem esses movimentos artísticos e também constroem uma forte identidade local através da poesia.
Sempre lembrando que o “mic tá aberto”, as temáticas dos poemas vão denunciando o preconceito sofrido pelos corpos periféricos, o desejo de justiça e igualdade sendo colocado sem arrodeios.
Também declamam o orgulho comunitário superando o estigma social sobre os bairros mais afastados do centro. Aqui, não teremos apenas relatos e narrativas de atitudes opostas às tramas policialescas, mas recortes de vivências que podemos conhecer na Biblioteca Comunitária Papôco de Ideias, sediada na rua Piauí, no Parque Universitário, bairro da zona oeste da capital cearense.
“Papôco” sem cheiro de pólvora: dos afetos à biblioteca comunitária Papôco de Ideias
Uma biblioteca comunitária como tentativa de reparação perante a violência. Em uma comunidade na periferia de Fortaleza um sonho brotou em forma de Papôco. A biblioteca comunitária Papôco de Ideias, que Argentina Castro toca com a família, é fruto de uma história de amor à literatura e à comunidade onde cresceu. Ela nos conta uma história lúdica, que começa lá na infância, onde sua mãe, dona Celeste, e seu pai, seu Inácio, mesmo com pouca escolaridade, incentivaram de maneira marcante sua relação com os livros.
A Biblioteca Comunitária Papôco de Ideias fica no quintal da casa da matriarca, dona Celeste. Seu Inácio, apesar de não estar mais presente fisicamente, faz parte desse espaço através das memórias que sua família carrega. Quando Argentina fala de onde vem o amor pelos livros e pela educação, remonta à sua infância, que foi onde começou a nutrir paixão pela leitura.
A imagem de um sofá vermelho em cima de uma carroça é uma memória que Argentina lembra com um olhar que cintila ao acessar algumas memórias. “Além de educação, meus pais queriam nos proporcionar conforto no caminho até a escola. Então, meu pai colocava um sofá vermelho em cima da carroça que levava eu e minhas irmãs para a escola”.
O amor à literatura também vem pelo apreço que a irmã mais velha, a Tânia, tem pelos livros e pela biblioteca. Ela é bibliotecária e certa vez ganhou uma enciclopédia na infância, dada por seu pai. Apesar de ganhar pouco, seu Inácio deu-lhe o presente que ela guarda até hoje. O seu pai era esse homem preocupado com o estudo das filhas, mas também um grande contador de “causos”, o que pode ter influenciado a poesia em Argentina. Ela tem uma página na rede social Instagram onde publica poemas de sua autoria, chamada “Correnteza Poética”. O título remonta à sua relação com Oxum, orixá que guia os caminhos dela.
Apesar da lógica do dinheiro ser determinante para o futuro das crianças, a ação de Argentina e sua família é de amor a uma causa. O acúmulo de perdas de vidas preciosas em decorrência da violência, infelizmente, é uma dura realidade em sua comunidade. Por conta dos problemas que atravessam sua comunidade é que ela deu início ao projeto do Papôco, para contribuir com a saúde física e mental das crianças. A inauguração da biblioteca foi no carnaval de 2016 e contou com a presença de parceiros como Antônio Viana – também conhecido como Baticum – poeta e arte-educador sempre presente no movimento de saraus de periferia, além de Edivaldo Ferrer, ator e autor também recorrente nas poéticas de Fortaleza.
Nas periferias de Fortaleza sempre brotaram afetos, a literatura e os saraus em seus espaços são mais uma ferramenta para algo tão simples que é repensar o acesso e a produção da arte e do lazer.
Para esses produtores de afeição aos espaços, o mundo ideal em que a biblioteca existiria seria aquele no qual os pais das crianças voltam com todo o amor e respeito que faltaram aos filhos nesses tempos de sumiço. Onde as crianças pudessem ter uma outra perspectiva de vida e o “mundo do crime” não estivesse tão próximo de suas existências, como um escape para todos os sonhos frustrados na infância.
A biblioteca comunitária Papôco de Ideias é mais uma iniciativa de colaborar com o futuro das crianças do Parque Universitário. “Às vezes, quando a criança chega aqui e vem dar um abraço, eu fico me perguntando há quanto tempo que aquelas crianças não recebem uma demonstração de carinho”, lembra a cientista social formada na Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA).
Para Argentina, a iniciativa tem suas singularidades em relação às bibliotecas convencionais. Por ser um espaço de intensa circulação de crianças, o que se ouve por lá muitas vezes é a algazarra infantil de pequenos indivíduos que não têm o hábito de sentirem-se acolhidos. Argentina também pensa o espaço que ela toca com sua família como retribuição social pelas oportunidades que teve, inclusive pelo ensino gratuito que teve acesso na universidade pública.
Argentina organizou o primeiro Sarau do Papôco em 2017. Como sua casa fica no fim de uma rua sem saída para automóveis, ela aproveitou essa extensão da sua própria casa para convidar crianças e poetas parceiras para celebrar a leitura e a poesia. Samuel Denker e Nina Rizzi, poetas que tocam o Sarau da B1, lá no Jangurussu, região sul da capital cearense; Jam’s Willam e Pamella Souto, artistas do Sarau Rizoma: Corpo Sem Órgãos, que acontece geralmente na quarta etapa do Conjunto Ceará, região oeste de Fortaleza, além de Baticum, artista que toca o espaço multicultural e coletivo da Okupação, no bairro Antônio Bezerra, zona oestea da capital. Outras parcerias e poetas se fizeram presentes em um dia regado a poesia e a leituras compartilhadas com pessoas de várias idades.
A realidade e a acreditância em contribuir para que as coisas possam ser melhores, fragmentos de uma história que poderia ser diferente. Para finalizar essa curta história, peço um trecho da entrevista feita com Argentina emprestado, onde ela nos diz que acredita “que o livro, a poesia e toda as artes, a imaginação bem direcionada a partir de uma leitura, é potencialmente transformadora de pessoas e de situações coletivas, de um mundo melhor”. Oxalá esse canteiro de acreditâncias floresça e que outros jardins possam nascer a partir deles.
“O que teme o estado?”
Preservar a imparcialidade jornalística em determinadas questões é mato. Não acredito em intelectualidade sem ação. Soa contraditório imaginar a intelectualidade sem o exercício de existência do outro, buscando sua liberdade de expressão e outros pontos que tocam a plenitude da alteridade. Começo inserindo uma ideia em primeira pessoa porque realmente não busco nesse texto manter a frieza ao falar sobre a repressão que a população residente da periferia sofre, inclusive, quando está buscando expressar-se artisticamente. Pessoas foram proibidas de compartilhar poesia, essa linguagem que penso aproximar de outros elementos da vida cotidiana.
Imaginar um outro animal experimentando nossos códigos de linguagem para questionar a própria existência seria um devaneio, mas é na poesia onde podemos minimamente experimentar e explorar as acreditâncias em nos comunicar com outros animais. Lembro Manoel de Barros dizendo que “no descomeço era o verbo. Só depois é que veio o delírio do verbo. O delírio do verbo estava no começo, lá onde a criança diz: Eu escuto a cor dos passarinhos”. Entender que a poesia compartilhada é uma experimentação, um exercício de acreditância perante a estupidez. Sim, gasto dois parágrafos para falar dessas insignificâncias, porque tem poeta adoecendo e o remédio que o Estado encontra é a repressão.
Mais uma vez os pesos e as medidas para lidar com a população da periferia são colocados pelos representantes armados do Estado. No dia 13 de abril desse ano aconteceu mais um Sarau Bate Palmas, sediado no Conjunto Palmeiras desde 2007, zona sul de Fortaleza. Era mais uma noite dessas onde se poderia ouvir a cor dos passarinhos, até a chegada de uma unidade móvel da polícia militar dando a ordem para encerrar as atividades antes mesmo das dez horas da noite. Imagine você, morador de um bairro onde uma vez por mês aconteça um sarau para as pessoas cantarem seus poemas. Esse lugar sendo privado de todo tipo de serviço básico, de estrutura adequada de moradia até acesso a lazer e a cultura, imagine você querer fazer uma movimentação onde historicamente o Estado nunca chega e ter a sua voz calada justamente por essa instituição?
A denúncia, feita por um possível morador, é que alguém estava portando drogas (?) no local. Fiquei imaginando os tais policiais pirando o cabeção para encerrar o “Fortal” – micareta frequentada em maioria pelas classes médias e altas da cidade – caso alguém denunciasse o uso de substâncias ilícitas no local. A questão levantada aqui não é para equiparar os frequentadores dos ambientes acima citados. Os representantes do Estado estão cumprindo ordens ou só dando prosseguimento à seletividade sobre quem pode ou não ter voz?
Mais uma vez uma experiência de troca foi substituída por um ambiente de exceção e sob uma justificativa no mínimo genérica, os artistas presentes no sarau tiveram que ouvir de um dos policiais que “deviam estar na igreja”.
É importante ressaltar que nenhum sarau de periferia que pude conhecer em Fortaleza está disposto a baixar a cabeça perante as imposições policiais. Também está cada vez mais clara a divergência entre quem faz a segurança no Ceará e quem pensa a arte e a cultura de livre acesso. Do Jangurussu ao Conjunto Ceará existem artistas que nunca se contentarão só com comida, mas também com atividades artísticas que corroborem tanto quanto a segurança, a saúde ou a educação de base para a dignidade humana. Poetas afins de trazer atividades lúdicas para seus “dazáreas”, despertando a poesia presente nas pessoas. Apesar da segurança pública ser pensada através da truculência, o movimento dos saraus de periferia não dá sinais de que vai permitir fechar essa conta. Nem igreja e nem cadeia, como diria Sérgio Sampaio, lugar de poesia é na calçada.
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Confira aqui o manifesto do Encontro de Saraus do Ceará: “Para que serve o Estado? A que(m) serve a arte?”
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João Ernesto – jernesto@revistaberro.com
Muito boa. Precisamos cada vez mais criar condições de nos organizar e fazer unidades, para melhorar nossas vidas e sobreviver a esse Chile cotidiano, só sendo uma Fortaleza todo dia